“A tortura não tem anistia”
O juiz espanhol que persegue ditadores diz que a investigação de crimes contra a humanidade fortalece a democracia
Kátia Mello
Fonte: Revista Época

 Divulgação
Garzón: "A abertura dos arquivos da ditadura não vai colocar em risco a segurança do Brasil"

O juiz espanhol Baltasar Gárzon é, talvez, a maior celebridade do mundo jurídico internacional. Ele tornou-se conhecido em 1998, quando emitiu um mandado de prisão contra o general Augusto Pinochet sob acusação de responsabilidade na tortura e na morte de cidadãos espanhóis no Chile. O ex-ditador se encontrava em Londres para tratamento de saúde. Depois de meses de deliberação, o governo britânico, afinal, negou a extradição de Pinochet para Espanha. Mas a ousadia de Garzón inovou o conceito jurídico de territorialidade e teve o efeito prático de tolher a liberdade de movimento de ditadores, ex-ditadores e acusados de crime políticos em geral. Garzón já expressou intenção de interrogar o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger por seu envolvimento na morte de líderes de oposição chilenos e pediu a extradição de vários generais argentinos envolvidos com a tortura de presos políticos. Hoje em dia esse pessoal viaja menos, e sempre olhando sobre os ombros. Na segunda-feira passada, dia 18, o juiz andaluz de 52 anos fez uma palestra em São Paulo a convite da Secretaria dos Direitos Humanos. Depois de quatro adiamentos, falou a ÉPOCA por telefone, de Brasília:

ÉPOCA - O senhor afirma que a abertura de arquivos sobre a ditadura no Brasil não provocará instabilidade política. O que quis dizer com isso?
Baltasar Garzón -
A abertura dos arquivos da ditadura não vai colocar em risco a segurança do Brasil, assim como de qualquer outro país democrático. Ao contrário, irá fortalecê-lo. A democracia brasileira está absolutamente consolidada e, portanto, não é isso que irá afetar esse sistema político. O Brasil tem meios de fazer essa abertura e vive num momento em que ocorrem debates sobre esse assunto. Já existe uma lei, uma comissão do direito à memória, ações civis do Ministério Público em alguns âmbitos e até a manifestação dos opositores, dos possíveis afetados pela abertura de arquivos. Já se começou também uma investigação penal. Agora, cabe à Justiça brasileira decidir se é possível ou não abrir os arquivos e interpretar a Lei da Anistia conforme as normas nacionais e internacionais. O país encontra-se no momento de tomar essa decisão. Se a resposta for positiva, o sistema democrático brasileiro será fortalecido.

ÉPOCA - O ministro da Justiça Tarso Genro disse que a tortura não deve estar na Lei de Anistia. Ao mesmo tempo o presidente Lula tenta abafar esse debate neste momento. Estamos em um ano eleitoral e polêmicas dentro do governo não são bem-vindas.
Garzón -
Pelo o que entendi, corrija-me se eu estiver equivocado, é que Tarso Genro disse que a tortura não pode ser considerada como um delito político. Se foi isso o que ele disse, estou de acordo com ele. Se não foi isso, o que eu posso dizer é que a tortura não pode ser considerada como delito político caso tenha sido praticada de forma sistemática, em um plano pré-concebido e contra parcelas da população, o que se configura como crime de lesa-humanidade. Se nenhum crime de lesa-humanidade pode ser considerado crime político, ele não pode ser anistiado, como dizem as leis internacionais e a própria Constituição brasileira. Quanto à polêmica, ela sempre acontecerá a respeito de qualquer tema político delicado, seja no Brasil, na Espanha ou no mundo inteiro.Temos que diferenciar a polêmica política da questão judicial. Elas não devem ser confundidas. A análise da aplicação e a da extensão da Lei da Anistia e da prescrição dos crimes da ditadura são questões jurídicas. Quem deve fazê-las são os órgãos jurídicos e o Ministério Público que, entre acusações e defesas, devem interpretar qual são os alcances dessas normas.

ÉPOCA - Mas são questões jurídicas que tocam nas feridas do Brasil.
Garzón -
Sim, mas as feridas do país se referem a uma série de crimes que foram cometidos e que devem ser analisados dentro dos princípios de igualdade dos cidadãos perante a lei. E a lei não deve abrir exceções. Estamos diante de crimes que não são anistiados e por isso deve-se começar a investigação. É verdade que em alguns países já houve investigação e não resultou em nada, assim como em outras nações nada foi feito. Não estou de acordo com isso. Minha interpretação é que deve ser feita a investigação sobre esses crimes e que ela deve ser compatível com outros tipos de reconciliação para fortalecer o sistema democrático.

ÉPOCA - Sua visita faz parte de uma estratégia política para pressionar o governo brasileiro a revisar a Lei da Anistia?
Garzón -
Interessa-me muito esclarecer essa situação para que não haja uma manipulação da minha visita ao Brasil. No mês de maio deste ano fui a Buenos Aires apresentar meu último livro El alma de los verdugos em uma feira de livros. Meu amigo, Eduardo Duhalde, secretário de Defesa dos Direitos Humanos, tinha uma reunião do Mercosul no mesmo hotel onde eu estava hospedado. Ali, conheci Paulo Vanucchi (ministro brasileiro da Secretaria Especial de Direitos Humanos) porque Duhalde me pediu que eu falasse algumas palavras sobre Direitos Humanos. Fiz o discurso vestido de calças jeans e suéter, porque tinha acabado de chegar de avião. Nessa ocasião, Vanucchi me convidou a vir ao Brasil para falar sobre direitos humanos. Eu lhe respondi que não poderia confirmar uma data. No mês de agosto, finalmente, eu decidi passar minhas férias na Colômbia e telefonei ao Vanucchi dizendo que a única semana que poderia estar no Brasil seria entre os dias 18 e 19 de agosto.

ÉPOCA - A Itália pediu a extradição de 11 brasileiros acusados de participar na Operação Condor (ação coordenada entre Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai durante as ditaduras militares desses países). A Espanha fará o mesmo?
Garzón -
Sob a minha investigação, a Operação Condor está apenas relacionada com a participação dos responsáveis chilenos. Essa outra investigação quem está tocando é a Itália. A Espanha não irá participar dela.

ÉPOCA - A Constituição brasileira impede a extradição nesses casos. O senhor acredita que em algum momento uma lei internacional deva superar a legislação de um país?
Garzón -
Quanto às extradições está claro que se um país não as permite, não há nada o que fazer. O que ocorre nestas situações, que não é o caso do Brasil e, sim, da Espanha - onde as extradições são permitidas -, é denunciar os ocorridos ao país onde aconteceram os delitos. Se não houver condições para a investigação, como acontece com o Chile e Argentina, vale o princípio da justiça penal universal que estabelece que crimes cometidos contra a humanidade são imprescritíveis. E isso independe do lugar ou das nacionalidades das vítimas. Na Espanha, se o cidadão não espanhol sofreu um crime de lesa-humanidade, seja ele terrorismo, tráfego de seres humanos, imigração ilegal e outros, o caso dele poderá ser julgado.

ÉPOCA - O senhor defende a penalidade para todos os crimes cometidos nas ditaduras? O que acha de comissões de reconciliação, como aconteceu na África do Sul no processo pós-apartheid?
Garzón
- Não defendo apenas medidas penais. Para haver uma comissão de reconciliação é necessário primeiramente haver uma aceitação por parte dos acusados de sua participação dos fatos; a confissão dos mesmos e o ressarcimento e o perdão às vítimas. Entre outros parâmetros, esses foram alguns usados na África do Sul. E claro que precisaríamos de um líder carismático como Nelson Mandela que, depois de 27 anos de prisão, teve autoridade moral para dizer onde e como deveria acontecer esse processo e também autoridade para determinar que quem não colaborasse com esta comissão sofreria acusações penais. Quando eu digo que é possível compatibilizar outras medidas de investigação criminal, isso significa cumprir as doutrinas estabelecidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Por exemplo, no caso dos jesuítas de El Salvador, uma resolução de 22 de dezembro de 1999 é muito clara ao dizer que as comissões de verdade são compatíveis com ações da Justiça. Temos também o caso colombiano que através da Comissão de Justiça e Paz está aplicando uma fórmula mista de reparação e justiça penal, criando uma jurisdição especializada para apresentar os casos aos juízes que julgarão e poderão aplicar a pena máxima de oito anos ou outras penas que se integram a medidas de outras naturezas, como prevenção de direitos, serviços prestados à comunidade, reparações indenizatórias.

ÉPOCA - No Brasil, há setores que criticam algumas reparações indenizatórias a vítimas da ditadura que teriam recebido uma quantia exacerbada de dinheiro. O senhor acredita em regulamentação para reparar essas vítimas?
Garzón -
Como se pode regulamentar a quantia que alguém deve receber por ter perdido um ente na ditadura? Como mesurar o valor da vida? Não é apenas neste país que existe esse discussão. Em outros, fixam-se quantias ridículas para pessoas que perderam a expectativa de vida aos 25 anos. Para mim, o mais importante é o ressarcimento moral às vítimas através de um sistema de justiça. E aos que dizem que estabelecer a Justiça é vingança, eu respondo que não. A anistia no Brasil foi estabelecida quando o sistema ditatorial ainda estava vigente. No Peru, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos é muito clara ao dizer que nenhum caso pode impedir a investigação dessa natureza (houve abolição da lei da anistia em 1991 com uma chacina de paramiliatres ligados às Forças Armadas peruanas). Foi assim que Alberto Fujimori (ex-presidente peruano) pode ser julgado.

ÉPOCA - No Brasil, o Supremo Tribunal Federal aprofunda uma discussão sobre direitos individuais, entre eles a proibição do uso de algemas em detidos. O presidente do STF acusa a Polícia Federal de cometer excessos com essa medida. O senhor acompanhou essa polêmica?
Garzón
- Ouvi algo. Essa polêmica na Espanha não tem sentido porque algemar ou não uma pessoa é uma decisão policial quando acontece a detenção. Os juízes não interferem se se deve ou não algemar alguém. Sob a custódia da polícia, o preso pode ficar algemado até que o juiz decida se ele deve permanecer assim ou não. Quando eu recebi os presos acusados por terrorismo, eles chegaram algemados até a minha porta. A partir daí, eu decidi que fossem tiradas as algemas porque não costumo tomar depoimentos de pessoas algemadas. Mas esta é uma decisão minha. Na Espanha, as medidas de segurança são impostas pela polícia e a lei deve ser igual para todos. Caso contrário, a mensagem é muito negativa, de mau exemplo.

ÉPOCA - Mediante uma fiança paga, o senhor libertou Maria Remedios Garcia Albert, acusada de ser a representante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na Espanha. Como aconteceu isso, uma vez que o senhor sempre classificou as Farc como um grupo terrorista? E o senhor acredita que a atuação desse grupo perdeu força nesses últimos meses com a morte de alguns de seus líderes?
Garzón -
A liberdade dessa mulher ocorreu dentro de processo judicial espanhol. Na Espanha, no processo acusatório, se o Ministério Público solicita a liberdade de um detento, um juiz não pode discordar dessa opinião e levar ao cárcere alguém que ele acredita que seja acusado. Se o fiscal disser que o preso pode sair mediante uma fiança, não há lei ou juiz que sobreponha essa decisão. Só no caso de o detento se recusar a pagar a fiança ele continua preso. Quanto às Farc, sempre as considerei como uma organização terrorista, obsoleta, ligada ao narcotráfico, que comete crimes de lesa-humandiade e responsável por causar uma dor permanente à sociedade colombiana. Neste momento, ela está sensivelmente mais fraca. A força do Estado de direito perante as Farc está funcionando e assistimos, por exemplo, a tentativas de atentados com explosivos sendo desmanteladas, assim como membros das Farc sendo presos. Isso não quer dizer que ela esteja totalmente debilitada porque ainda existem 9 mil guerrilheiros na selva colombiana que podem matar ou torturar.

ÉPOCA - Como o senhor viu a ingerência do presidente Hugo Chávez na tentativa de libertar reféns das Farc?
Garzón -
Acho que esse caso já está resolvido. Os governos colombiano e venezuelano já fizeram as pazes. Quando se trata de organizações terroristascomo as Farcs, creio que a única forma é exigir que elas desarmem e prestar todo apoio às autoridades colombianas, estando ou não de acordo com a linha política presidencial, no caso a do presidente Álvaro Uribe. Até porque esta não é uma questão presidencial, mas do povo colombiano que é vítima dessa situação.

ÉPOCA - O senhor disse que o presidente George W. Bush deveria ser julgado pelos tribunais internacionais por conta dos métodos utilizados nas prisões em Guantánamo?
Garzón -
Não disse isso. O que eu disse é que Guantánamo é ilegal de acordo com a legislação internacional e não é um bom exemplo para os direitos humanos. Disse também que, em algum momento, os tribunais de justiça americanos e não internacionais deveriam analisar e julgar as péssimas práticas adotadas em Guantánamo, assim como no Iraque. Não falo de uma corte internacional, até porque os Estados Unidos não fazem parte dela.

ÉPOCA - O senhor declarou seu apoio ao candidato democrata Barack Obama. Acredita que ele terá uma melhor atuação no campo dos direitos humanos?
Garzóin -
Desde 2005, venho dizendo que Obama poderia ser um bom candidato e e agora existe essa possibilidade histórica de ele vencer e mudar a agenda internacional de direitos humanos dos Estados Unidos.

ÉPOCA - Qual o legado do processo contra o ditador Augusto Pinoche, pelo qual o senhor foi responsável? Quais líderes ou ditadores o senhor gostaria de ver julgados por tribunais internacionais?
Garzón -
O legado é que a impunidade tem seus dias contados, com o esforço e a cooperação de todos, não somente de um país, que se poderia levar aos tribunais os criminosos que realizaram crimes contra a humanidade. De uma certa forma, nós pudemos contribuir para isso. Não existe uma pessoa em particular que eu gostaria de ver nos tribunais, mas qualquer uma que tenha violado sistematicamente a liberdade e a integridade dos seres humanos. Lalic pode ser o último grande genocida a ser julgado, depois da queda de Radovan Karadizc (líder sérvio que foi recentemente preso). As autoridades chinesas responsáveis pela repressão no Tibete também. E ainda existem os processos em Ruanda que ainda não foram levados aos tribunais. Infelizmente, ainda são muitos casos no mundo.

ÉPOCA - O senhor já recebeu ameaças de morte ou em algum momento sentiu medo por conta do tipo de trabalho que exerce?
Garzón -
Na minha profissão, o medo é um luxo que não podemos nos permitir. Nunca ocorreu uma situação em que eu temesse algo, mas se isso tivesse acontecido, eu teria que prosseguir meu caminho. O meu compromisso é com os cidadãos do estado de direito.






LUIZ EDUARDO GREENHALGH
''O Brasil não está pronto para punir torturadores''
Advogado que defendeu presos políticos prega um pacto como o da África do Sul, onde a verdade eliminou as penas

Por LEONARDO ATTUCH

Fonte: Revista Isto é

ICHIRO GUERRA/AG. ISTOÉ

No Natal de 1976, o jovem advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, à época com 28 anos, ganhou projeção nacional ao denunciar a tortura sofrida nos porões da ditadura pelo militante comunista Aldo Arantes, capturado e levado ao DOI-Codi paulista numa ação que entrou para a história como a "Chacina da Lapa". Desde então, a trajetória do advogado esteve intimamente ligada à questão dos direitos humanos. Greenhalgh, por exemplo, hoje lidera o processo judicial pela abertura dos arquivos do Araguaia. Em entrevista à ISTOÉ, ele diz que o ministro Tarso Genro fez bem ao reabrir o debate sobre a punição aos torturadores, mas diz que a situação brasileira é diferente da de países como a Argentina. "Aqui, a anistia foi conquistada dentro da ditadura; lá, veio com a queda do regime", diz ele. "Além disso, no Brasil a reparação financeira veio antes da discussão sobre as penas." Greenhalgh defende um modelo semelhante ao que a África do Sul implantou após o apartheid. Nesta entrevista à ISTOÉ, ele também se defende das acusações que sofreu na Operação Satiagraha, da Polícia Federal.

ISTOÉ - Como o sr. vê o debate sobre a punição aos torturadores da ditadura?


Luiz Eduardo Greenhalgh - Eu fui presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e, em 1979, nós fizemos um projeto de lei que perdeu na sessão do Congresso Nacional que aprovou a Lei de Anistia. Nosso projeto era de anistia ampla, geral e irrestrita, que não contemplava nenhum perdão aos torturadores. O projeto que acabou sendo aprovado foi aquele feito pelo presidente João Figueiredo, de anistia restrita, que tinha a idéia de que se consideravam conexos aos crimes políticos anistiados aqueles cometidos pelos funcionários públicos, os agentes do Estado.

ISTOÉ - Isso encerra o assunto?


Greenhalgh - Não. Pela Constituição Federal de 1988, o crime de tortura é imprescritível, inafiançável e jamais sujeito ao perdão. É um crime permanente, de lesa-humanidade. Além disso, do ponto de vista jurídico, aquela tese do projeto do Figueiredo é inconsistente, porque jamais se pode considerar a tortura como um crime político.

ISTOÉ - Portanto, o ministro Tarso Genro tem razão?


Greenhalgh - Do ponto de vista jurídico, sim. Mas a Lei de Anistia é uma lei jurídica, mas também política. E do ponto de vista político, nós ainda não temos condições suficientes na opinião pública para estabelecer a punição a esses crimes.

ISTOÉ - Mas, se for feita uma sondagem na rua, 99% das pessoas serão favoráveis à punição. O que determina a condição política?


Greenhalgh - Primeiro, já decorreram quase 30 anos da Lei de Anistia. Segundo, a sociedade brasileira não coloca essa questão como um tema prioritário. Portanto, é necessário que se estabeleça um movimento nacional para que esse assunto seja antes debatido e, depois, incorporado à ordem política. Aliás, como se fez na Argentina.

ISTOÉ - A situação do Brasil difere da de Argentina e Chile.


Greenhalgh - Sim. Lá, as mães da Praça de Maio, os familiares e as avós foram para cima dos torturadores. E muitos se recusaram a usar dos benefícios financeiros e indenizatórios da anistia para manter acesa a chama da necessidade da Justiça. Eu vejo uma diferença entre os movimentos das vítimas da ditadura militar do Chile e da Argentina em relação a nós. É por isso que lá há torturadores condenados e presos. Além disso, o general Pinochet morreu em prisão domiciliar.

ISTOÉ - A diferença se deve ao fato de a ditadura brasileira ter sido mais branda?


Greenhalgh - Do ponto de vista quantitativo, medindo pelos 453 mortos e 144 desaparecidos, ela foi mais branda. Mas, do ponto de vista qualitativo, não. A repressão feita no Brasil foi aquela que se espraiou para a Argentina e para o Chile.

ISTOÉ - As vítimas aqui deram prioridade às reparações?


Greenhalgh - Mais ou menos isso. Logo depois da anistia, as pessoas que lutaram por ela passaram a ter um novo horizonte político. Nós, por exemplo, começamos a discutir o PT. Houve uma reinserção quase plena. Primeiro, foram legalizados os partidos políticos, depois veio a Constituinte e o processo culminou com as eleições presidenciais de 1989. Isso foi um processo de massas, que nasceu em plena ditadura. Fomos ocupando as ruas, as mentes e os corações. E os que conquistaram a anistia se engajaram em outras lutas. Depois, essa questão ficou restrita aos interessados mais diretos. E o Estado brasileiro, revanchista que é, retardou ao máximo as reparações. Eu tenho casos de 1982.

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ
"O Tarso está certo ao dizer que tortura não é crime político, mas os casos podem ser resolvidos no Judiciário"

ISTOÉ - Quantos casos o sr. defendeu?

Greenhalgh - Eu estou beirando os mil casos.

ISTOÉ - E qual foi o mais marcante?

Greenhalgh - O da chamada Chacina da Lapa, que aconteceu em 16 de dezembro de 1976. Havia uma reunião do comitê central do Partido Comunista do Brasil e os militares invadiram a casa, mataram algumas pessoas, como o Pedro Pomar, e prenderam outras como o Aldo Arantes, o Vladimir Pomar e o Haroldo Lima, atual presidente da Agência Nacional do Petróleo.

ISTOÉ - O que o marcou?


Greenhalgh - A Lei de Segurança Nacional estabelecia dez dias de incomunicabilidade. A chacina aconteceu num 16 de dezembro e o décimo dia seria o Natal. Eu então obtive uma autorização judicial para quebra da incomunicabilidade do Aldo, do Vladimir e do Haroldo. Quando cheguei ao Dops, o delegado Sérgio Paranhos Fleury rasgou a ordem judicial. Eu a recolhi no lixo e disse que, então, levaria ao juiz. O Fleury se assustou e me permitiu falar com os presos. Quando falei com o Aldo, tomei consciência da tortura. Havia marcas de cigarro no corpo, choques nos dedos, no saco escrotal e marcas do pau-de-arara. Ele me disse que não agüentaria uma nova sessão de tortura. Quando veio o Vladimir e me disse que estava preocupado com o pai, eu mesmo dei a ele a notícia do assassinato, no que foi um dos momentos mais tensos da minha vida. Ao sair do Dops, o Fleury me ameaçou.

ISTOÉ - O que ele disse?


Greenhalgh - Que, se cruzasse comigo, seria o meu fim. Mas disse também que respeitava pessoas de coragem. Na saída, ele estendeu a mão, mas eu não o cumprimentei. Depois, saí do Dops numa tremedeira. Demorei dez minutos para conseguir atravessar a rua. Depois, o Jornal da Tarde noticiou a tortura do Aldo Arantes e esse caso me deu uma certa notoriedade.

ISTOÉ - Tendo visto a tortura do Aldo Arantes, como o sr. não abraça a tese do ministro Tarso?

Greenhalgh - Eu aprovo a posição dele, mas defendo que antes ocorra um debate nacional. O Tarso quer isso, mas o Lula já disse que é contra. A própria ministra Dilma Rousseff, que foi uma das pessoas mais torturadas do País, é contra. Além disso, há casos, como o do processo movido pela família Teles contra o coronel Carlos Alberto Ustra, que vêm sendo acolhidos pelo Judiciário.

ISTOÉ - O que o sr. defende?

Greenhalgh - Que o governo institua uma Comissão da Memória e da Verdade, assim como o Nelson Mandela fez na África do Sul, depois do apartheid. Lá, a comissão foi presidida pelo bispo Desmond Tutu e as pessoas que prestavam depoimento, assumindo compromisso com a verdade, ficavam livres das penas. Assim, seria possível reescrever a história da ditadura e estabelecer um fato histórico incontroverso.

ISTOÉ - Como o sr. vê a questão dos arquivos secretos do Araguaia?

Greenhalgh - É a ação que está mais perto de apresentar resultados. Já transitou em julgado, depois de um longo processo. Ingressamos com o processo em 1982, quando o governo brasileiro nem sequer reconhecia a existência da guerrilha do Araguaia. Consolidamos a prova, mas a União sempre recorreu, inclusive no governo do PT, alegando razões de Estado.

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ
"Só telefonei para o Gilberto Carvalho porque soube que um cliente foi seguido por gente que se dizia a serviço da Presidência"

ISTOÉ - Recentemente, o sr. advogou para diversas pessoas que ganharam indenizações milionárias. Como o sr. encara a crítica aos valores pagos?


Greenhalgh - Eu não me assusto com os valores. São quantias que deveriam ter sido pagas há 30 anos. Se tivessem quitado lá atrás, as indenizações teriam sido muito reduzidas. Como o Estado brasileiro negou o direito de anistia, muitos se espantam.

ISTOÉ - Mas não há excessos?


Greenhalgh - Sim. Tem muita gente que se montou na anistia. Não foi perseguido político e entrou com pedido de indenização. É bom lembrar que o AI-5 punia não só a subversão como também a corrupção. Mas hoje, honra seja feita, na atual comissão do Ministério da Justiça, há um rigor muito grande.

ISTOÉ - O sr. é acusado de ter recebido milhões nesses processos.


Greenhalgh - Isso é uma grande calúnia. Não há nenhum anistiado político neste país que tenha condição moral de dizer que deu um centavo a mim. Nunca cobrei dos meus clientes em processos ligados a mortos, desaparecidos e anistiados. É um trabalho voluntário. No Ministério da Justiça, eu tenho uns 200 processos, num universo de 50 mil.

ISTOÉ - Como está a sua vida fora de Brasília? Há o desejo de voltar à política?


Greenhalgh - Eu sou um militante. Fui derrotado na última eleição e voltei a advogar.

ISTOÉ - Um dos seus clientes, o banqueiro Daniel Dantas, é bastante polêmico.


Greenhalgh - Eu advogo para uma base social com determinadas características. O padre Júlio Lancelotti, na questão dos direitos humanos, o Cesare Battisti, que é um refugiado político, e também para as famílias do Araguaia. No caso do Daniel Dantas, que é uma pessoa controversa, muitas vezes o que acontece com ele respinga em mim. Eu informei à Ordem dos Advogados sobre os procedimentos que tomei como advogado.

ISTOÉ - Como o sr. foi acusado de atuar como lobista, há algo que o preocupe?


Greenhalgh - Não, nenhum receio quanto ao que possa ocorrer a mim. O que me assusta é que viramos uma grande grampolândia. As pessoas vêm tendo a intimidade devassada de forma abusiva e isso ocorre, na maioria das vezes, sem autorização judicial. Muitos desses grampos clandestinos acabam sendo usados como instrumentos de chantagem. Estamos à beira de um Estado policialesco, sem nenhum tipo de controle.

ISTOÉ - O governo se deu conta desses riscos?


Greenhalgh - Não sei.

ISTOÉ - Uma de suas conversas com Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula, foi interpretada como tráfico de influência. Como o sr. reage a isso?


Greenhalgh - Antes de ser governo, quando ainda éramos oposição, sempre que eu via algo com importância política, eu me dirigia às autoridades. Um exemplo: na investigação da morte do Celso Daniel, certo delegado resolveu invadir o apartamento dele e, para tanto, informou diversos canais de televisão, que montaram links em Santo André. Naquela ocasião, quando eu soube, liguei imediatamente para o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. Ele pediu meu telefone e mandou o chefe da Polícia Federal me procurar. Quinze minutos depois, o dr. Agílio Monteiro ligou para a minha casa, dizendo que iria encerrar o assunto e recolher o delegado.

ISTOÉ - Há um paralelo entre essa história e a Operação Satiagraha?


Greenhalgh - No atual governo, em determinado momento, soube que um cliente meu, Humberto Braz, estava sendo seguido ostensivamente no Rio de Janeiro. Eu não liguei para o Gilberto Carvalho imediatamente. Só o procurei depois que o Humberto acionou a polícia do Rio e os homens que o seguiam se identificaram como agentes a serviço da Presidência da República. O que me choca nesse episódio é que eu tenha que dar explicações, e não os chefes da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, que mobilizaram 40 homens numa operação clandestina.

Encrenqueiro e indisciplinado
O comandante militar do Leste desafia a hierarquia, homenageia torturadores e briga com o governador do Rio de Janeiro

RENATO GARCIA


NOSTALGIA Sob o comando do general Silveira, o site do CML defende a repressão e faz referência indireta a Médici

As eleições municipais do Rio são o atual foco de desentendimento entre o governador Sérgio Cabral Filho e o generalde- Exército Luiz Cesário da Silveira Filho. Cabral pediu, e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) autorizou, ajuda das Forças Armadas nas eleições cariocas, já que alguns candidatos estão sendo impedidos de fazer campanha em áreas dominadas por traficantes ou milicianos. O governador explicou por que apelou para as forças federais: “Aqui no Rio há um certo ruído de convivência com o Comando do Exército local.” O governador está falando de Silveira Filho, o chefe do Comando Militar do Leste (CML). Os dois vêm se enfrentando publicamente desde junho, quando militares do Exército entregaram três moradores do Morro da Providência para traficantes. Depois de dizer que o Exército não tem poder de polícia, o comandante acusou o Estado de não fazer segurança adequadamente.

Silveira também foi o único membro do Alto-Comando do Exército a participar do seminário-protesto, dia 7, no Clube Militar, no Rio, contra a revisão da Lei de Anistia (1979) para punir militares supostamente envolvidos em torturas e assassinatos de presos políticos. “Vim aqui como pessoa física”, justificou, à paisana. Raramente o comandante dá entrevistas. Mas é mestre em produzir factóides. Em maio, o general prestou uma homenagem aos generais-presidentes da ditadura ao inaugurar a Sala dos Militares Presidentes no Forte de Copacabana. Recentemente, Silveira pôs no site do CML uma frase do general Walter Pires, ministro do Exército de João Figueiredo. Diz a frase: “Estaremos solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade, cumpriram o duro dever de se opor a agitadores e terroristas de armas na mão, para que a nação não fosse levada à anarquia.”

Silveira também criticou a decisão do governo de promover a general, postmortem, o ex-guerrilheiro Carlos Lamarca. Era uma decisão que, como militar, não lhe cabia contestar. Mas a disciplina e a hierarquia, sagradas para as Forças Armadas, parecem não fazer parte do sistema de valores do general Silveira. Ele ganhou sua espada de aspirante a oficial em 1963, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), então comandada pelo general Emílio Médici, que seria presidente durante o período mais repressivo da ditadura, quando a anarquia militar campeava nos quartéis. Segundo oficiais que conhecem Silveira, ele é um saudosista daquele tempo. No site do CML, no quadro comemorativo aos 200 anos do general Osório, diz-se que ele era o “herói que veio com o minuano” (vento do sul). Por coincidência, a mesma frase foi usada no discurso de posse de Médici – também gaúcho – na Presidência da República, em 1969.






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Exército mantém mentalidade golpista

KENNEDY ALENCAR
Colunista da Folha Online

A nota do Alto Comando do Exército sobre o livro "Direito à Memória e à Verdade" é uma triste notícia para o país. Divulgada na sexta-feira (31/08), a nota mostra que continuam firmes e fortes nas Forças Armadas a mentalidade golpista, certa resistência ao poder civil e uma dose de indisciplina incompatível com a vida militar.

O livro conta uma verdade histórica. Pela primeira vez, um documento do governo federal relata em detalhes atos cruéis da ditadura militar (1964-1985).

A reação do Alto Comando deveria ter sido de vergonha. Uma autocrítica e um pedido de desculpas soariam muito bem. Instituições como a Igreja Católica já agiram assim a respeito do que consideraram erros e abusos do seu passado. Mas qual foi a reação dos nossos militares, em pleno século 21?

"Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e de moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade brasileira", diz a nota do Alto Comando, que se reuniu extraordinariamente para discutir o livro.

Lamentável constatar que os atuais generais consideram integrar o mesmo Exército daqueles que executaram presos que já não podiam reagir. Torturaram intensamente militantes de esquerda. Abusaram sexualmente de homens e mulheres. Estupraram. Decapitaram. Esquartejaram. Ocultaram cadáveres. Enganaram famílias, exigindo dinheiro em troca de informações que se comprovaram falsas. Deram versões falsas ao público.

A reação do Exército, disseram reservadamente os generais, aconteceu porque o ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez um discurso duro na quarta-feira (29/08) durante a solenidade de lançamento do livro que relata onze anos de trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

"Não haverá indivíduo que possa reagir e, se houver, terá resposta", disse Jobim, num aviso a críticas de bastidor que a colunista Eliane Cantanhêde revelou na edição impressa da Folha.

Jobim agiu corretamente na quarta. Fundou o Ministério da Defesa, pasta que os militares nunca engoliram. No entanto, o ministro da Defesa errou na sexta, ao aceitar a nota do Alto Comando do Exército. No mínimo, Jobim perdeu capital político.

A nota é um ato de indisciplina contra o ministro civil que comanda os militares. A alegação de que Jobim os afrontou, ainda que fosse verdadeira, não justifica a reação. Militar tem de bater continência por dever de ofício. É pago para, se necessário, suportar afronta do superior hierárquico. E, convenhamos, esse negócio de afronta foi desculpa para bater no livro.

Mas há coisa pior: a nota afirma que a Lei de Anistia, de 1979,

"produziu a indispensável concórdia de toda a sociedade, até porque os fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus protagonistas".

Se a mira do Exército brasileiro for tão certeira quanto a sua interpretação da história, estamos todos perdidos. Não haverá soldados aptos a defender o país.

A repressão política agiu com consentimento dos mais altos dirigentes da ditadura, inclusive de generais-presidentes. O livro relativizou a tese de que a Lei da Anistia de 1979 se estendeu a todos os crimes cometidos pelos militares. Cortes internacionais afirmam claramente: são imprescritíveis os crimes contra os direitos humanos. Portanto, há, sim, controvérsia a respeito da Lei da Anistia.

Por razão política, Lula fez um discurso moderado no lançamento do livro, dizendo que o ato não era revanche. Por razão política, o Brasil pode fingir que os crimes contra os direitos humanos prescreveram. Mas estará passos atrás de outros países da América Latina, que já realizaram um ajuste de contas com o seu passado ditatorial. O Chile levou Augusto Pinochet ao banco dos réus, por exemplo.

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Desequilíbrio

Na discussão "ditadura x guerrilheiros", há um aspecto sempre abordado com desequilíbrio. O livro da comissão de direitos humanos reconhece que ações dos militantes de esquerda fizeram vítimas entre os defensores da ditadura.

A geração que enfrentou a ditadura cometeu erros. O maior deles foi ter avaliado que a luta armada era o melhor caminho a ser seguido. Os militares afirmam que os guerrilheiros de esquerda eram autoritários que queriam transformar o Brasil numa ditadura comunista.

Esse argumento é fajuto e desequilibrado. Quem rompeu a legalidade institucional do país foi a direita. Golpistas como Carlos Lacerda se arrependeriam logo depois da "revolução" de 1964.

Se a esquerda tivesse assumido o poder, torturado e assassinado, faria sentido dar aos seus erros a dimensão dos erros da direita. Foi a direita que assumiu o Estado brasileiro. Foi a direita que torturou e matou em nome do Estado. Cometendo equívocos que o país também merece conhecer, a esquerda reagiu.

A palavra está agora com o ministro Nelson Jobim. Se fizer de conta que a nota do Alto Comando do Exército faz parte da paisagem, seguirá o destino dos antecessores. Ministros da Defesa que viraram fantoches.

Kennedy Alencar, 40, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos. Também é comentarista do telejornal "RedeTVNews", no ar de segunda a sábado às 21h10.

E-mail: kalencar@folhasp.com.br