Era setembro de 2008 e um bando de piratas somalis fez uma descoberta surpreendente. O cargueiro ucraniano - MV Faina que havia acabado de sequestrar no Golfo de Aden estava repleto de armamento, incluindo 32 tanques de batalha da era soviética – e todo o carregamento era destinado ao governo separatista no sul do Sudão. Os governos da Ucrânia e do Quênia negaram a informação, insistindo que os tanques tinham como destino o exército queniano.

"Esta é uma grande perda para nós", disse Alfred Mutua, porta-voz do governo queniano na ocasião. Mas acontece que os piratas estavam dizendo a verdade – e os quenianos e ucranianos, não, pelo menos em público. De acordo com vários telegramas secretos do Departamento de Estado americano, divulgados pelo WikiLeaks, os tanques não foram as únicas armas que seguiram para o sul do Sudão, mas a última parcela de várias transferências secretas. No momento em que o cargueiro foi apreendido, 67 tanques T-72 já haviam sido entregues para reforçar as forças do sul do Sudão contra o exército de Cartum – um pária internacional pelo abuso dos direitos humanos em Darfur.

Funcionários do governo Bush conheciam o início das operações com os armamentos e decidiram não interrompê-las, garantiu um funcionário do sul do Sudão em entrevista, e os telegramas reconhecem que autoridades quenianas deixaram funcionários dos Estados Unidos a par do acordo. Mas uma vez que os piratas expuseram o caminho das armas através do Quênia, o governo Obama protestou contra os governos do Quênia e da Ucrânia, inclusive com ameaças de sanções, mostram os telegramas.


Vann H. Van Diepen, um alto funcionário do Departamento de Estado, apresentou aos ucranianos um contrato de venda que mostra o sul do Sudão como destinatário, de acordo com um telegrama de novembro de 2009 da embaixada americana em Kiev. Quando eles os rejeitaram como uma possível falsificação, Van Diepen "mostrou aos ucranianos nítidas imagens de satélite de tanques T-72 descarregados no Quênia e transferidos por estradas de ferro para o sul do Sudão", disse a mensagem, referindo-se às primeiras entregas de armamento. "Isso levou a uma comoção do lado ucraniano."

A mudança de posição dos Estados Unidos, por motivos políticos e jurídicos, sobre as armas para o sul do Sudão é iluminada nos telegramas do Departamento de Estado que foram oferecidos para o New York Times e outras organizações de notícias.

As revelações sobre os tanques – os tomados pelos piratas estão agora no Quênia, em algum local obscuro – chegam num momento delicado da história do Sudão, com o país, o maior da África, a ponto de se dividir em dois. Em 9 de janeiro, a região sul deve votar em referendo sobre sua independência do norte para pôr fim a uma guerra de 50 anos. Enormes quantidades de armas fluíram para os dois lados, principalmente para o norte, transformando o país num dos mais explosivos do continente. A secretária de Estado Hilary Clinton chamou a situação de "uma bomba-relógio".

Enquanto jornais e outras publicações quenianas escrevem sobre a remessa de armas desde o episódio dos piratas, a confirmação de que o sul do Sudão foi o destinatário dos carregamentos tem levantado preocupações de diplomatas de que as notícias aumentem as tensões.



Mas Ghazi Salah al-Din al-Atabani, um alto conselheiro do presidente sudanês Omar Hassan al-Bashir, divertiu-se quando soube dos telegramas. "Nós sabíamos disso, sim, sabíamos", disse ele em entrevista. Ele não expressou nenhuma surpresa de que os Estados Unidos pareciam aprovar algumas remessas, dizendo: "Oficialmente, somos inimigos". Ainda assim, ele disse, as transferências poderão se tornar "uma questão política muito quente".

O sul do Sudão, de maioria cristã e animista, lutou até mesmo antes da independência do país em 1956 pela cisão com o governo árabe de Cartum. Mais de 2 milhões de pessoas foram mortas e as milícias patrocinadas pelo governo, similares às que estupravam e pilhavam em Darfur, varreram a região, destruindo vilas e massacrando civis. Em 2005, os dois lados assinaram um acordo de paz, que concedeu autonomia ao sul e o direito de votar sobre a secessão no ano que vem. O acordo também permite ao sul do Sudão comprar armas para transformar a guerrilha em força de defesa, e os Estados Unidos também disseram publicamente que irão prover comunicações, outros equipamentos "não letais" e treinar o exército sulista, chamado de Exército de Libertação do Povo do Sudão, ou SPLA, na sigla em inglês.

Os telegramas sugerem que o esforço foi mais longe do que o divulgado pelos americanos.

"Nos últimos dois anos", diz um telegrama de dezembro de 2009 enviado da embaixada de Nairóbi, no Quênia, autoridades quenianas "tem compartilhado informações sobre seu envolvimento com o SPLA e nós temos dividido detalhes de nosso programa de treinamento para o SPLA, incluindo treinamentos com armas de combate".

Vários anos atrás, o governo do sul do Sudão contratou a compra de cem tanques da Ucrânia usando recursos próprios. O primeiro carregamento de tanques ucranianos teve lugar em 2007, com pouco alarde, e a segunda remessa foi enviada um ano depois.

Em setembro de 2008, no entanto, o Faina, um enorme cargueiro ucraniano azul e branco, foi capturado por piratas somalis. Ele levava 32 tanques T-72 da era soviética, 150 lançadores de granadas, seis baterias anti-aéreas e munição. Inicialmente, funcionários americanos se preocuparam que os piratas descarregassem as armas na Somália, onde poderiam cair em mãos de insurgentes islâmicos radicais que estão cada vez mais próximos da al-Qaeda.

Depois de meses de negociações, 3,2 milhões de dólares foram pagos pelo resgate e os piratas somalis finalmente liberaram o navio e as armas foram descarregas no Quênia.

Fonte: Veja