Ozires Silva, 82, está desgastada. Mesmo com implantes de última geração nos ouvidos, não tem o mesmo gosto de escutar os clássicos de Beethoven, de Mozart e Villas Lobos. A quase surdez é decorrente do início da sua carreira na aviação, quando o que mais ouvia eram os motores e turbinas dos ruidosos.
Fundador e primeiro presidente da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), o paulista de Bauru costuma dizer que os aviões foram a empolgação de dois terços da sua vida. Apesar de usar a frase no tempo passado, Ozires nem cogita aposentadoria e trabalha até nas horas vagas.

Fã do engenheiro Alberto Santos Dumont, foi amigo do cearense Brigadeiro Casimiro Montenegro Filho, fundador do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), onde Ozires formou-se engenheiro. Montenegro foi outra inspiração para sua vida e continua a ser fonte de boas histórias contadas por Ozires.

Mas nem só aviação consta no seu extenso currículo, no qual ainda aparecem os cargos de ministro da Infraestrutura de Collor e presidente da Petrobras. Também presta seus conhecimentos às áreas da Saúde e Educação.

Pai de três filhos, há menos de dois meses passou a identificar-se como viúvo. Depois de 62 anos casado com Therezinha Bueno Silva, ele conta emocionado que é estranho se deparar com seu estado civil.

Nos bastidores do Futura Trends, dia 26 de agosto de 2013, falando baixinho, ouvindo com dificuldade, Ozires Silva concedeu entrevista ao O POVO. É um ponto de vista vigoroso sobre o Brasil do passado, presente e futuro.

O POVO - O que impede o Brasil de ser maior na aviação?
Ozires Silva – O atrito é governamental. Sem a Força Aérea para a Embraer, não teríamos essa expressão de dizer que o Brasil tem aviões fabricados no Brasil, concebidos no Brasil, com propriedade intelectual brasileira, marca brasileira. O Governo tem que ser um parceiro do sistema industrial, e não um organismo ausente que faz leis sem contar pra ninguém. Precisamos de políticas perenes. Você já imaginou se Deus tomasse uma medida provisória que o Sol não se pões hoje?

OP – Há um abismo entre atuar no setor público e privado? Essa diferença hoje é maior?
Ozires – Eu diria que se acentuou. Lamentavelmente, acentuou-se. Hoje vemos o Palácio do Planalto absolutamente distante. Na minha audiência do Senado, eu falei que o pessoal da planície não consegue falar com o pessoal do planalto. Um abismo. Eu nunca tinha usado essa sua palavra. Mas é um abismo realmente. Não há interlocução e, no fundo, nós estamos competindo com Países. Nós não estamos competindo empresa-empresa. Aqui no Brasil ninguém fala com o Governo, não consegue falar. A nossa presidente, presidente, viu? Não vou falar presidenta! Nossa presidente não tem tempo. Tem 39 Ministérios. É brincadeira! Eu, quando fui ministro, procurei transmitir no meu Ministério que eles são servidores do público. Consegui!

OP – Por que o senhor ficou só um ano como ministro da Infraestrutura, no Governo Collor?
Ozires – Não me adaptei ao processo político. E tentei ser honesto. Sentia que estava falando uma língua diferente do que estava acontecendo no Governo. Simplesmente pedi demissão. E surpreendi até o Presidente.

OP – O que foi mais decisivo para sua saída?
OS – Era um ambiente governamental. Várias e várias vezes, nas reuniões ministeriais, eu dizia claramente que não via o Governo autoridade para resolver determinados assuntos. Aí o próprio presidente veio me perguntar: mas quem tem essa autoridade? Eu disse: o povo.

OP – O senhor foi ministro no começo do Pró-alcool, uma boa ideia que não deu certo. Por quê?
Ozires – Foi um erro de conceito. Quando eu era presidente da Petrobras, eu dizia que o etanol era uma benção. Agora, o que acontece é o seguinte, colocar o álcool tendo o seu preço correspondente ao poder calorífico do combustível é colocar o álcool em desvantagem. O álcool tem 30% de poder calorífico a menos que a gasolina. Mas o álcool não tem somente desvantagens. Ele tem uma vantagem enorme porque o efeito estufa, no caso do álcool é menor do que o da gasolina. Então, por que colocar um álcool atrelado ao preço da gasolina? Eu tenho uma tese de biocombustível. Você pega o biocombustível e coloca num produto que está errado. Esse motor que está no carro não foi feito para biocombustível. Mas não, então nós estamos forçando a mão. Na realidade o álcool não está errado, o que está errado é o motor que nós estamos usando.

OP – A gente tem aí uma forte propaganda do biodiesel. Foram feitas indústrias e projetos. Tende ao fracasso como o Pró-alcool?
Ozires – Foi feita a mesma coisa. Eu vejo nisso (energia limpa) uma oportunidade imensa para o Brasil. Colocar outro motor nos nossos automóveis. Sabe qual? O elétrico.

OP – É viável economicamente?
Ozires – Você sabe que o cara que inventou esse motor que está no seu caro agora disse que seria inviável produzi-lo? É porque é um motor difícil pra burro pra fazer. Agora, quando a gente chega para falar num carro elétrico aqui hoje, o pessoal fala: não é competitivo. Mas o motor do seu carro tem 150 anos e é muito mais complicado do que o motor elétrico. Por que é que a gente agora não investe também em um motor elétrico? Por que ficou barato o seu automóvel? Porque tem uma escala de quase 20 milhões de carros que são feitos por ano no mundo. Essa escala dá até nó em pingo d`agua.

OP - O senhor foi presidente da Petrobras, de 1986 a 1988. Também não se adaptou à empresa, controlada pelo Governo Federal?
Ozires – Outro dia me perguntaram qual a diferença básica entre as duas companhias (Petrobras e Embraer). Eu falei que a diferença básica era que a Embraer tinha como vinculação ao governo o Ministério da Aeronáutica, que realmente era um acionista. A Petrobras não tem acionistas. Tem controlador, que é o Governo. Na Embraer, nunca recebi imposição de colocar um diretor. A Petrobras todos os dias recebe isso.

OP – O senhor fala que o Brasil não sabe ganhar dinheiro com as oportunidades dos riscos. Falta ousadia dos empresários?
Ozires – Não. Faltam mecanismos. A Califórnia tem mecanismos pra isso. É o estado mais rico dos Estados Unidos, mais criativo, justamente por conta da habilidade dos californianos de criar ambiente adequado. Acho que você concorda comigo que o Steve Jobs é provavelmente uma das personalidades mais instigantes que o mundo moderno já produziu, concorda? Sabe o que ele disse: se eu não estivesse no Silicom Valley (Vale do Silício), eu não teria conseguido criar a Apple. Você veja a importância da educação.

OP – Como o senhor avalia a produção atual da Embraer?
Ozires – Ela está produzindo um bocado de aviões, com lista de produtos absolutamente grandes. Mas, sem dúvidas, nenhuma com sucesso extraordinário em duas áreas básicas: do avião de transporte e avião militar. Todos os dois para mercado nacional e internacional.

OP – O senhor tem forte interesse no setor de tecnologia da saúde. Em que patamar o Brasil está nesse setor?
Ozires – O Brasil, hoje, importa 90% dos fármacos que utilizamos para fazer nossos remédios. Todos os produtos que nós temos na biotecnologia da saúde são importados. Você já fez tomografia, não fez? Você viu quem fabrica o tomógrafo? Não foi o Ceará.

OP – O senhor deve ter conhecimento do Polo de Tecnologia da Saúde que está sendo desenvolvido no Ceará. Isso muda a nossa dependência da importação?
Ozires – Claro. Tudo ajuda. Agora, o que acontece, na verdade, é que, quando nós temos um grande médico, onde que ele tem sucesso? No exterior. Você já ouviu falar do Miguel Nicolelis, que descobriu a comunicação do cérebro com a musculatura? Ele diz que na entrada da Copa do Mundo (de 2014) vai fazer um paraplégico andar. Ele é brasileiro. Sabe onde ele teve sucesso? Nos Estados Unidos.

OP – Isso acontece em todas as áreas?
Ozires – Em todas as áreas, sem dúvida. Você vê brasileiros importantes no mundo. São brasileiros, nasceram aqui, são iguais a nós, mas foram para o mundo e tiveram sucesso.

OP – É seguro voar no Brasil?
Ozires – É. Nossa competência garante. O avião é um produto extremamente complexo. Ele tem sistemas, equipamentos variados. Tem que estar tudo funcionando o tempo inteiro, se não, ele não voa. E significa que você tem de ter não só o avião voando, como também pessoas competentes que cuidam desses equipamentos, desses serviços. E o avião tem troço que não acaba mais. Semana passada, entrei num avião, fomos até a pista e voltamos. Sabe qual era o problema? O ar-condicionado. Aí teve um passageiro que me perguntou por que não voa sem ar-condicionado. Eu falei que o ar-condicionado funciona com pressurização e, sem pressurização, não voa. No avião, tem de estar tudo redondinho.

OP – A gente passou recentemente por apagão aéreo, envolvendo overbooking. Isso é operacional, mas interfere no mercado?
Ozires – Não, porque o overbooking é normal no mundo. Você sabe que os aviões, em uma média mundial, voam mais ou menos com 60% ou 70% de ocupação. Então, você vende passagem na ordem de 20% a 30% a mais. A mais, porque o avião voa normalmente em média com 60%. Você pode imaginar que um assento do avião é uma mercadoria extremamente perecível. Na hora em que a bonita comissária fecha a porta, os assentos vagos não retornam.

OP – Que lembranças tem da sua infância no Interior de São Paulo, em Bauru?
Ozires – Tive a oportunidade de ir à escola num tempo em que a escola fundamental era muito boa. Depois, fui ao chamado ginásio, que não tem mais. E um ginásio muito bom. Eu tive vários professores de quem me lembro. Você se lembra de algum professor do ensino Fundamental?

OP – Alguns.
Ozires – E esses professores, um deles em particular professor de Matemática, ele me dizia: “preste atenção que a educação pode transformar”. Ele dizia que um bebê nasce com tudo funcionando. Agora, para ele viver e triunfar na sociedade que nós organizamos ele tem que aprender um bocado, não é verdade? Dizia meu professor que a natureza deixa para a sociedade tomar conta, e nisso ela falha. Eu nasci em Bauru, dominada por ferrovias. Tínhamos três ferrovias e meu destino era ser ferroviário. Meu professor perguntava se eu queria ser ferroviário. Eu dizia que não. “Então estuda bastante”.

OP – O senhor mudou de modal. De ferroviário para aeroviário. Seus pais o estimulavam?
Ozires – Meu pai tinha o segundo ano do fundamental. Mas aí eu comecei a frequentar o aeroclube de Bauru, que era muito ativo na época. E eu tinha um professor de Química que era fã do Santos Dumont. Quando tinha um evento que justificasse, o professor começava a aula de química falando de Santos Dumont. Saía da escola, eu ia para o aeroclube. Todos os aviões eram americanos. Aí eu falava: temos um cara como Santos Dumont e todos os aviões são americanos? O que aconteceu? Não ocupamos um mercado que foi oferecido por Santos Dumont? Santos Dumont, por exemplo, sonhava que o Brasil tivesse uma grande aviação e por quê? Estamos num País continente. Você sabe ir a Manaus sem ser de avião?

OP – O senhor foi educado na Força Aérea Brasileira. Valeu a pena?
Ozires – Na Força Aérea, tem um excelente sistema educacional de treinamentos. Eu aprendi um bocado no curso de cadetes da Aeronáutica. Me formei oficial. Aí, num determinado dia, descobri que existia o brigadeiro Montenegro. Grande cearense. Tinha a cabeça lá na frente. Um grande visionário, criou o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica).

OP – O senhor foi próximo do brigadeiro Montenegro. O que mais o surpreendia nele?
Ozires – Visão. Eu vou citar exemplos pra você que você vai gostar. Ele era fã incondicional dos alunos. Deu ao Centro Acadêmico a incumbência de cuidar da disciplina. Ele criou um negócio chamado “disciplina consciente”. Ele chamou o Centro Acadêmico e disse: “vamos fazer um sistema que ninguém cole sob fiscalização de vocês.” Como o ITA é gratuito, pode desligar o aluno, se ele não atingir certa suficiência. E quem desligava os alunos? O Centro Acadêmico. O que ele tinha na cabeça? Dar responsabilidade ao aluno.

OP - O senhor tem três filhos. Como foi o relacionamento com sua mulher?
Ozires – Há um mês eu perdi minha esposa. E está fazendo falta. Fui casado 62 anos com ela, de modo que você possa imaginar que foi uma vida inteira. Há pouco tempo, eu fui numa repartição pública e o cara me perguntou: “qual seu estado civil?” Aí eu torço a cabeça e disse... viúvo. É chato né? Muito chato.

OP – O que faz no tempo livre?
Ozires – Trabalhar. Me sinto bem trabalhando.

OP – Então “aposentadoria” é uma palavra com pouco significado?
Ozires – Zero.

OP – O senhor gosta de música. O problema de audição atrapalha?
Ozires – Eu gostava muito de música, mas perdi muito da audição porque voei em aviões muito ruidosos no começo da minha carreira e a célula auditiva não se recupera uma vez destruída. Quando eu vejo o jovem ouvindo rádio do carro no máximo volume dá vontade de parar e falar: “não faça isso, cuide do seu ouvido”. Olha o que eu tenho aqui, dois aparelhos. São aparelhos de tecnologia moderna, computadores caros pra burro, cada um desse custa R$ 8 mil. Mas não chega perto do seu ouvido de jeito nenhum. Então, você é jovem, poupe seu ouvido.

OP – O que ouvia?
Ozires – Clássicos. Hoje olho para meu aparelho de som e não o ligo há meses. Eu gostava de Beethoven, de Mozart. Ouvi muita coisa de Villas Lobos, mas preferi esses estrangeiros.