[bulava1.jpg]Uma boa resolução de Ano Novo para as potências ocidentais será calibrar o radar para detectar as movimentações da Rússia – e saber como responder a elas. Ao longo de 2013, as manobras de Vladimir Putin conseguiram reduzir o presidente americano Barack Obama a coadjuvante em um tema importante como a crise na Síria e enfureceram a União Europeia, que não conseguiu atrair a Ucrânia que, submetida à pressão do Kremlin, deu as costas para a Europa. Internamente, é claro, a repressão a opositores continua, mas Putin já considera até mesmo tirar da prisão alguns adversários. Em troca, espera que o mundo veja uma Rússia “mais humana” – o timing da decisão é preciso: em fevereiro, o país receberá os Jogos Olímpicos de Inverno.
Até agora, o ano foi tão bom para as aspirações do presidente russo Vladimir Putin que, numa espécie de coroação simbólica de sua ascensão, ele foi eleito pela revista Forbes como o homem mais poderoso do mundo, deixando Obama (mais uma vez) em segundo lugar.  “A homenagem é retórica, mas não totalmente falsa. Putin tem sido muito bem-sucedido em afirmar o status de grande potência da Rússia”, diz Jolyon Howorth, professor de ciência política de Yale.
Após o colapso da União Soviética em 1991, a Rússia sofreu significativas perdas territoriais, de população, financeiras, e acompanhou o declínio do seu poderio global anteriormente dividido apenas com os Estados Unidos. Ao longo da década de 1990, enfrentou crises políticas, sociais e econômicas. Mas Putin tornou-se uma figura política dominante no país, tendo como maior triunfo a reconstrução da economia dissolvida no pós-comunismo. Levou tempo, é verdade: o Produto Interno Bruto caiu constantemente de 777 bilhões de dólares obtidos pela URSS em seu último ano de existência para minguados 196 bilhões de dólares registrados pela Rússia em 1999. Mas é fato incontestável que os russos vivem muito melhor hoje do que quando o ex-agente do serviço de espionagem assumiu o poder para cumprir dois mandatos como primeiro-ministro e dois como presidente – está atualmente no terceiro.
Se a fartura de commodities (gás, petróleo e metais) fortalece a Rússia, o poderoso arsenal militar nuclear reforça essa posição no cenário global. “Militarmente a Rússia sempre foi uma potência e essa força sempre ajudou a consolidar seu poder e influência, inclusive, é claro, no Conselho de Segurança da ONU”, explica Richard Anderson, especialista em União Soviética da Universidade da Califórnia (UCLA).  
O poder bélico russo serviu para o Kremlin impor suas posições, mesmo em tempos de vacas magérrimas na economia. Bertrand Patenaude, professor de Relações Internacionais da Universidade Stanford, lembra que em 1999, sob severa crise econômica, a Rússia se opôs à invasão de Kosovo, defendida pelo então presidente americano Bill Clinton. “Moscou alinhou-se com o presidente sérvio Slobodan Milosevic justamente para confrontar os Estados Unidos”, diz ele. Em 2001, Milosevic seria preso e processado pelo Tribunal Internacional de Haia por crimes de guerra e massacres cometidos contra os kosovares.
No Conselho de Segurança, onde é um dos cinco países com direito a veto, ao lado de Estados Unidos, China, França e Grã-Bretanha, a Rússia usou seu poder em diferentes momentos para barrar sanções à Síria. Este ano, porém, a ação russa foi além. Com Obama encurralado depois de lançar uma campanha por uma intervenção militar em território sírio e se ver isolado nessa disposição, Putin surgiu com uma saída diplomática: um acordo para destruição do arsenal químico de Bashar Assad – sem nenhuma garantia de que será cumprido. A falta de alicerces sólidos não preocupou o presidente americano, que viu seu problema resolvido – e sua influência no episódio reduzida diante da habilidade de Putin. “A Síria é o último posto avançado de influência russa no Oriente Médio e também é cliente de Moscou, de quem compra armamentos e outros bens. Manter esse posto é uma questão de orgulho e de estratégia para a Rússia afirmar-se no cenário mundial”, afirma Patenaude.
Se o êxito na questão síria não fosse suficiente, a Rússia ainda reservaria à Europa e Estados Unidos outra cartada emblemática, ao conseguir manter a Ucrânia em sua zona de influência. Enquanto europeus e americanos revoltavam-se com os pedidos de Kiev para assinar um acordo de aproximação com a UE, Moscou se dispôs a pagar 15 bilhões de dólares (34,7 bilhões de reais) por títulos da dívida do governo ucraniano. E lançou mão de um artifício à moda antiga, ameaçando cortar o fornecimento de gás natural caso a Ucrânia não ficasse do seu lado. O acordo com a Ucrânia era extremamente importante para a UE, pois o país é o principal ‘hub’ de distribuição de gás natural para os países do oeste europeu. Aproximadamente 80% das exportações russas de gás atravessam solo ucraniano antes de chegar aos países da UE. Sem a presença europeia na Ucrânia para negociar dívidas e preços com a Rússia, os países do oeste europeu permanecem sob o constante risco de serem privados de energia – como ocorreu em 2006, quando o Kremlin suspendeu a exportação de gás para a Ucrânia e, consequentemente para a Europa, por retaliação a uma dívida de Kiev com Moscou.

União Eurasiana – A questão ucraniana está ligada a um projeto russo que preocupa o Ocidente, a União Eurasiana, um bloco político e comercial que vá da China à União Europeia. A Ucrânia é essencial nessa configuração, mas ainda não fechou com os russos para se juntar à união aduaneira que hoje serve de base para o futuro bloco. "Enquanto não consegue seu objetivo, a Rússia concentra seus esforços em outra ponta, que visa manter a Ucrânia fora dos processos de integração da UE”, afirma Inna Melnykovska, especialista em leste europeu da Universidade Livre de Berlim.
A ambição de Putin é fazer frente a Estados Unidos, China e UE com uma força nascida das cinzas da URSS. “A ideia da Rússia como parte de uma grande comunidade europeia, expressada até mesmo por Gorbachev [Mikhail Gorbachev, último mandatário da URSS], é um anátema para Putin. Como ex-diretor da KGB ele nunca aceitou a queda da União Soviética como desejável. Ele vê o grande ano de 1989, a queda do Muro de Berlim, como um desastre para sua Rússia”, avalia Patenaude. Europa e Estados Unidos não aceitam e não compreendem por que a Rússia não quer se aliar à Otan nem à UE — e essa incompreensão é uma grande dor de cabeça para eles, acrescenta o professor Anderson. Os especialistas afirmam ainda que a Rússia sempre foi vista como problemática para a Otan, mas no momento a maior preocupação é com a União Eurasiana que Moscou pretende colocar em pé. Mas, se a pretensão é reviver a União Soviética, o professor Howorth afasta a ideia: "A URSS é passado, uma relíquia histórica de museu, e a União Eurasiana é uma aspiração normal para a Rússia como grande potência”.
Em todas essas movimentações, Putin atua, obviamente, sem se importar com a opinião pública. Se em 2012 a Rússia foi chacoalhada por protestos contra o governo, a prisão de muitos manifestantes sufocou a oposição a ponto de o presidente, agora confortável no cargo, libertar nesta sexta-feira um de seus maiores rivais, o magnata Mikhail Khodorkovski. “Putin pode operar sem se preocupar com as restrições da opinião pública. A Rússia realiza eleições, mas não é uma verdadeira democracia com uma imprensa livre, tribunais independentes e outros elementos de uma sociedade civil plena”, ressalta o professor Patenaude.
Mostrando os dentes e as garras à moda antiga, o urso – animal que simboliza a Rússia – provou este ano que o período de hibernação ficou para trás. Acordado, o urso voltou a incomodar. Resta saber se ele vai precisar ser domado. Considerando-se que Putin ainda está habilitado para obter mais um mandato de seis anos, estendendo seu poder até 2024, é bom o Ocidente estar atento. 

De Veja