A Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou e tornou público, ontem, o relatório final sobre as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, que vinha apurando desde sua instalação, em maio de 2012. Os textos, divididos em três volumes que somam 4,4 mil páginas, são diretos e concisos.


O caso único do fechamento da companhia aérea Panair do Brasil, em fevereiro de 1965 — objeto de audiência pública realizada em 23 de março de 2013 —, foi contemplado no Volume II do documento, que trata da relação da sociedade civil com o regime militar.
Sem rodeios, a CNV confirma que a empresa — líder em seu setor entre as décadas de 1940 e 1960 — foi liquidada por motivos políticos e não financeiros, e que esse processo contou com a participação de agentes da União e instituições como o SNI (Serviço Nacional de Informações), beneficiando concorrentes.
“Alguns empresários não compactuaram com a conspiração e o golpe, defenderam a Constituição e foram perseguidos e punidos pelo regime ditatorial”, destaca o texto do relatório. “Um caso exemplar foi o de Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, que juntos detinham o controle acionário da Panair do Brasil, a segunda maior empresa privada do país”. Mais adiante, a CNV aponta: “O estrangulamento econômico sofrido por Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, mediante bem-urdidos Atos de Estado, é comprovado”.
Como a comissão tem a prerrogativa de se pronunciar em nome do Estado brasileiro, é a primeira vez que país admite, indireta porém oficialmente, responsabilidade sobre a derrocada da companhia, pioneira nos voos transcontinentais e responsável pela construção da maior parte da infraestrutura de telecomunicações aeronáuticas, além de alguns aeroportos, do Brasil.
“Meu pai e o Seu Mario eram identificados com os governos anteriores”, afirma Rodolfo da Rocha Miranda, filho de Celso da Rocha Miranda, um dos acionistas majoritários da Panair à época do fechamento, e atual presidente da empresa, que sobrevive no papel. “Com a divulgação da verdade dos fatos, a Família Panair [como os ex-funcionários se auto-denominam] pode, finalmente, descansar em paz. O relatório da Comissão da Verdade apresenta a nossa 'causa mortis'.”
“Nós não temos ódio nem amargura no coração. O importante é que a verdade apareceu. Os nomes dos nossos pais e da Panair, atacados durante muito tempo, foram reabilitados”, diz Marylou Simonsen, filha de Mario Wallace Simonsen, que faleceu um mês após o episódio, vítima de um colapso cardíaco. Ele era sócio de Celso Rocha Miranda na Panair.
A Panair do Brasil foi fundada em 1929 por um grupo norte-americano e inteiramente nacionalizada em 1961, pelas mãos da dupla Rocha Miranda-Simonsen, cujos grupos econômicos somavam mais de 40 empresas que se destacavam em diversos setores, como o de comercialização de café (base da economia da época), seguros e telecomunicações. A aérea operava a maior malha internacional entre as brasileiras, com voos regulares para países da América do Sul, Europa, África e Oriente Médio. Além disso, prestava serviço único em 43 localidades na Amazônia e possuía o mais avançado parque de manutenção do continente, que incluía a oficina Celma (em Petrópolis, hoje da GE).
Violência jurídica
Em 10 de fevereiro de 1965, o governo Castello Branco cassou as concessões de linhas da Panair sem aviso prévio, repassando-as às rivais Varig e Cruzeiro, que assumiram os voos no mesmo dia. Em seguida, o regime pressionou para que fosse decretada a falência, embora os balanços da aérea de Rocha Miranda e Simonsen apresentassem ativo muito superior ao passivo e a empresa não possuísse títulos protestados, ações de fornecedores ou funcionários, ou dívidas com a União maiores que as concorrentes.
Com parte do patrimônio desapropriado por dois decretos em 1966 e 1967, e pagos todos os débitos em apenas quatro anos, a Panair tentou ressurgir impetrando pedido de concordata suspensiva. Foi impedida pela promulgação em tempo recorde e com efeito retroativo de outros dois decretos-leis, baseados no Ato Institucional n°5: 469 e 669, de 1969, que retiraram das aéreas o direito de retomar as atividades após processos de falência e de pedir concordata (a legislação foi aplicada uma única vez na história, no caso da Panair).
Documento das próprias Forças Armadas obtido pela CNV comprova que as acusações levantadas contra a empresa e sua administração tinham se baseado em um laudo pericial que a Justiça, em plena ditadura, comprovou ser falso. “De fato a prova acusatória se resumia em cópias de informações do mandado de segurança impetrado pela Panair, veiculando graves acusações, mas só palavras, um laudo pericial, que a Justiça comprovou ser falso do Síndico da falência, o Banco do Brasil”, revela o dossiê. Em 1978, parecer da assessoria jurídica da Aeronáutica recomendou o arquivamento do processo criminal contra os acionistas. Assim foi feito. A falência só pode ser suspensa, sem interferência da União, em 1995. Apesar de parada por 30 anos e da dilapidação do patrimônio, a Panair ainda dispunha de cerca de US$ 10 milhões em caixa ao encerrar o processo. Porém, perdura até hoje a proibição de operar.
“Só lamento que eles não estejam mais vivos para presenciar este momento”, desabafa Luiz Paulo Sampaio, filho de Paulo de Oliveira Sampaio, que presidiu a Panair durante 16 anos, sendo o responsável pelos maiores avanços na empresa, como o estabelecimento dos primeiros voos noturnos no Brasil, em 1943, e de linhas intercontinentais, três anos mais tarde. “Até morrer, em 1992, meu pai sofreu com a destruição da obra de sua vida. Ele realmente vivia e respirava a Panair”.
Confira abaixo os principais trechos do relatório final da CNV sobre o caso:
“Alguns empresários não compactuaram com a conspiração e o golpe, defenderam a Constituição e foram perseguidos e punidos pelo regime ditatorial, o que deve ser assinalado sob pena de incorrermos em uma generalização equivocada. Um caso exemplar foi o de Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, que juntos detinham o controle acionário da Panair do Brasil, a segunda maior empresa privada do país."
(...)
"O estrangulamento econômico sofrido por Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, mediante bem-urdidos Atos de Estado, é comprovado pelo(a):
— Fechamento e confisco dos armazéns de café (entrepostos aduaneiros), em Trieste, das empresas Wasim e Comal. Essas empresas figuravam entre as maiores exportadoras de café à época de seu confisco, abalando inclusive o conceito do Brasil como exportador.
— Suspensão, sem prazo determinado, das licenças de voo das linhas aéreas da Panair do Brasil S/A., o que levou à decretação de sua falência.
— Desmantelamento do patrimônio da Panair, coordenado por síndicos militares da falência, com a ativa participação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de procuradores especialmente nomeados com esse objetivo.
— Fechamento da TV Excelsior, pioneira no país na implantação da televisão a cores e que contava com técnicos e elenco de primeira grandeza no mercado nacional. Seu fechamento foi decorrente de pressões políticas por parte do governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, um dos patrocinadores do golpe civil-militar, que buscava, sem êxito, o apoio da rede à sua futura candidatura.
— Cancelamento de todos os seguros de órgãos do governo realizados pela AJAX Corretora de Seguros. Na oportunidade, a AJAX era a maior corretora de seguros da América Latina, contando em seus quadros com mais de 600 funcionários altamente qualificados. As mudanças abruptas das regras vigentes emanadas por decretos que visavam perseguir Celso da Rocha Miranda, como a criação de comissões de inquérito na Companhia Siderúrgica Nacional e em outros clientes da AJAX, com o intuito de identificar ligações políticas, eliminaram qualquer possibilidade de readequação da Companhia às novas regras da ditadura, levando-a ao fechamento, dois anos depois.
— Instauração da Comissão de Investigação Sumária da Aeronáutica (Cisar) – Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica – PIS n°194/CISAR, cujo parecer secreto afirma:
'Celso da Rocha Miranda pode ser considerado o principal responsável pela maquinação criminosa e irresponsável que conduziu a Panair do Brasil S/A à situação de falência financeira e administrativa, em 1965...
Assim, Senhor Ministro, Vossa Excelência, atendendo sugestão do Cisar, expediu aviso ao Exmo. Sr. Ministro da Fazenda para que fossem postos à disposição desta Comissão, vários Fiscais do Imposto de Renda, indicados pelo Serviço Nacional de Informações, (SNI), a fim de examinarem os Livros de Contabilidade das diversas empresas pertencentes ao Sr. Celso da Rocha Miranda, sob orientação dessa Comissão.
Outrossim, uma cópia dessa Parte Conclusiva deve ser remetida ao Cenimar, CIE, SNI, DPS, Contel, e aos Setores de Segurança da Aeronáutica, tudo por intermédio do Centro de Informação da Aeronáutica (Cisa), que por sua vez deverá tomar as necessárias providências junto ao Gabinete de Vossa Excelência para que o Sr. Celso da Rocha Miranda seja processado por Crime de Sonegação Fiscal [...] Presidente do Cisar e Membros...'
— Instauração da Comissão Geral de Investigações – Estado da Guanabara – tentativa de enquadramento ao Ato Complementar n°42, que autorizava o confisco de bens de pessoas naturais ou jurídicas, sob a alegação de enriquecimento ilícito dos sócios e diretores. Proc. 218/69, encerrado em 1978, com base no seguinte parecer conclusivo de sua assessoria jurídica:
'Em síntese, de toda documentação carreada ao bojo dos autos, não emerge nenhum fato relevante, caracterizador da prática do locupletamento sem causa. (...) De fato a prova acusatória se resumia em cópias de informações do mandado de segurança impetrado pela Panair, veiculando graves acusações, mas só palavras, um laudo pericial, que a Justiça comprovou ser falso do Síndico da falência, o Banco do Brasil, o qual também é autor da duvidosa exposição de fís 62 e segs., l Vol, [...] acolhendo o parecer do Relator, concorda com o Parecer da Consultoria Jurídica e por unanimidade de votos, resolve arquivar o processo sob referência.'
(...)
"A própria liquidação do patrimônio de alguns favoreceu, direta ou indiretamente, grupos que tiveram crescimento significativo no período. No caso da Panair, por exemplo, é importante lembrar que a Varig, do empresário Ruben Berta, assumiu todas as linhas internacionais do país no exato momento em que a concorrente foi fechada pelo governo.”
* Daniel Leb Sasaki é jornalista e escritor, autor do livro "Pouso Forçado".

De Epoca