No romance "A Máquina de Fazer Espanhóis" (Cosac Naify, 2010), Valter Hugo Mãe, 43, apontava as marcas persistentes da ditadura salazarista [1933-74] na sociedade portuguesa contemporânea. Hoje em dia, continua pouco otimista com relação ao ambiente político europeu. "O risco de retrocesso é iminente. A Europa está regressando a um clima de oposição entre os seus próprios componentes. É fácil relembrar porque uns não gostam de outros, quase ninguém gosta de ninguém." O escritor português nascido em Angola se apresenta nesta segunda (3), no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. Na próxima sexta (7), estará em sabatina promovida pela "Folha" (mais informações abaixo). Leia os principais trechos da entrevista de Mãe à "Folha":

  • É verdade que você se chateia quando os brasileiros dizem que você é um "angolano radicado em Portugal"?
Não se trata de apreciar ou deixar de apreciar. Sou português. Nasci em Angola no tempo da administração portuguesa e fui trazido para Portugal com dois anos de idade. Não tenho memórias de nada ali. Sou filho de portugueses e Angola entra na minha biografia como uma espécie de história que ouço contar mais do que experimento viver. Tenho um carinho e uma nostalgia estranha por Saurimo [cidade onde nasceu]. Estive ali há alguns anos, mas não posso dizer de mim que sou angolano, seria como roubar algo que não é meu, algo que não chegou a ser meu. Sou alguém que nasceu ali e que, por isso, construiu uma biografia falhada com a África. Tenho alguma pena. Ao menos, teria gostado de viver em Angola até mais tarde, para ser metade.
  • No ano passado, você retornou à literatura infantil com "O Paraíso São os Outros" (Cosac Naify), inspirado na frase de Jean-Paul Sartre (1905-80): "O inferno são os outros". Por quê?
Meus amigos entraram em crise amorosa. Virei um terapeuta de gente que regressa ao estado de solteiro. Fico muito frustrado com isso. Queria acreditar no amor e nessa beleza das companhias da vida inteira, mas, certamente devido à crise financeira, o último preço é sempre o coração. Surgiu essa ideia de anotar algumas pistas que, à revelia do que se passa, pudessem fazer acreditar que gostar de alguém é o sentido da vida. Depois de visitar o [artista plástico] Nino Cais e conhecer as colagens que ele fizera com imagens de casamentos antigas, a ideia do texto ganhou forma. Foi muito impulsivo, algo da higiene mental. O texto começou aparecendo no próprio caminho de regresso, no táxi, pelas ruas de São Paulo. Ao chegar ao hotel, a estrutura estava completa. O texto já existia. E era isso, um discurso algo infantil que propende para ser universal. Eu diria que o livro é para todos, incluindo crianças. Porque contém, admito, esse sonho talvez ingênuo de que é preciso reeducar o coração às pessoas, reeducar o coração ao mundo.
  • Seu romance mais recente aqui, "A Desumanização" (Cosac Naify), surge de uma obsessão antiga pela Islândia. Como você relaciona seu interesse por viagens, exílio e paisagens desconhecidas com a tradição literária portuguesa, onde isso é tão presente?
Conheço muitas dezenas de países, procurei todos os sinais de culturas diferentes e estranhas, quis meter o nariz naquilo que me parece incrível, impossível, alienígena, no entanto, o mundo assemelha-se cada vez mais, ou seja, a humanidade converge para os mesmos tiques e as mesmas imagens. O que sobra de drasticamente distinto pertence sobretudo à natureza. É isso que há na Islândia, uma natureza exuberante, agreste, que nos induz para uma experiência extrema da solidão e do recôndito. Quis muito lidar com isso, observar isso. É verdade que os portugueses estabelecem com a viagem, e com a emigração, uma relação muito especial. Agora mesmo voltamos a ser o segundo país europeu com maior abandono por parte da sua população. Não acho que seja apenas por causa da crise, creio que também radica na aspiração que o português tem de partir. Somos um povo disperso, alguma coisa nos coloca à procura. Sabendo mal o que vamos encontrar, mas cumprindo uma e outra vez o destino de sair.
  • Em "A Máquina de Fazer Espanhóis" você trata do período salazarista, ao abordar o fim da vida de homens e mulheres que passaram por esse período. Crê que em Portugal, hoje, por conta do passar do tempo, é mais fácil tratar o passado, de modo mais crítico do que acusatório? Pensa que a literatura de seu país vem cumprindo esse papel?
Sim. Coloca muito bem essa questão. Hoje o discurso é crítico e menos acusatório. Isso é imperioso. Como digo no livro, o povo é o mesmo. O povo ainda é o mesmo. O importante está em entender e detectar os mecanismos que instrumentalizam até os bons homens. É importante atentar nisso porque o risco de retrocesso é iminente. A Europa está regressando a um clima de oposição entre os seus próprios componentes. É fácil relembrar porque uns não gostam de outros, quase ninguém gosta de ninguém. Se não houver uma lucidez extrema na gestão das diferentes auto-estimas, a probabilidade de se verificarem conflitos, inclusive militares, é alta. A literatura importa para tudo. Se o quisermos, participa em todas as coisas. Alguns escritores parecem querer excluir-se do mundo, como se fossem produto de nenhuma realidade. Por outro lado, há escritores que traduzem o tempo, verificam a História. Isso não é apenas um compromisso, isso é uma identidade, um modo de ser. Eu aceito bem que os livros sejam como gente do nosso tempo e se intrometam nas conversas e nas ideias do nosso tempo, como gente falando ininterruptamente, profundamente, acerca do que nos acontece.
  • Em "O Apocalipse dos Trabalhadores" (2008), você tratou do tema das empregadas domésticas. No Brasil, com bastante resistência, vem sendo aplicada uma regulamentação de seu trabalho. Acha as situações parecidas? Tem a ver com uma herança cultural colonial?
Creio que no Brasil, hoje, essa questão é mais efetiva do que em Portugal. Com o fim da ditadura portuguesa, a empregada doméstica é uma figura um pouco residual. Quero dizer, chamamos às empregadas domésticas de "mulheres-a-dias", porque apenas trabalham para alguém uma ou duas vezes por semana. Diria que o comum é uma manhã ou tarde em cada semana. Eu, por exemplo, nunca tive "mulher-a-dias", e creio que 90% da população em Portugal também não tem. No Brasil, a classe média mais abastada frequentemente tem uma empregada interna, que vive com a família, trabalha meio sem horário. Isso é um sinal de que muita gente não encontra ainda um trabalho convencional e fica dependendo de uma espécie de guarida. Acho fundamental que se regule essa relação laboral e que se definam os direitos das domésticas.
  • A vulnerabilidade da condição de alguém não a pode atirar para uma lacuna na lei, não a pode retirar de um sistema de segurança social, vencimento e progressão. Sua participação na Flip de 2011 repercute até hoje. Como você se lembra daqueles dias?
Lembro com muito carinho. Sinto uma saudade bonita de Paraty. A vida deixa em nossas mãos alguns tesouros, esse, no meu caso, foi um deles. Das mãos sobe ao coração. Fica como um amor que deu certo. Estarei sempre grato ao carinho das pessoas.
  • Na época, você afirmou ter conhecido a música de Cartola e se apaixonado por ela. O que o comoveu tanto? Segue escutando-o?
Eu amo Cartola. Tenho em casa, na minha sala, um retrato dele pintado por um artista de Curitiba, que comprei numa feira de artesanato. Cartola (1908-80) não é de conhecer e esquecer. Cartola fica. Lembro de dizer ao artista que gostava do retrato porque tinha ternura pela imagem de "velhinho". Isso porque ele inflacionava os preços quando percebia a paixão do comprador. Então, ele queria vender Beatles e eu respondia: "Gosto mais deste retrato do velhinho". A dada altura, ele parou e exclamou: "Nossa Senhora, vai chamar Cartola de velhinho. Moço, Cartola é eterno, não tem isso de idade". Eu ri muito. Comprei e só falei que amava Cartola quando estava a dez metros de distância. A dez metros de distância e feliz. Cartola é milhões de anos-luz melhor do que Beatles.

Da Folha