Por uns momentos, na segunda-feira, na chatice que costuma ser a discurseira na abertura da assembleia geral da ONU (o Brasil tem a honra de iniciar todo ano a verborragia), imperava o clima de alta tensão da Guerra Fria.
O presidente americano Barack Obama falou. Logo depois, foi a vez do presidente russo Vladimir Putin (que deu as caras na ONU depois de 10 anos). E mais tarde, os dois tiveram uma reunião bilateral. Para Obama, o “tirano” Bashar Assad deve sair do poder. Para Putin, o “presidente legítimo” da Síria deve ficar. Ele é parte de uma espécie de cruzada contra o terror do Estado Islâmico. Santo Putin.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhV-ZnWZrnB5GRrDik0ntQ2d4o4pK30Kj0WqxTk83CC1ho2ZZT38f8EVr4cBvs58KDSiLdp_o0ryXy9DKQ4zKkj_kOF0QAmNTYe98kIMSOXCABmp1IvYLIOhMEuOxqpHwWfsM8AxYBaV4A/s1600/Dr+Evil+Putin.jpgA Rússia de hoje nem de longe pode se comparar ao império soviético, dos tempos em que Nikita Khrushchev batia o sapato durante a assembleia geral da ONU. No entanto, o clima de alta ansiedade engrandece nosso homem em Moscou. Seu timing sírio é impecável.
Antes de aparecer na ONU, Putin anunciou o envio de soldados, aviões, tanques e artilharia para a Síria, em uma reentrada no Grande Jogo do Oriente Médio (não que a Rússia tenha completamente partido). Fica claro o empenho para exercer influência e dissipar a ideia de que Putin seja um pária internacional apesar de sua desastrosa e abjeta intervenção na Ucrânia.
Síria é um rolo no qual perdemos o fio da meada e no desolado jargão não existem boas soluções. Na verdade, nem existem más soluções para resolver o drama. No entanto, sobre Putin não devemos perder o fio da meada. Na constatação afiada de Anne Applebaum (a quem costumo recorrer para decifrar nosso homem em Moscou), a reentrada síria de Putin basicamente é parte de sua jogada para permanecer no poder.
A bandeira de legitimidade de Putin por 15 anos foi a seguinte: eu não sou democrata, mas garanto estabilidade, crescimento econômico e melhores condições de vida para todos. No entanto, com a queda dos preços do petróleo e sanções internacionais, devido à intervenção na Ucrânia, não dá mais para desfraldar a velha bandeira.
A nova é a seguinte: eu não sou um democrata e a economia pode estar afundando, mas a Rússia gloriosamente recupera seu  lugar na arena mundial. E tem mais: a alternativa ao autoritarismo não é democracia, é o caos.
A rigor, Putin não tem músculos militares para projetar efetiva influência no Oriente Médio. E não poderá fazer na Síria o que faz na Ucrânia. Não vou negar que ele tenha um papel a exercer. Afinal, Putin é intimamente ligado a uma das milícias que operam na guerra civil síria, a de Assad, atrai o Iraque para sua órbita de influência e está afinado com o Irã, o grande patrono do ditador sírio.
O essencial, eu reitero, é doméstico. Na agitprop de Putin, a Europa é frouxa, os EUA são decadentes e qualquer mudança primaveril (no mundo árabe ou em outra parte) resulta em caos. A alta ansiedade é se Obama rechaça os acenos de Putin, qual é o plano sírio?
Os americanos simplesmente não têm um plano S para a Síria e hoje se mostram resignados que Assad tenha aliados e sobrevida, enquanto Washington não tem quem apoiar na guerra civil. A atuação de Obama nos últimos quatro anos foi um fiasco estratégico e humanitário, abrindo espaço para o jogo de Putin.

De Veja - Autor: Caio Blinder