A esquecida coragem dos cães de guerra


Testemunhas da Parada da Vitória realizada em Moscou em 24 de junho de 1945 se lembram de um destacamento de cães desfilando pela Praça Vermelha.

Entre os que tiveram a honra de participar estava Dzhulbars, um cachorro que foi famoso na época. Nascido com a incrível habilidade de detectar explosivos com o seu olfato, Dzhulbars salvou tesouros arquitetônicos em Praga, Viena, Hungria e Romênia. O cão havia se ferido e proibido de participar do desfile, até que Stalin ordenou que Dzhulbars fosse carregado pela Praça Vermelha em seu próprio casaco.

65 anos depois, é difícil dizer se essa história é real ou não. Existem poucos registros e documentos restantes que descrevem os feitos dos animais devotados aos seus mestres e seus serviços ao estado. No entanto, sua contribuição para a vitória é inegável.

Cães que serviram no front entregaram mensagens, passaram cabos telegráficos, detectaram minas, desencavaram feridos em bombardeios e agiram como guardas em patrulhas caninas. Eles continuavam a lutar apesar das feridas, e em circunstâncias terríveis eles atingiram os limites de seu esforço, mostrando coragem indomável.

De acordo com o manual soviético de criação de cães publicado em 1973, mais de 60.000 cachorros serviram com o Exército Vermelho. Nos primeiros anos da guerra, 168 destacamentos individuais, batalhões e regimentos centrados no treinamento e uso de animais foram formados. A princípio os cães foram treinados em escolas especiais e somente depois eram enviados ao front.

Cães salvaram a vida de mais de 700.000 soldados feridos. Os animais especialmente treinados carregavam kits de primeiros-socorros e uma faixa da Cruz Vermelha para permitir que fossem instantaneamente reconhecidos.

Eu conheci um monte de cachorros intrépidos”, escreveu o autor e jornalista russo Ilya Ehrenburg em suas memórias da Segunda Guerra Mundial. “Um collie com roupa protetora branca – era inverno – achava uma pessoa ferida e se deitava ao seu lado. O cachorro carregava uma cesta especial com comida de vodka. Então arrancava com os dentes uma plaqueta de identificação especial, feita de couro, que o soldado levava no pescoço e corria para encontrar um médico. O cão mostrava o que tinha encontrado e guiava o médico até o ferido”.

Uma impressionante habilidade desses médicos caninos era entender se o soldado estava morto ou apenas ferido – uma tarefa desafiadora visto que muitos feridos não mostram qualquer sinal claro de vida.

Um cão-médico que encontrava um soldado ferido farejava sua face para revivê-lo e indicar que ‘eu estou com você’”, disse Yekaterina Vasilyeva, uma pesquisadora do Museu de História Militar da Artilharia, Engenheiros e Sinaleiros.

Para não assustar o soldado, o cão imediatamente o mostrava seu símbolo da Cruz Vermelha e seus remédios. Frequentemente os animais arrastavam soldados para trás do campo de batalha em macas especiais. Sob fogo, os cães podiam fazer coisas que eram impossíveis aos médicos.

Cães com macas eram usados para trazer feridos e levar munição”, disse Vasilyeva. “Durante a guerra, os animais carregaram 6.000 toneladas de munição e 3.500 toneladas de outros materiais”. Cada maca levava o que três ou quatro médicos levavam, e o tempo de evacuação também era bastante reduzido.

A maioria dos cães – cerca de 9.000 – serviu como mensageiros.

Durante a guerra, cães carregaram mais de 200.000 relatórios e passaram cerca de 12.000 quilômetros de cabos”, disse Sergei Paskhin, pesquisador-chefe do museu.

Os cachorros serviram com perfeição e confiança”, de acordo com um relatório da época. “Houve muitas ocasiões em que as condições tornaram impossíveis o uso de ferramentas de comunicação, mas os cães conseguiam entregar relatórios e ordens dentro do cronograma. Mesmo cães feridos costumavam arrastar-se até seus pontos de destino”.

Seis cães mensageiros podiam fazer o trabalho de 10 mensageiros humanos, e a velocidade de entrega era três ou quatro vezes maior”, disseVasilyeva.

Documentos de arquivo contam a história de Rex, que sob bombardeio nadou pelo gélido rio Dnieper três vezes em um dia para entregar importantes documentos militares. Durante a Batalha de Moscou, animais trabalhando na linha de frente ajudaram a parar a ofensiva inimiga que avançava sobre a capital.

Durante a ofensiva realizada em dezembro de 1941, em condições de total ausência de estradas e em temperaturas congelantes, a comunicação com muitos destacamentos do exército foi realizada somente por cachorros, e era perfeitamente confiável”, de acordo com um relatório escrito pelo General Dmitry Lelyushenko em 14 de março de 1942. “Um cão chamado Bulba correu por mais de 10 quilômetros sob bombardeio e entregou ordens, recebendo nove feridas a bala e bombas”.

Logo depois disso, uma medalha especial para cães foi estabelecida – o equivalente da Ordem da Coragem entregue aos soldados. Hoje, poucos se lembram ou sabem dessa medalha, embora a famosa e internacional Medalha Dickin também fosse entregue a animais que mostrassem notável coragem ou devoção ao dever enquanto serviam. A Dickin é uma grande medalha de bronze onde se lê: “Por Bravura” e “Também Servimos”.

Cães e pássaros podiam receber a Medalha Dickin entre 1943 e 1949, e os ganhadores incluíram pombos, cachorros, cavalos e um gato. Seus feitos foram registrados, e as informações sobre seus feitos heróicos podem ser facilmente encontradas. Mesmo assim, os feitos dos animais soviéticos foram quase esquecidos, e a maior parte deles sobrevive apenas como lendas.

Os arquivos preservaram um curto relatório relacionado ao bombardeio de um trem alemão na Bielorrússia em 19 de agosto de 1943. Dez vagões foram destruídos, e uma grande parte da linha férrea foi danificada. O relatório tem uma pequena nota: “Não houve perdas do nosso lado”. A explosão foi causada por um sabotador – uma cadela chamada Dina.

Não é lenda”, diz Vasilyeva. “Dina era uma cadela muito esperta. Sabotadores caninos levavam uma bagagem destacável especial. Eles notaram no treinamento que se a bagagem caísse, o cão a pegaria com os dentes e a levaria ao seu destino. Isso foi o que Dina fez. Ela deixou uma patrulha alemã passar e somente então carregou o pacote que tinha escorregado de suas costas para a linha férrea. E então ela escapou”.

Cães revelaram incríveis habilidades durante seu serviço: a história registrou os feitos de um collie britânico, Rob, que fez mais de 20 saltos de paraquedas durante a guerra.

Animais frequentemente davam suas vidas pela vitória. Os alemães temiam mortalmente os cães soviéticos que carregavam minas para baixo de seus tanques. Houve casos em que cães conseguiram fazer recuar destacamentos completos do inimigo.

Farejadores capazes de detectar minas desempenharam um papel crucial. Eles descobriram e desativaram mais de quatro milhões bombas e minas inimigas. “Os nazistas frequentemente deixavam armadilhas, a maioria em prédios industriais”, disse Vasilyeva. “Detectores de metal podia encontrar as bombas se estivessem em invólucros metálicos. Muitos, no entanto, estavam em caixas de madeira. Somente um cão podia descobrir uma mina numa profundidade de 1,5 metro – eles conseguiam farejá-la”.

O cão indicava o local exato do explosivo. Muitas vidas foram salvas dessa maneira, e mesmo depois da guerra os cães foram usados dessa mesma forma”.

Os cães vasculharam e limparam mais de 15.000 quilômetros quadrados, incluindo 300 cidades – Praga, Budapeste, Varsóvia, Kiev e Odessa entre elas.

Alguns contos de feitos caninos existem em algum ponto entre realidade e mito. De acordo com uma história bastante conhecida, um collie chamado Dick salvou o Palácio Pavlovsk – uma das mais esplêndidas residências da Rússia Imperial localizada a 30 quilômetros ao sul de São Petersburgo. O cão descobriu uma bomba de 2.500 quilos nas fundações do palácio uma hora antes de sua explosão.

Documentos raros criados por Pyotr Zavodchikov, comandante do primeiro batalhão de cães criado – um time de cães sapadores – mencionam Dick como um animal do Exército Vermelho. Em 1943, ele foi ensinado a farejar explosivos, e ao fim da guerra tinha desativado 10.500 dispositivos.

O departamento de imprensa do Palácio Pavlovsk não tem registros do incidente, embora o palácio tenha sido realmente minado pelos alemães. Vasilyeva, no entanto, conseguiu provar a história. Muitos anos atrás, uma mulher – descendente dos donos de Dick – veio pesquisar sobre o cachorro.

É verdade”, disse Vasilyeva. “O cachorro existiu. Procuramos informações sobre ele nos arquivos e encontramos alguns fatos”.

Encontrar tal confirmação, no entanto, é algo raro. Na Europa, animais eram tratados com grande respeito. Os Aliados não somente lhes deram medalhas, mas também criaram patentes especiais para animais. Por exemplo, o Exército dos EUA um destacamento exclusivo de cães.

Eles serviram como mensageiros e receberam a patente de Cabo”, disse Vasilyeva. “Soldados fizeram uniformes especiais para cães e costuravam as medalhas neles”.

Muitos anos atrás um monumento em Londres foi inaugurado, prestando tributo aos animais que serviram corajosamente na Segunda Guerra Mundial.

Fonte: The Moscow Times, 11 de maio de 2010 - Via: Sala de Guerra