"Todos os governos vão ter problemas. Alguns vão ter mais que os
outros." Assim a revista britânica The Economist abriu o seu principal
artigo na edição de 12 de março, quando o mundo começava a se dar conta
de como as medidas restritivas para a contenção da covid-19 iriam
impactar o planeta. Diante de uma crise global sem precedentes, líderes políticos podem ter os rumos de suas administrações seriamente alterados.
O
cientista político Fernando Bizzarro havia combinado com o TAB uma
entrevista sobre os problemas que o modelo de democracia liberal vem
enfrentando, e as relações dessas insatisfações com as falhas do
capitalismo, como a desigualdade. Em seu doutorado, na Universidade de
Harvard (EUA), Bizzarro pesquisa instituições, partidos políticos e
regimes, e sua relação com o crescimento econômico.
Mas, em março de 2020, é impossível tratar de qualquer tema sem ao menos passar pelo novo coronavírus
e seus impactos. "Crises geram tensões para a sobrevivência dos regimes
políticos. À medida que as pessoas ficam insatisfeitas, elas procuram
opções", disse ele, no dia 13.
Uma crise da magnitude de uma
pandemia pode intensificar insatisfações que já rondam os regimes
democráticos nos últimos anos. Para Bizzarro, a democracia liberal, o
capitalismo e a globalização vivem seu momento de maior contestação
desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. Entre os motivos, as falhas do
capitalismo e a capacidade de "empreendedores políticos" de reunirem os
insatisfeitos em torno de uma pauta antissistema. Por outro lado, os opositores ainda não têm alternativa ao modelo que criticam.
TAB: O modelo de democracia liberal está em seu pior momento desde o fim da Guerra Fria? É uma crise?
Fernando
Bizzarro: Não tenho dúvida de que o modelo passa por uma crise e que é o
pior momento. A ideia que emerge depois da queda do Muro de Berlim é
que, se não era uma vitória definitiva, pelo menos havia se encerrado o
problema que foi comum na primeira metade do século 20: qual o sistema
econômico e político sobre o qual o mundo se organiza.
No começo
do século 20, havia a disputa entre a democracia liberal capitalista, um
capitalismo autoritário ao redor do fascismo e o comunismo. A vitória
dos Aliados na Segunda Guerra eliminou um; o comunismo autoritário
sobreviveu até a queda do Muro.
Depois de 30 anos com o
capitalismo democrático como único modelo possível, essa superioridade,
essa inescapabilidade da democracia liberal sob o capitalismo está em
disputa. Ainda não existe uma alternativa ao capitalismo como sistema
econômico, mas há contestações claras à democracia liberal
— essa democracia de partidos, sistema robusto de freios e contrapesos
limitando o Executivo, um sistema de limites claros baseados na lei.
O
modelo que se coloca é mais nacionalista, mais autoritário. Ainda tem
componentes eleitorais, mas é muito mais majoritário que liberal, é
muito mais sobre garantir a vontade de uma maioria difusa do que
proteger direitos de minorias e garantir o império da lei.
TAB: A democracia falhou em entregar os resultados prometidos após a queda do Muro?
FB:
Esse processo de democracia e capitalismo tem uma terceira dimensão, a
globalização. Nos países avançados, as fontes da insatisfação com o
regime político não têm a ver diretamente com a democracia, mas com com
seus resultados. A lógica da democracia, do capitalismo e da
globalização, como toda lógica, cria perdedores. Esses perdedores foram
aumentando, principalmente depois da crise econômica de 2008.
Movimentos políticos, empreendedores políticos como Steve Bannon, foram capazes de perceber que havia um público grande não satisfeito com o que estava sendo entregue. Foram capazes de coordenar pessoas que estavam meio soltas na sociedade, sem uma opção.
Fila de candidatos em busca de uma vaga de emprego no PAT (Posto de
Atendimento ao Trabalhador), na estação do Brás, na região central de
São Paulo - Felipe Rau/Estadão Conteúdo
Fila
de candidatos em busca de uma vaga de emprego no PAT (Posto de
Atendimento ao Trabalhador), na estação do Brás, na região central de
São Paulo
Imagem: Felipe Rau/Estadão Conteúdo
Não é que a
democracia não entregou algo que é intrínseco a ela, é da lógica da
política e do desenvolvimento econômico que alguns percam. Mas os
políticos governavam em um contexto em que ninguém discordava muito
desse modelo. Mesmo no caso brasileiro, a nova social-democracia era
voltada para a globalização, para a modernização. Esses empreendedores
políticos ofereceram alternativa.
TAB: O que se sabe sobre a
relação entre satisfação com a economia, desigualdade, empobrecimento e a
qualidade das democracias liberais ao redor do mundo?
FB: Há toda
uma literatura que tenta entender como a percepção que a população tem
da economia (satisfação), a desigualdade, e o desempenho econômico têm
sobre a qualidade da democracia. Em país que vai bem, qualquer regime
vai bem. Mas o oposto também é verdadeiro. Pessoas insatisfeitas com o desempenho econômico
podem se tornar mais tolerantes a medidas autoritárias para resolver
crises. Populistas de esquerda e de direita, novos e velhos, se valeram
dessa predisposição para reorganizar países política e economicamente,
por exemplo.
Sabe-se também que a desigualdade também dificulta a
sobrevivência de uma democracia de qualidade. Entre outros motivos, cria
dissonância entre o discurso político e a experiência cotidiana. Se
você perguntar para um cientista político o que é democracia, vai
receber uma definição baseada em eleições e império da lei. Mas não é
incomum que as pessoas achem que democracia envolve igualdade econômica e
direitos sociais.
Primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, anuncia medidas de contenção ao novo coronavírus - Facebook/Reprodução
Primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, anuncia medidas de contenção ao novo coronavírus
Imagem: Facebook/Reprodução
Com
esse entendimento, algumas pessoas acabam por achar que o regime não
entrega o que promete, apoiando outras opções igualmente problemáticas
ou soluções de curto prazo. Como não existem soluções de curto prazo na
democracia capitalista moderna — as sociedades são complexas e o
desenvolvimento político e institucional é fruto de décadas de escolhas
—, alternativas propostas normalmente têm caráter anti-democrático.
O que é esse movimento que atualmente postula a substituição da democracia liberal?
FB:
Os contestadores ainda não foram capazes de organizar completamente a
alternativa. Algumas ideias estão claras, mas a maioria são ideias
contra alguma coisa: contra a globalização, contra o direito das
minorias etc. É um processo muito no início, o modelo de democracia
liberal que vence em 1990 começou a ser pensado 150 anos antes.
Alguns
traços vêm de movimentos populistas que emergiram como alternativa à
democracia liberal muito antes. Uma característica do populismo é jogar a
dimensão majoritária da democracia — o sistema em que a vontade da
maioria se coloca — contra a dimensão liberal da democracia, o sistema
que é um arranjo de direitos, o império da lei.
Críticas à democracia em protesto nas Ilhas Maldivas, em 2014 - Dying Regime / Wikimedia Commons
Críticas à democracia em protesto nas Ilhas Maldivas, em 2014
Imagem: Dying Regime / Wikimedia Commons
Eles
são "anti" algumas das principais características da democracia liberal
dos últimos 30 anos. À medida que se quer substituir, existe todo um
outro desafio de organizar a produção econômica, a circulação de pessoas
e distribuição de conhecimento. Isso não está posto.
TAB: Onde o Brasil se encaixa na crise das democracias liberais mundo afora?
FB:
Há componentes, o local e o global. O global tem a ver com a
dificuldade do sistema de lidar com questões que repentinamente se
tornaram importantes. O avanço da Lava-Jato e do combate à corrupção
passou a ser um tema fundamental para a escolha eleitoral. E os
partidos, que estavam implicados na questão da corrupção, foram
incapazes de lidar. Daí surgiu esse grupo de desafiantes enfatizando o
tema. Isso é global, um desafio ao qual o sistema partidário é incapaz
de responder por causa da forma que o sistema se organizou recentemente.
O
que não é global é a experiência autoritária. Se pensar, o Brasil foi
uma democracia em menos da metade dos últimos 120 anos. São experiências
autoritárias que foram ruins por diversas razões, mas que nunca foram
completamente desacreditadas, tanto Vargas quanto a ditadura militar.
Isso faz com que exista na cabeça dos eleitores essa ideia de que de
fato há uma outra opção à democracia liberal, um autoritarismo ao qual
se pode voltar toda vez que se tem um problema.
TAB: Como grandes crises globais, como a da pandemia da covid-19, podem abalar democracias?
FB:
Ninguém sabe ainda qual é a dimensão dessa crise. O que nós sabemos é
que crises geram tensões para a sobrevivência dos regimes políticos. À
medida que as pessoas ficam insatisfeitas, elas procuram opções. Também
sabemos que quando temos grandes crises globais — isso foi verdade no
começo do século 20, 1929 gerou uma completa reorganização dos sistemas
políticos mundiais —, normalmente os países mudam de lado, seja de que
lado eles estejam.
Países que eram autoritários e sofrem as
consequências negativas de uma grande crise passam a ser mais
democráticos se as pessoas ficam insatisfeitas com as soluções
oferecidas. E países que eram democráticos tendem ao autoritarismo.
Então, se isso é verdade agora como foi no passado, a previsão para o
período próximo é que vamos ter instabilidade política do ponto de vista
dos regimes. Isso não é uma coisa que é verdade só para a democracia,
mas para os autoritarismos do mundo também. Se eles forem incapazes de
lidarem com a crise, vem instabilidade política.
Cientista
político normalmente é muito ruim para fazer previsão. Mas se a história
ensina alguma coisa, é que nesse tipo de situação, grandes crises
globais geram incertezas e mudanças de regime. Então é possível que o
resultado dessa crise em que nós estamos entrando gere insatisfação e
incertezas políticas que vão afetar tanto democracias quanto ditaduras.
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