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Fichas policiais que vieram das cinzas

Sociedade deve decidir reencontro com passado

Maria Inês Nassif - VALOR ONLINE

Os Centros de Informação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica disseram ter incinerado todas as informações de que dispunham sobre o período autoritário, quando a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, cobrou das Forças Armadas a obediência à determinação de governo, de que todos os arquivos do período fossem encaminhados ao Arquivo Nacional. Apenas a Abin, que está submetida ao governo, obedeceu as ordens de seus superiores. A um pedido da ministra, para que os ministérios apresentassem os protocolos de incineração, os militares responderam que também eles haviam sido queimados.

Não se sabe de que pilha de cinzas, portanto, emergiram as "fichas" dos ministros Tarso Genro e Paulo de Tarso Vannuchi, que foram lidas para os cerca de 500 oficiais que se reuniram no Clube Militar, na semana passada, numa manifestação de apoio à impunidade, segundo eles garantida, pela Lei de Anistia de 1979, aos militares que torturaram e mataram adversários políticos entre 1961 a 1985 (período abarcado pela lei promulgada pelo último general-presidente, João Figueiredo). O general reformado Sérgio Augusto de Avellar Coutinho leu, para uma seleta platéia de oficiais, a ficha corrida da militância política dos dois ministros de um governo legitimamente constituído. No que o general da reserva Gilberto Figueiredo, presidente do Clube Militar, sentenciou: "Vivemos num grande país que se apequena com essas discussões".

A revisão da lei de anistia não deve ser vista como uma discussão, mas como um debate. É assustador para quem está do lado de fora do Clube Militar, todavia, que decorridos 23 anos do fim da ditadura, nada que envolva as Forças Armadas consiga superar o patamar da "discussão" e ascender o do "debate". Ao longo desse período de poder civil, todas as vezes que esse tema foi colocado, provocou reações explícitas ou implícitas dos quartéis - e um recuo correspondente do governo eleito.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva errou feio na tentativa de mediação entre os perseguidos políticos da ditadura e os militares. Conseguiu desagradar a ambos, no discurso que fez na União Nacional dos Estudantes (UNE), onde assinou, na terça-feira, o projeto em que reconhece o envolvimento de agentes do Estado no incêndio, em 1964, da sede da instituição na Praia do Flamengo, no Rio. "Queria dizer que precisamos tratar um pouco melhor os nossos mortos. Toda vez que falamos dos estudantes, dos operários que morreram, nós falamos xingando alguém que os matou. Quando na verdade, esse martírio nunca vai acabar se a gente não aprender a transformar nossos mortos em heróis, não em vítimas, como a gente costuma tratar, várias vezes", disse. A tradução da frase é meio esquisita: Lula disse (é o que parece) que a sociedade deve promover a heróis os mortos da ditadura e suprimir a história, simplesmente desconhecendo que, se eles morreram, alguém os matou. Nem o relato dos martírios que santificaram personagens da Igreja Católica conseguiu tal sublimação.

Governo e militares estão pautando um debate que não é necessariamente deles. É a sociedade que deve definir quais são os pressupostos de uma reconciliação com o seu passado. O papel do Estado, nesse caso, é dar à sociedade todos os elementos de avaliação - e o primeiro direito do cidadão, nesse caso, é à informação. O Ministério Público Federal propôs ação civil pública, reclamando a abertura dos arquivos e argüindo a legitimidade de manter impunes os agentes do Estado que torturaram, com base no fato de que o Brasil integra a comunidade internacional de direitos humanos - e assinou acordos internacionais - que define o crime de tortura, assim como os demais crimes contra a humanidade, como imprescritíveis. Talvez seja o caso de, na ineficácia da ação do governo junto às forças militares para que elas abram os seus arquivos, o MP inquiri-las diretamente sobre a origem das fichas dos ministros lidas para o público militar e pedir à Justiça que determine a abertura desses arquivos que emergem das sombras.

A anistia de 1979 foi, de fato, a anistia possível naquele momento. Mas, como diz o manifesto público que está recebendo maciço apoio de juristas de todo o país, "não se pode esquecer o que não foi conhecido, não se pode superar o que não foi enfrentado". E quem tem que decidir até onde vai esse debate não são os chefes militares, nem o presidente do Clube Militar, nem o presidente Lula, nem o presidente do STF, Gilmar Mendes. Nesse momento, é a sociedade, sem mediações, que faz um importante movimento de encontro com o seu passado. Que nos deixem conhecer o nosso sofrimento.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras