O dia em que um avião pousou na Praia de Iracema

Na manhã de 9 de dezembro de 1927, um biplano francês de número 118 surgiu sobre o litoral de Fortaleza e pousou na areia da Praia de Iracema. Foi a primeira vez que um avião tocou o solo da cidade, em um voo de estudos da companhia francesa de correio aéreo que, mais tarde, ficaria conhecida como Aéropostale.[1][2]

Aquela aterrissagem improvisada transformou por algumas horas a praia em aeródromo e colocou Fortaleza no mapa das futuras rotas aéreas que ligariam a Europa ao Cone Sul.

O correio aéreo e o sonho de atravessar o Atlântico

Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, a França vinha investindo na aviação comercial e, sobretudo, no transporte de correio por avião. O industrial Pierre-Georges Latécoère criou uma empresa para operar linhas aéreas ligando Toulouse ao norte da África, transportando cartas em aeronaves adaptadas do esforço de guerra.[3][4]

O projeto rapidamente cresceu. A ideia era estender a malha para o outro lado do Atlântico, conectando França, África e América do Sul. Em 1927, o controle da empresa passou ao empresário Marcel Bouilloux-Lafont, que adotou o nome Compagnie Générale Aéropostale (CGA). A nova Aéropostale tinha uma missão ambiciosa: costurar o Atlântico Sul com uma sequência de campos de pouso, de Dakar a Buenos Aires, passando pelo Nordeste brasileiro.[4][7][10]

Para viabilizar esse plano, era preciso percorrer as costas africana e sul-americana em voos de reconhecimento, testando distâncias, condições meteorológicas e possíveis locais de apoio. Foi nesse contexto que o litoral do Rio Grande do Norte e, logo em seguida, o Ceará, entraram em cena.[3][5][6]

Paul Vachet, o “abridor de caminhos”

Entre 1925 e 1927, o piloto francês Paul (Paulo) Vachet assumiu o papel de verdadeiro “abridor de caminhos” da Latécoère/Aéropostale na América do Sul. Não era apenas piloto: era representante da companhia, negociador, inspetor de rotas e, muitas vezes, o primeiro europeu a pousar com um avião em determinadas cidades.[3][7]

Em julho de 1927, Vachet já havia sobrevoado o Nordeste e pousado em Natal, escolhendo a planície de Parnamirim como local ideal para um futuro campo de pouso – área que, mais tarde, se tornaria célebre como base aérea durante a Segunda Guerra Mundial.[3][5][6]

A partir de Natal, Vachet continuou descendo e subindo a costa brasileira em voos de estudo. Um desses voos, vindo do Sul em direção ao Norte, o levaria a Fortaleza em dezembro de 1927.[1][2]

O avião 118: o Breguet de correio

As fontes cearenses descrevem o aparelho que chegou a Fortaleza como o “118 da Latecoere, Compagnie Générale Aero-Postale”, equipado com motor de 300 HP, três lugares e velocidade média de cerca de 150 km/h.[1][2]

Essas características coincidem com a família de aeronaves Breguet 14, um biplano metálico-entelado que se destacou na Primeira Guerra Mundial e, depois, foi amplamente utilizado para transporte de correio e passageiros em rotas pioneiras. As versões civis do Breguet 14 empregavam motores Renault 12Fe/F de 300 HP, com velocidade máxima próxima de 190–195 km/h – perfeitamente compatível com uma média operacional em torno de 150 km/h nos longos trechos sobre o litoral brasileiro.[8][9][11]

Robusto, de estrutura em duralumínio e aço, com cockpit aberto em tandem e espaço para correio e pequena carga, o Breguet 14 era uma máquina ideal para linhas ainda em fase experimental, em que pistas improvisadas e vento cruzado faziam parte do cotidiano.


 

9 de dezembro de 1927: a Praia de Iracema vira “aeródromo”

Segundo registros compilados pelo pesquisador Miguel Ângelo Azevedo Nirez (Arquivo Nirez) e por cronistas locais, o primeiro pouso de avião em Fortaleza ocorreu em 9 de dezembro de 1927. Naquele dia, o avião nº 118, pilotado por Paulo Vachet, desceu na areia da Praia de Iracema, em voo de estudos de uma futura linha postal ligando Buenos Aires a Belém do Pará.[1][2]

O “aeródromo” não passava de uma extensa faixa de areia plana, sólida e relativamente desobstruída – solução comum para a aviação pioneira. Em pouco tempo, moradores se aproximaram para ver de perto a novidade: um biplano de guerra transformado em avião de correio, estacionado diante de casas de veraneio ainda de aparência oitocentista. Algumas das fotos preservadas mostram o avião perfilado diante de um casarão, com curiosos ao redor, compondo uma cena que sintetiza o encontro entre o antigo e o moderno.[1][2]

Embora algumas fontes mencionem datas ligeiramente diferentes, a maior parte das efemérides de Fortaleza converge para o dia 9 de dezembro de 1927 como o marco do primeiro pouso de aeronave na cidade.[1][2]

Diplomacia, negócios e futuros aeródromos

Em Fortaleza, o pouso de Vachet esteve longe de ser um improviso. As tratativas vinham sendo conduzidas havia algum tempo pela Casa Boris Frères, tradicional firma francesa instalada na antiga Travessa da Praia – hoje Rua Boris –, que desde o fim do século XIX atuava como uma das principais casas de importação e exportação do Norte do Brasil.[12][13][19][22] Essa filial cearense, ligada à matriz de Paris, não apenas abastecia a cidade com mercadorias europeias como também intermediava negociações financeiras entre o Ceará e a França, inclusive as do próprio Estado.[10][19][22]

Membros da família Boris acumularam, ao longo das décadas, funções de representação consular francesa em Fortaleza. Fontes como Raimundo Girão e estudos recentes de história social registram que Isaie Boris atuou como agente e depois vice-cônsul da França, tornando-se figura de grande influência junto ao comércio e aos poderes públicos locais.[11][20][30] Já Aquiles Boris, outro nome central da família, é lembrado como agente consular francês por muitos anos, cargo posteriormente transmitido ao filho Bertrand Alphonse Boris.[1][8][14]

Nesse contexto, é razoável supor que os entendimentos para a passagem do Latécoère 118 tenham sido articulados por meio da Casa Boris, que funcionava, na prática, como ponte entre a companhia aérea francesa e as autoridades cearenses. Quando Vachet pousa na Praia de Iracema, o governo estadual estava nas mãos de José Moreira da Rocha (presidente do Estado do Ceará entre 1924 e 1928) e a Prefeitura de Fortaleza era chefiada pelo advogado Godofredo Maciel, também nomeado em 1924.[17] O voo experimental acabou aproximando a Compagnie Générale Aéropostale do Executivo estadual e do poder municipal, interessados em ver a capital integrada à futura rede de escalas da linha postal sul-atlântica.

Após as conversas e homenagens, o avião teria pernoitado em Fortaleza e seguido viagem no dia seguinte, rumo ao Norte do país, como parte de um amplo roteiro de reconhecimento que buscava amarrar, na prática, o eixo Buenos Aires–Belém.[1][2][7]

 Outros pilotos, a mesma aventura

O voo que trouxe Vachet a Fortaleza era apenas um capítulo de uma saga maior. Na mesma época, outros pilotos – alguns que mais tarde se tornariam lendários – percorriam as rotas da Latécoère/Aéropostale na América do Sul:

·         Jean Mermoz, que em 1930 faria a primeira travessia sem escalas do Atlântico Sul em serviço postal;

·         Henri Guillaumet, conhecido por sobreviver a um acidente nos Andes;

·         Antoine de Saint-Exupéry, que anos depois escreveria O Pequeno Príncipe, inspirado justamente em sua experiência como piloto de correio.[7][10]

Nem todos passaram por Fortaleza, mas todos operaram no mesmo sistema de linhas sul-atlânticas e andinas que a Latécoère/Aéropostale vinha desenhando desde meados da década de 1920.[3][7][10]

O significado do pouso para Fortaleza

O pouso do avião 118 na Praia de Iracema, visto hoje em perspectiva histórica, representa bem mais do que uma curiosidade pitoresca:

1.      Integração internacional – Fortalece a posição de Fortaleza como ponto de interesse nas primeiras rotas aéreas internacionais, em um momento em que o avião ainda era considerado novidade tecnológica.[1][2][7]

2.      Antecipação da infraestrutura aérea – Antecede, em alguns anos, a criação de aeródromos estruturados no Ceará e acompanha o movimento que levou à consolidação de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, como base-chave do Atlântico Sul.[3][5][6][7]

3.      Memória urbana – As imagens do biplano francês na areia da Praia de Iracema capturam um instante em que a paisagem tradicional de Fortaleza começa a dialogar com a modernidade aeronáutica.

Aquelas poucas horas de 9 de dezembro de 1927 marcaram, simbolicamente, a entrada de Fortaleza na era da aviação – um capítulo que vale ser lembrado sempre que um avião cruza o céu da cidade.

Referências

[1] Agência Fortaleza de Notícias – “Há 95 anos, avião pousava pela primeira vez em Fortaleza”
https://agenciafortalezadenoticias.blogspot.com/2022_12_09_archive.html

[2] Postagem de Miguel Ângelo Azevedo Nirez (Arquivo Nirez) sobre o pouso do avião 118 em Fortaleza (Facebook)
https://www.facebook.com/miguelnirez.azevedo/posts/

[3] Tok de História – “A aviação em Natal nos anos vinte – A presença da Latécoère”
https://tokdehistoria.com.br/tag/pierre-georges-latecoere/

[4] Tok de História – Textos sobre a Compagnie Générale Aéropostale e Marcel Bouilloux-Lafont
https://tokdehistoria.com.br/tag/compagnie-generale-aeropostale-cga/

[5] História nos Detalhes – “Natal século XX: Trampolim em duas vias e em dois momentos”
https://historianosdetalhes.com.br/historia-do-rn/natal-seculo-xx-trampolim-em-duas-vias-e-em-dois-momentos/

[6] Universidade Federal do Rio Grande do Norte – “A aviação em Natal nos anos vinte” (PDF)
https://ftp.editora.ufrn.br/bitstream/123456789/557/1/A%20avia%C3%A7%C3%A3o%20em%20Natal%20nos%20anos%20vinte.pdf

[7] Revista Confins – Artigos sobre a Aéropostale e as rotas do Atlântico Sul
https://journals.openedition.org/confins/10114

[8] Aeroflight – Perfil do Breguet 14
https://www.aeroflight.co.uk/tag/breguet-14

[9] Wikipédia (EN) – “Breguet 14”
https://en.wikipedia.org/wiki/Breguet_14

[10] Wikipédia (PT) – “Aéropostale”
https://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A9ropostale

[11] Raimundo Girão – “Franceses no Ceará” (Academia Cearense de Letras – PDF)
https://academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/1953/ACL_1953_13_Franceses_no_Ceara_Raimundo_Girao.pdf

[12] Fortaleza em Fotos e Fatos – “Uma Casa chamada Boris”
https://www.fortalezaemfotos.com.br/2017/03/uma-casa-chamada-boris.html

[13] Fortaleza Nobre – “Ruas de Fortaleza – Mudanças (Rua Boris)”
https://www.fortalezanobre.com.br/2009/11/ruas-de-fortaleza-mudancas-rua-boris.html

[14] O Povo – “A história dos Boris”
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2012/05/a-historia-dos-boris.html

[15] Bertrand Alphonse Boris – ficha biográfica no site “Les Français Libres”
https://www.francaislibres.net/liste/fiche.php?index=56854

[16] Revista História e Culturas (UECE) – Artigo sobre lazer em Fortaleza com menções à Casa Boris como intermediária de negociações com a França (PDF)
https://revistas.uece.br/index.php/revistahistoriaculturas/article/download/286/214/804

[17] Fundação Waldemar Alcântara – “Fortaleza em perspectiva histórica” (PDF – cronologia de presidentes do Estado e prefeitos)
https://www.fwa.org.br/livros/fortaleza-em-perspectiva-historica.pdf

[19] Blog “Resgatando a Fortaleza Antiga” – nota sobre Casa Boris e intermediação de negociações França–Ceará
https://resgatando4.rssing.com/chan-47164053/all_p4.html

[20] Universidade Federal do Ceará – Tese “Discursos e estilos de docentes de língua francesa em Fortaleza” (menções a Isaie Boris como vice-cônsul)
https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/9698/1/2014_tese_acbgiraud.pdf

[22] Universidade Estadual do Ceará – Artigo “A modernidade e a cultura urbana em Fortaleza” (PDF, referências à Casa Boris Frères)
https://www.uece.br/mahiswp/wp-content/uploads/sites/94/2021/11/Ana-Luiza-Rios-Martins.pdf