O plano franco-russo de Jobim
Como, com equipamento francês e treinamento russo, o ministro pretende reequipar as Forças Armadas e até ampliar o serviço militar
GUSTAVO GANTOIS - Fonte: ISTO é dinheiro - VIA NOTIMP FAB: 252/2008 de 08/09/2008
Nelson Jobim: "Nova atuação faz parte da linha do Conselho de Defesa Sul-Americano"
A DEPENDER DOS MINISTROS Nelson Jobim e Mangabeira Unger, as próximas comemorações do 7 de Setembro deverão servir como um divisor de águas para as Forças Armadas. Em um calhamaço de mais de 100 páginas, pomposamente intitulado Plano Estratégico de Defesa Nacional, que será lançado neste domingo, os dois destrincham idéias para o reaparelhamento das Forças, a organização da indústria bélica nacional e alterações no serviço militar obrigatório. Nos moldes do jeitinho brasileiro, a nova concepção para a defesa mistura alhos com bugalhos, colocando na mesma cesta projetos franceses e russos moldados para os trópicos. Em dezembro, desembarcam em Brasília os presidentes Nicolas Sarkozy, da França, e Dimitri Medvedev, da Rússia.
O primeiro vem assinar o termo de aliança estratégica, que o tornará o parceiro principal na compra de equipamentos e na transferência de tecnologia bélica. Medvedev vai firmar outros três acordos, principalmente na área de informações. O Brasil passará então a contar com armamentos franceses e treinamento russo. Pode parecer estranho. Mas não para Jobim e Mangabeira, entusiastas da independência à hegemonia americana. "Essa nova atuação faz parte da linha de ação do Conselho de Defesa Sul-Americano", afirma o ministro Nelson Jobim.
Um dos principais pontos do plano é a reestruturação da indústria bélica nacional. Na década de 1980, a Engesa colocava caminhões e blindados Cascavel e Urutu nas Américas, na África e na Ásia, e o tanque Osório estava entre os mais avançados. A Avibras exportava dezenas de baterias de foguetes múltiplos Astros II, até hoje entre os melhores materiais do gênero, para o Oriente Médio. Aviões de treinamento Tucano, da Embraer, foram adotados por países como França e Reino Unido. Mangabeira Unger quer mudar o atual quadro de desmantelamento.
Cougar na versão "Mi-35"
Na segunda-feira 8, o primeiro de uma série de contratos ligados à indústria de defesa será apresentado formalmente na Fiesp. É a construção, em Itajubá, de 51 helicópteros EC 725. A fábrica da Helibras receberá da francesa Eurocopter US$ 400 milhões em investimentos para o novo programa, que inclui a transferência de uma linha de produção da Europa para Minas Gerais. O custo do programa é de R$ 4 bilhões. Para a Marinha, está prevista a construção de 53 embarcações, incluindo submarinos, um deles nuclear, e fragatas. Durante a visita de Sarkozy, serão firmados os contratos para a produção de quatro submarinos da classe Scorpène e seis fragatas da classe Fremm. Na Força Aérea os investimentos também são pesados. A concorrência FX-2 para a compra de 12 caças entra na segunda fase no fim do mês. Os Rafale franceses, ao custo de ? 70 milhões, ainda lideram a disputa. Mas a vinda de Medvedev pode alterar o jogo. Os russos prometem o Sukhoi Su35BM, por ? 50 milhões, com participação dos brasileiros no desenvolvimento de um avançado avião de combate, o PAK-FA T- 50, que seria um dos mais avançados do mundo em dois anos. "As respostas mais positivas vieram da França e da Rússia, mas as sinalizações mais positivas e surpreendentes vieram de Moscou", diz Mangabeira Unger. Mas nem todos concordam com a estratégia de misturar fornecedores. "É uma incongruência o governo comprar um tipo de equipamento e receber treinamento de outro", diz o analista militar Álvaro Pinheiro. O plano ainda tem outro ponto polêmico. Jobim também quer alterar o serviço militar obrigatório, criando o serviço civil para acomodar os jovens que são dispensados por excesso de contingente e seriam utilizados na defesa das fronteiras.
Plano prevê elevar gastos para 2,5% do PIB
Cristiano Romero - Valor Econômico
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve fechar amanhã, em reunião no Palácio do Planalto, o "Plano Estratégico Nacional de Defesa", um ambicioso projeto de reequipamento das Forças Armadas e de mudança radical da cultura militar do país. O plano prevê, entre outras iniciativas, a fabricação de caças e outros equipamentos militares no Brasil, a concessão de incentivos fiscais para a indústria bélica nacional, a dispensa de licitação na compra de armas e a exigência de que o serviço militar passe a ser efetivamente obrigatório. O projeto estima que, em cinco anos, os gastos militares saltarão de 1,5% para 2,5% PIB (cerca de R$ 69 bilhões).
O plano foi feito por comitê presidido pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e coordenado pelo ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger. Seria divulgado ontem, durante as festividades do Dia da Independência, mas a visita da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, fez o presidente Lula adiar o anúncio. Para elaborar o plano, Jobim e Mangabeira debateram o tema com ministros e lideranças militares.
Um dos aspectos mais importantes do plano é "reconstruir" a indústria bélica nacional. Jobim e Mangabeira estão propondo ao presidente a adoção de um regime jurídico e tributário especial para as empresas, livrando-as, inclusive, da necessidade de participar de licitações na venda de equipamentos às Forças Armadas. "Empresas privadas de defesa não podem ser tratadas como empresas quaisquer, mas no Brasil elas são", disse Mangabeira ao Valor.
Em contrapartida, o governo passaria a exercer um "poder estratégico" sobre essas empresas. A idéia é fazer isso por meio de "golden share", ação especial que dá ao acionista o poder de veto numa companhia, ou de licenciamentos regulatórios, um sistema muito usado nos EUA. No caso dos licenciamentos, o governo apresenta uma longa lista de exigên
cias à empresa interessada em se beneficiar dos incentivos. "Essa dependência de aprovações é tão abrangente que, no fundo, é como se houvesse uma superdiretoria lá no governo dizendo "faça isso" ou "faça aquilo"", disse Mangabeira.
Com o plano de defesa, Mangabeira quer que o Brasil deixe de ser um mero comprador de aviões militares. A ambição é, além de exigir a transferência de tecnologia, negociar a criação de joint ventures de empresas estrangeiras com nacionais para produzir caças no país. O ministro reconhece que o governo vive um dilema, na medida em que a Força Aérea Brasileira necessita renovar a frota entre 2015 e 2025.
Há negociações, neste momento, para a compra de aviões produzidos na França e na Rússia. Jobim e Mangabeira querem aproveitar a compra para negociar parcerias. O ministro de Assuntos Estratégicos assegura que o Brasil não comprará de quem não aceitar, já neste momento, a transferência de tecnologia. "Não vamos entrar numa relação em que penda sobre nossas cabeças a espada de Dâmocles de uma grande potência que use a nossa dependência tecnológica para induzir uma tutela política", afirmou, em uma crítica velada aos americanos, que rejeitam transferir tecnologia bélica.
Outro ponto do pacote diz respeito ao serviço militar. O plano prevê dois caminhos. O primeiro é manter o serviço como está. A única diferença é que, ao longo do serviço militar, as Forças Armadas ofereceriam educação regular aos soldados, além da militar. A segunda opção é que todos os brasileiros em idade para se alistar passem a se apresentar obrigatoriamente, cabendo às Forças Armadas escolher os mais aptos a servir. Numa segunda etapa, os que não fossem aproveitados prestariam o serviço social obrigatório, de preferência numa região do país diferente da sua. Nesse serviço, receberiam treinamento militar "rudimentar" e comporiam a Força de reserva.
Mangabeira acredita que essa é a parte mais controvertida do projeto. A decisão caberá ao presidente Lula. "Queremos cuidar para que as Forças Armadas continuem a ser a própria nação em armas e não uma parte da nação paga pelas outras partes para defendê-las. Sobretudo numa sociedade tão desigual como a nossa, elas são um nivelador republicano, o espaço no qual a nação pode se encontrar acima das classes", diz.
Um ponto polêmico da proposta é a integração das ações das Forças Armadas, acostumadas a atuar de forma segmentada no Brasil. Mesmo elogiando as lideranças militares, especialmente as escolas dos oficiais, Mangabeira admitiu que não há consenso, mas assinalou que a implementação do projeto não depende do presidente, mas do país.
"Não é fácil para nenhuma Força armada enfrentar uma proposta de grande transformação", assinalou. "O centro do debate da defesa é, de um lado, o alcance das nossas ambições, se nos levamos a sério ou não. De outro lado, é o nível de nossa disposição para o sacrifício. A moeda da defesa é o sacrifício. Em última instância, é a disposição para morrer, mas, antes disso, é a disposição para comprometer os nossos recursos e nosso tempo, o tempo da nossa juventude."
Segundo Mangabeira, com o plano, haverá um "triplo imperativo" para as três Forças armadas. O primeiro é o monitoramento. A preocupação, nesse caso, é assegurar que, dentre as tecnologias utilizadas para monitorar o país, os militares não dependam apenas de tecnologias estrangeiras. O ministro afirma que o Brasil não tem nenhum controle sobre os sistemas de localização, como o GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global).
A idéia é que o país desenvolva satélites, veículos lançadores, sistemas de localização, um complexo de tecnologias espacial e cibernética. "É intolerável que, numa situação de conflagração mundial, percamos a possibilidade de visualizar o país e de guiar os nossos veículos aéreos e marítimos porque o sistema de localização pode ser desconectado a qualquer momento."
O segundo imperativo é a mobilidade. A avaliação é que um país de dimensões continentais como o Brasil, que faz fronteira com dez nações e tem uma fronteira marítima de 8 mil km, as Forças armadas não têm como estar presentes em toda a região de fronteira. Por isso, a eficácia da ação militar depende de tecnologias e capacitações de mobilidade. O plano é que a vigilância do território nacional e do mar territorial, especialmente das plataformas de petróleo, passe a ser feita por um sistema integrado de monitoramento a partir da terra, do ar e do espaço.
"O horizonte do projeto, e isso se aplica a todas as Forças, é uma cultura militar pautada pela flexibilidade, a audácia, a imaginação e a capacidade de surpreender e de desbordar [ultrapassar os limites]. Não seremos os mais poderosos. Sejamos, então, os mais audaciosos e imaginativos".
Mangabeira disse que o objetivo do projeto não é "apenas" reequipar as Forças Armadas, mas "transformá-las". "Uma das premissas da integridade do regime republicano e das Forças Armadas é a primazia do poder civil sobre o militar, que só se completa quando os civis lideram as discussões sobre defesa", disse. "A discussão não poderia ser delegada aos militares, senão se transformaria num pleito por dinheiro. Apareceria aos olhos do país como mais um lobby, como é, aliás, a situação de todas as corporações no Brasil."
Ontem, após o desfile do Dia da Independência, Mangabeira afirmou que, como o plano exigirá sacrifícios financeiros, será atacado. "Quando o plano for lançado, será atacado por formadores de opinião. Vão acusá-lo de desperdício de dinheiro e de ser instrumento armamentício". Mas ele acredita que vencerá a "batalha" contra os críticos. "Não são ataques previsíveis, mas também indispensáveis porque a resposta vai propiciar uma dialética de esclarecimento, vai construir condições para um grande debate nacional. É a nação que terá de decidir até onde vão as suas ambições e o seu sacrifício". (Colaboraram Juliano Basile e Mônica Izaguirre)
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