Da guerra para a vida civil
Fonte: Revista Época
Como o investimento nas mais modernas tecnologias militares se transforma em benefícios para o dia-a-dia de todos nós
Lia Vasconcelos
EMBRAER 190
O avião em que voam civis se origina do pioneirismo das pesquisas gestadas pela Aeronáutica
Canhões poderosos, trincheiras, grossas blindagens, tudo isso está ficando rapidamente para trás quando se trata de defender uma sociedade contemporânea. A guerra atualmente se decide com o domínio de cinco conceitos de alta tecnologia, representados no jargão militar pela sigla 4Ci: comando, controle, comunicação, computação e informação. A fórmula também tem outro nome: Network Centric Warfare (NCW) ou, em português, Guerra Centrada em Rede.
O que é isso? Eis a definição do brigadeiro engenheiro Venâncio Alvarenga Gomes, do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), de São José dos Campos: “É a criação de uma rede de sensores, centros de comando e controle, além de sistemas de armas, tudo integrado com o objetivo de transformar o gerenciamento de informações em superioridade estratégica”.
Tradução para os leigos: a guerra se passa como se fosse travada num terminal de computador de alta velocidade, cujos sistemas facultam o uso simultâneo de imagens de televisão, som ambiente do campo de luta, canais de voz para que as instruções subam e desçam na hierarquia sem ruídos ou interferência e memória com capacidade suficiente para que os generais acessem tudo. Assim, do vértice da cadeia de comando, os comandantes podem enxergar a cena completa antes de disparar instruções.
É por causa do NCW que os soldados na vanguarda, além de armas e coletes à prova de balas, envergam aqueles capacetes amarrados com tira de velcro, que têm microfone e ponto de áudio embutidos, além de minicâmera de TV escondida no topo, como um pequeno periscópio. Eles servem para registrar e transmitir ao posto de comando, na retaguarda, tudo o que aparece no raio de visão de cada combatente. Quando um deles leva um tiro, o comandante pode informar ao substituto a provável localização do atirador. O sensoriamento humano pode ainda ser acompanhado por satélites espiões, que transmitem as cenas do deslocamento a partir de um posto de observação espacial.
Tanta informação junta requer uma tecnologia muito superior à disponível nos sistemas comerciais de informação, de uma geração anterior à da rede de uso militar. A NCW exige os recursos mais avançados de tecnologia da informação, com a transmissão de dados por satélite em banda larga e softwares capazes de distribuir o processamento em rede de modo seguro. Além disso, é preciso garantir a transferência eficaz de informações entre as redes com diferentes níveis de segurança e sigilo, por meio dos mais modernos recursos de codificação e criptografia dos dados. E acessar as informações mais precisas do sistema de Satélites de Posicionamento Global (GPS) nos ambientes terrestre e urbano.
O Brasil tem um domínio tecnológico incontestável nesse campo. Principalmente graças aos centros de pesquisa que gravitam em torno do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a faculdade de Engenharia que a Força aérea fundou em 1948 e se tornou fonte de conhecimento capaz de gerar empresas como a Embraer. Ou instituições privadas de conhecimento, como a Atech, responsável pela inteligência que faz do Brasil um dos seis países no mundo com domínio do controle de tráfego aéreo. O Exército e a Marinha têm, igualmente, seus pólos de excelência na pesquisa aplicada, mas, na sociedade contemporânea, as pesquisas com mais brilho e impacto vêm do setor aeroespacial.
O ciclo de aquisição do conhecimento a partir da pesquisa militar está na raiz da rápida evolução da Embraer. A empresa fazia turboélices até o começo da década de 80, quando a Força aérea Brasileira decidiu fazer, aqui mesmo, um jato de ataque ao solo, o AMX, em projeto conjunto com a italiana Aeromacchi. Foi quando os técnicos adquiriram o conhecimento necessário para executar o processo de amarração da poderosa turbina dos jatos de combate à nacela metálica que forma a estrutura do avião. Disso acabou surgindo uma família de jatos comerciais que hoje domina o mercado mundial de vôos regionais.
CAÇA AMX
O avião militar é fruto da decisão da FAB de desenvolver um jato com a italiana Aeromacchi
De modo similar, nos Estados Unidos, surgiu a internet, rede de computadores que se propagou como ferramenta de acesso a informações eletrônicas. Ela entrou no ar em 1969. Era um meio seguro para troca de informações entre bases militares, mesmo que houvesse um ataque nuclear que as isolasse fisicamente. A eficácia do sistema ficou comprovada definitivamente em 1991. As tropas que invadiam o Iraque tentaram neutralizar a rede de comando erigida pelo regime do ditador Saddam Hussein. Descobriam estar atacando sua própria criação.
Parece estranho falar em desenvolvimento de tecnologia para a guerra em tempos de paz. Mas todo especialista concorda que, fora seu papel fundamental na soberania de um país, o sistema de defesa contribuiu para que as empresas brasileiras ingressassem na era da inovação. O pesquisador Waldimir Pirró e Longo, do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, conta que inúmeras tecnologias de produtos, processos ou serviços desenvolvidas especificamente para atender às necessidades militares de defesa acabaram sendo usadas como produtos no dia-a-dia (leia o quadro abaixo).
“Precisamos dominar o ciclo completo desse conhecimento”, afirma Tarcísio Takashi Muta, presidente da Atech. “Só com estratégias de longo prazo controlaremos as tecnologias que alicerçam a informação e a interpretação dos acontecimentos. É preciso conquistar o ciclo completo dessa engenharia para não sermos escravos eternos de importações de equipamentos”. O legado tecnológico futuro seria, portanto, mais um benefício do investimento em tecnologia militar no Brasil do presente.
A caserna e as ruas
Tecnologias militares que transformaram o cotidiano
GPS
Motoristas chegam a locais inacessíveis graças ao sistema de localização. O Departamento de Defesa de Washington pagou US$ 10 bilhões para cobrir de sinais com seus 28 satélites o globo desde 1996. Pode desligá-los se quiser.
Forno Microondas
Percy Spencer testava um radar. A barra de chocolate derreteu em seu bolso. E o milho da pipoca estourou em nevados flocos a cada ação do circuito magnético. O achado do oficial da Marinha dos Estados Unidos invadiu cozinhas com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Internet
Um quinto da população mundial acessa a rede. Em 1969, o Pentágono a criou para trocar informações mesmo sob um ataque nuclear. Levou 27 anos para qualquer computador poder usá-la.
Projéteis banhados com Teflon
O polímero plástico à base de flúor ganhava aderência se combinado a moléculas de ferro. Depois, espalharam-no numa frigideira. Levou cinco décadas para que um fabricante o aplicasse à ponta de suas carabinas. Ele destroçou coletes à prova de balas.
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