Os pés de barro de um gigante
Fonte: Revista Epoca
Um exercício teórico para defender nossas jazidas revela a penúria bélica que o país vive desde 1910
Roberto Lopes
SEMPRE ALERTA
O porta-aviões São Paulo na costa carioca. Se ele precisar entrar em ação, o Brasil não terá como dar conta da tarefa.
Do litoral da Bahia até o porto estratégico de São Sebastião, na costa paulista, quase 10 mil marinheiros, soldados e aviadores se embrenharam num jogo de ataque e defesa em torno de uma jazida batizada de Yptu – anagrama de Tupi, primeiro grande campo de petróleo descoberto na camada do fundo do mar conhecida como pré-sal, ao largo da Bacia de Santos. Apenas parcialmente fictícia, ela inspirou, numa semana de setembro último, o exercício militar mais importante de 2008 realizado por militares das três forças brasileiras, equipados com 17 navios, 40 aviões e 327 veículos terrestres, em treinamento planejado por um semestre.
Na prática, o principal ator naval da Operação Atlântico – o porta-aviões São Paulo – foi dispensado. É que somente um de seus 12 jatos A-4 Skyhawk, espinha vertebral do poder dissuasório naval brasileiro, estava em condições de voar com motor novo, pois o contrato assinado com a Embraer para reaparelhar esse esquadrão de segunda mão, adquirido do Kuwait em 2000, foi congelado.
Entre cenas nos telejornais da noite do encerramento da manobra, com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, a operação vestiu com traje de gala uma situação de penúria material que só tem paralelo na história do Brasil independente do início do século XX. Governo federal e meios políticos reconhecem o quadro. No Congresso, em janeiro, o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Juniti Saito, falou secamente no atual estado de obsolescência da frota de 720 aviões e helicópteros. No mesmo plenário, o comandante do Exército, general Enzo Peri, revelou que muitos soldados ainda se exercitam com fuzis da longínqua safra de 1965, presenteados à força de paz que debelou uma crise interna na República Dominicana.
“Raros são os que, no Brasil, entendem que segurança nacional é um bem público. E que nos cabe zelar por ela, haja, ou não, ameaças concretas no horizonte”, diz o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, especialista da Universidade de Campinas (Unicamp) em assuntos de defesa, explicando a falta de ressonância das advertências militares.
No Exército, há 190 mil homens e mulheres distribuídos por 900 quartéis. Ao menos 78% dos tanques são usados há 34 anos, 58% das viaturas há mais de 20, e a tecnologia de quase toda a artilharia foi desenvolvida na Segunda Guerra Mundial. Na Marinha, os 49 mil militares aposentaram, por falta de recursos, 21 navios de 1996 a 2005. As tripulações passam a maior parte do ano em terra. No começo deste milênio, o total dos dias de mar somou 2.161 – em 2004, foram somente 1.250.
Nesta crise, o limite fica a um passo do ridículo. Quando a França perguntou ao Brasil, em janeiro, se poderia exercitar seus caças navais no convés do porta-aviões São Paulo, cinqüentão arrematado em pechincha à própria França, os almirantes aquiesceram honrados pelo exercício conjunto. A seguir negaram, tamanho era o atraso na reforma do enorme barco de guerra.
A Aeronáutica expandiu o efetivo para 73 mil oficiais e praças, mas encolheu os vôos. Oito em cada dez de suas aeronaves têm mais de 17 anos de uso. Somente 37% delas estão disponíveis para ações de defesa. Saito, piloto de jatos supersônicos F-5, comparou as Forças aéreas na América do Sul em 12 telas regionais, para os parlamentares. O Brasil emergiu como um gigante com pés de barro, cuja vantagem se restringe a aviões de vigilância a longa distância e de alarme aéreo antecipado, fabricados pela Embraer com tecnologia própria, e a sua capacidade de reabastecer outros aviões em vôo.
Nas aeronaves de caça e de bombardeio, de aptidão para defesa aérea no sentido estratégico, de jatos de reconhecimento, de helicópteros de ataque e de transporte, de mísseis de médio alcance e da disponibilidade de bombas inteligentes, Peru e Venezuela disputam a liderança. Em interceptadores, jatos supersônicos que fazem a dissuasão estratégica, o Chile lidera. E os venezuelanos, ao receber os Su-30 da Sukhoi russa, conquistarão superioridade.
Mudanças só quando o Brasil receber os 36 aviões em licitação no exterior até o fim de 2009, a ser entregues vários anos adiante. Hoje, dos 171 aviões de combate em condição de voar com as cores da FAB, figuram 12 Mirages 2000, alojados na goiana Anápolis, considerados aptos a proteger Brasília até 2015. Há também 47 veteranos F-5E, em reforma por um consórcio com uma empresa israelense. E outros nove, comprados na Arábia Saudita em 2006, além de jatos 53 AMX, de velocidade reduzida para ataque ao solo, e 50 Super Tucanos igualmente em serviço.
Essa frota rarefeita dá um aparelho para cada 50.000 quilômetros quadrados do território nacional, em relação a uma concentração dez vezes maior no Peru, prestes a ser alcançada pela Venezuela. Apesar disso, o tecido industrial implantado no Brasil garante uma capacidade de recuperação incomparável na região. A Aeronáutica dispõe de uma infra-estrutura de ensino e de pesquisa sem rival, com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica e o Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial. Mas essa reserva de saber é só uma derradeira linha de segurança para salvar o núcleo de excelência. Se precisar agir, o Brasil não tem como dar conta da tarefa. O principal desafio, como se vê na reportagem a seguir, é defender a Amazônia.
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