O presidente paraguai Fernando Lugo, eleito em 2008 com apoio da esquerda


Sucesso na negociação com Brasil é vital para a frente que elegeu Lugo

Fonte: Valor Online - Maria Inês Nassif, de São Paulo

As reivindicações do governo paraguaio sobre o contrato da binacional Itaipu estão longe de ser apenas um assunto da política externa do país vizinho. São, antes de tudo, um problema de política interna. Não podem também ser tomadas como uma estratégia de marketing do presidente Fernando Lugo, destinada a comover as massas em seu favor. Nada é assim tão simples.

A revisão do acordo de Itaipu, cuja primeira intenção foi registrada na Ata de 1966 por dois governos ditatoriais, e cujo pontapé inicial foi o Acordo de 1973 assinado igualmente por duas ditaduras, foi o cimento da ampla frente oposicionista que se formou em torno de Lugo e possibilitou a derrubada de um reinado de 60 anos do Partido Colorado. A unidade interna em torno de Lugo, que permitirá espantar de vez da história do país as ditaduras disfarçadas em democracias coloradas, dependem de mudanças nessas relações bilaterais.

A eleição do bispo Fernando Lugo é considerada, pela ampla frente que viabilizou a sua vitória, como o momento verdadeiro da redemocratização do Paraguai: o ditador Alfredo Strossner esteve no poder de 1954 a 1989, e foi deposto pelo seu Partido Colorado, que para o público externo tingia a sua ditadura com disfarces de normalidade. O partido seguiu dominando o país com uma sucessão de presidentes e eleições duvidosas até a vitória do bispo Fernando Lugo, partidário da Teologia da Libertação que conseguiu reunir em torno de si uma grande aliança, da direita desencantada, antes abrigada no Partido Colorado, até segmentos mais radicais da esquerda.

A Binacional Itaipu, concebida no período das ditaduras Strossner, do lado de lá, e do general Emílio Médici, de cá, foi a obra e a empresa que alimentaram uma elite política que enriqueceu e se manteve no poder por todo esse tempo. Essa elite é chamada pela oposição de "los barones de Itaipu". Segundo define um integrante da esquerda, hoje no poder, eles formam uma "burguesia fraudulenta" cujos negócios com o Estado paraguaio e com a empresa paraguaio-brasileira foram suas principais fontes de renda.

Itaipu está para a militância oposicionista do Paraguai assim como a campanha Diretas Já estava para a unidade das forças contra a ditadura do Brasil, em 1983/1984. Em 1973, quando Strossner e Médici criaram a Comissão Brasil-Paraguai para avaliar o potencial hidrelétrico do Rio Paraná, a oposição contra a obra passou a ser um fator agregador dos adversários da ditadura paraguaia. Itaipu, para os setores mais à esquerda da oposição democrática a Strossner, não era apenas a expressão de um projeto de permanência da ditadura paraguaia, mas também de um projeto imperialista - e expansionista - da ditadura brasileira.

As forças que se opõem aos termos do acordo de Itaipu, na verdade, o questionam há 35 anos. O que aconteceu de diferente no último ano é que foram derrubados do poder "los barones de Itaipu" e ascenderam seus opositores. A revisão do contrato é importante para o Paraguai dos pontos de vista interno e externo. Internamente, porque toda a unidade política contra essa elite formada em torno da riqueza de Itaipu foi feita assumindo-se como princípio de que a "privatização" dos recursos provenientes da associação entre os dois países enriqueceu-os; a "estatização" dos lucros apropriados por poucos poderá democratizar os seus benefícios.

Do ponto de vista da política externa do novo governo paraguaio, trata-se de estabelecer uma relação que pareça mais igual com o Brasil. "A ditadura brasileira resolvia qualquer problema com o governo paraguaio concedendo migalhas e beneficiando as elites", afirma um colaborador do governo Lugo. As negociações em torno do contrato de Itaipu, por essa razão, têm que fugir desse padrão.

Não tem como o Paraguai dar o calote numa empresa que tem o total controle brasileiro, mas a expectativa do governo, e da ampla frente que o elegeu, é que o resultado da negociação com o Brasil solidifique a frente que derrotou o Partido Colorado. Se der errado, as fissuras serão inevitáveis.

Paraguai mobiliza movimentos sociais no Brasil por Itaipu
Marcos de Moura e Souza, de São Paulo
Fonte: Valor Online
Para conquistar apoio no Brasil para sua proposta de mudanças nas regras em Itaipu, o governo do Paraguai está investindo numa estratégia diplomática incomum. Aliados do presidente paraguaio Fernando Lugo e representantes diretos do governo têm mantido contato com movimentos sociais brasileiros e entidades sindicais para tentar difundir o argumento de que o Paraguai tem sim o direito a receber mais pela energia que vende ao Brasil e que a dívida da obra da hidrelétrica deve ser reavaliada.
AP
Stedile, do MST: "É uma questão de justiça social e de soberania, que defendemos para o Brasil, e para todos os povos"

A investida "social" corre em paralelo às negociações que os dois governos iniciaram no ano passado a pedido de Lugo. "Nossa intenção é que se dissemine, nesses meios, os argumentos pró-negociação que não circulam nos meios oficiais", disse ao Valor um dos negociadores paraguaios, sob a condição de não ter seu nome mencionado. Trata-se, segundo ele, de uma estratégia "de guerrilha" para conquistar a opinião pública brasileira e, conforme diz, furar o bloqueio das informações oficiais sobre as negociações entre os dois governos. A campanha do governo paraguaio também está sendo levada a universidades e a intelectuais de esquerda no Brasil.

O governo brasileiro joga o mesmo jogo e também tem levado a segmentos sociais no Brasil seus argumentos contra a revisão do tratado. O Valor apurou que funcionários de Itaipu também mantiveram reuniões com movimentos sociais e setores de esquerda no Brasil para tratar do tema (leia matéria nesta página).

Apesar de ter concordado em instalar uma mesa de diálogo e de ter aceito há poucas semanas que o Paraguai realize uma auditoria da dívida restante de US$ 19 bilhões da construção da usina binacional, Brasília mantém a posição de não aceitar mudanças no tratado nem revisões significativas do preço da energia.


Mas fora dos gabinetes e das reuniões bilaterais, o Paraguai aos poucos vai arregimentando apoio no Brasil entre segmento próximos ao PT e ao governo Lula.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma das principais organizações que abraçaram a causa de Lugo. Nos acampamentos e assentamentos pelo país, as questões sobre a hidrelétrica e a campanha paraguaia já viraram tema de discussão entre os sem-terra. "Por ora, nós estamos distribuindo entre a nossa militância os documentos e argumentos do povo do Paraguai, para que haja informação e conhecimento", disse ao Valor João Pedro Stedile, principal dirigente do MST. "Se for necessário, faremos no futuro manifestações de solidariedade ao povo do Paraguai" acrescenta.

A direção do MST, continua Stedile, está discutindo a questão de Itaipu com movimentos sociais brasileiros vinculados à Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba, grupo criado pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez) e à Assembléia Popular, como a CUT, CTB, Marcha Mundial da Mulheres e Grito dos Excluídos.

Foi, segundo Stedile, a chamada Frente Popular e Social - que reúne movimentos sociais paraguaios que apóiam e integram o governo Lugo - que pediu aos congêneres brasileiros que se unissem em torno da principal bandeira do presidente paraguaio: mudanças em Itaipu. Além do preço e da dívida, Lugo, ex-bispo católico de esquerda, eleito no ano passado após 61 anos de governos do Partido Colorado, defende que seu país passe a ter também liberdade para vender os 50% da energia que lhe pertencem a outros países e não apenas ao Brasil - como acontece hoje.

"Essa frente [paraguaia] tem relações com a Via Campesina Brasil, com os movimentos sociais que estão na Alba e com a Assembléia Popular aqui no Brasil. Então, eles vieram ao Brasil e pediram ao conjunto dos movimentos sociais brasileiros apoio para a causa deles, que, de certa forma, é nossa também", diz Stedile. "É uma questão de justiça social e de soberania sobre os recursos naturais. Princípios que defendemos como movimentos sociais, para o Brasil e para todos os povos do mundo."

Outra organização brasileira que passou a apoiar a reivindicação paraguaia é o Movimento dos Atingidos por Barragens. O MAB reúne entre seus militantes famílias ameaçadas ou atingidas direta e indiretamente por barragens. Nos anos 80, famílias atingidas pela formação do lago de Itaipu ajudaram a criar a organização. "A partir de 2009, vamos fazer todos os esforços para ajudar o povo do Paraguai", diz Luiz Dalla Costa, da coordenação nacional do MAB.

Uma das possibilidades, diz ele, é uma "campanha para esclarecer à opinião pública brasileira que o que o Paraguai está pedindo não é algo absurdo". Segundo Costa, o MAB passou a se interessar pela discussão ainda na campanha eleitoral paraguaia em 2007. "Depois tivemos contatos com o Gustavo Codas e com o Ricardo Canese e também com organizações do Brasil ligadas à Alba." Codas é assessor do Ministério das Relações Exteriores paraguaio; Canese é coordenador da Comissão de Negociação de Itaipu pelo governo paraguaio.

Costa repete os mesmos argumentos de dez entre dez paraguaios envolvidos na discussão sobre Itaipu. Fala, por exemplo, das tarifas de energia pagas pelos brasileiros, que estariam entre as mais altas do mundo, não porque a energia de Itaipu seja cara, mas sim "porque as grandes empresas que distribuem energia no Brasil ganham dinheiro e cobram muito". E fala em exploração. "Não gostamos de ser explorados e não queremos que o Brasil explore outros países."

Esses argumentos têm sido contestados publicamente e reuniões com o MST, CUT e PT pelo governo brasileiro com números e com os termos do Tratado de Itaipu. Dados que aparentemente têm tido um apelo muito menor entre movimentos sociais no país.

Até a Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical brasileira e historicamente ligada ao partido do presidente, parece não ter se convencido dos argumentos do governo brasileiro e prepara encontros entre dirigentes sindicais do Brasil e do Paraguai em 2009 para tentar se posicionar sobre a disputa. "Esse tema sempre ficou muito restrito à diplomacia. Nosso objetivo é ter uma opinião do ponto de vista sindical, observando os pleitos do Paraguai e do Brasil", diz o presidente da CUT, Arthur Henrique.