Por dentro da base aérea de Canoas
Fonte: Zero Hora - MARCELO FLEURY | marcelo.fleury@zerohora.com.br
Fonte: Zero Hora - MARCELO FLEURY | marcelo.fleury@zerohora.com.br
À caça, Pampa
Osório será atacada. Como sempre.
Faltam 10 minutos. Os dois agressores ainda estão a 85 quilômetros, parados. Cada um ocupa um F-5 recentemente modernizado, mas que se tornará relíquia em alguns anos. Diante deles, uma linha de 2.750 metros de asfalto termina num mato sem cachorro, mas com muitos casais de quero-quero.
Osório será defendida. Sempre é.
Os dois guardiões dividem a pista com o inimigo, igualmente a bordo de um avião que pode voar além da barreira do som, mas não leva caixa-preta alguma. Aviões militares não têm isso. Ambos se concentram na mesma tira cinzenta que corta o mato – no qual, além dos quero-quero, vê-se uma torre verde.
Não se sai do chão sem o ok da torre. Dentro dela, uma sargento loira escrutina o horizonte com binóculos, enquanto outro sargento fala com uma das duplas:
– Pampa blue, cleared to take off, wind 170 degrees, nine knots.
É a autorização para a decolagem – em inglês, como de resto a comunicação em voo, porque habilita os envolvidos para operações internacionais. No comando da dupla Pampa Blue, o capitão Luiz Cesar Zampier leva a 100% as manetes que controlam os dois motores de seu F-5. O jato avança alguns metros na pista antes de o piloto empurrar para além dos 100% a alavanca de potência, fazendo o combustível jorrar na parte de trás do motor e pegar fogo imediatamente. É o chamado pós-combustor, que dá um solavanco no avião e o faz rugir, antes de disparar.
Blue é como se chamam os mocinhos, red são os vilões. Pampa é a alcunha do esquadrão de caças da Base Aérea de Canoas, cujo símbolo é uma versão gaúcha do Zé Carioca, sorvendo mate e de metralhadora .50 no colo, sob o slogan: Já te atendo, tchê. E essa é sua rotina.
A 300 km/h, a trepidação da corrida cessa. Os dois F-5 que defenderão Osório ganham o ar, no rumo Leste. A subida vertiginosa faz inflar um macacão especial que não deixa o sangue do piloto descer demais, de maneira a faltar-lhe na cabeça e colocá-lo a nocaute. Um desmaio seria fatal.
De imediato, saem do controle da torre de Canoas e passam ao de Porto Alegre, que lhes ordena uma curva brusca à esquerda. Eles vão defender Osório, é verdade, mas a prioridade é o tráfego civil, que, neste dia, flui no sentido inverso – de Leste para Oeste – no aeroporto Salgado Filho, seis quilômetros ao sul. Um avião da TAM vem para pouso na Capital, o que leva os controladores a segurar no chão, mais um pouco, a outra dupla, ou ela decolaria na direção do voo que se aproxima.
As duas equipes que participam do exercício fizeram um briefing conjunto. Após, se dividiram em salas contíguas, onde cada uma desenhou sua estratégia. Missões como essas são realizadas todos os dias na base. Chamam-se Combate BVR e consistem basicamente da seguinte regra: os que atacam têm de achar uma maneira de entrar numa área retangular pré-determinada acima das lagoas e do mar no Litoral Norte. Os que defendem não podem deixar isso acontecer. Voam entre dois e 12 quilômetros de altura sem nunca enxergar o inimigo. Por isso a sigla BVR: abreviação, em inglês, de “além do alcance visual”.
Não existem mais combates aéreos do tipo travado na II Guerra Mundial ou daqueles popularizados no filme Top Gun. O poder e alcance dos armamentos, hoje, fazem com que um avião de caça derrube outro sem jamais o ver, a não ser pelo radar. Na guerra do Iraque, por exemplo, os caças da Saddam Hussein não tiveram sequer a chance de sair do chão, destroçados pela aviação americana.
– Antigamente, praticamente se olhava dentro dos olhos do inimigo. Depois nem tanto nos olhos, mas se enxergava o outro avião. Hoje não se vê mais nada – diz Zampier.
O capitão já está quase em Osório, onde espera a dupla inimiga. Ele nasceu em Curitiba. Estudava Engenharia Química e dava aulas de matemática e física quando resolveu fazer o teste para Academia da Força Aérea – que fica em Pirassununga, no interior paulista. Só queria ver como era a prova. Passou e decidiu seguir carreira.
O voo da TAM vem devagar, então o controle de Porto Alegre revê sua decisão e autoriza a partida da dupla Pampa Red, repetindo a ordem de curva à esquerda após a decolagem. A torre de Canoas repassa as instruções, informa o vento e dá o ok para o início do duelo.
Cada avião carrega mísseis virtuais, acionados por um botão vermelho no manche. Disparos são gravados por câmeras e registrados numa espécie de hard disk de bordo, que os pilotos levam consigo para a sala de debriefing, onde descarregam as informações a fim de saber quem levou a melhor na batalha. A sala fica em um prédio onde há um simulador de voo que testa pilotos antes de colocá-los em situações reais nos céus do Estado. O prédio, por sua vez, fica ao lado do hangar dos F-5, em cuja parede se lê: “Os melhores são de caça. Os melhores de caça são Pampa”.
Aparenta provocação, porque na própria base há pilotos de Bandeirante, um avião a hélice, e existem caças a jato nas bases de Anápolis (GO), Santa Cruz (RJ) e Santa Maria. Mas é uma frase para reforçar a autoestima, algo que já acontece às 9h de todo dia, quando a formatura de início de expediente termina com uma ordem de fora de forma dada pelo comandante – “Esquadrão, à caça” –, seguida por um coro que ressoa no hangar:
– Pampa!
Além de piloto experiente, Zampier responde pela chefia da manutenção, algo que é tratado com extremo rigor ali, e que deu fama ao esquadrão gaúcho no Brasil. Daí que, vinda do Rio, uma esquadrilha de F-5 pousou em Canoas em um fim de tarde há alguns dias, e o oficial que a liderava apressou-se em apresentar-se ao comandante do esquadrão descartando a impressão que davam ao chegar em grande número:
– Nenhum dos nossos tem pane.
Pane.
A palavra provocaria arrepios em passageiros de qualquer avião, mas é repetida todos os dias na base. Porque aviões têm pane com frequência. E era uma delas, no motor de um F-5 que teimava em não ir a 100%, que o sargento Jorge Moscon tentava solucionar outro dia, no campo de provas. Testar uma turbina dessas ali não exige apenas protetor de ouvidos. É necessário enclausurar-se numa sala especial para evitar que a vibração descole órgãos internos.
– Até nos acham meio chatos. É que a gente não libera avião nenhum para voar se não só solucionarmos a pane, mas descobrirmos o que a causou – explica o sargento, que trabalha desde 2002 na manutenção dos F-5 do Pampa.
O apelido remete à geografia gaúcha, mas não é o nome oficial do esquadrão. Chama-se 1°/14° GAv, significa que é o primeiro esquadrão do 14° Grupo de Aviação, e diz-se apenas “primeiro do catorze”. Fica ao lado do hangar do 5° ETA, o esquadrão de transporte aéreo que tem aviões Bandeirante e Brasília, e que sai para missões como a chefiada pelo tenente Pablo Fritzen, 27 anos, em outro final de tarde, quando deu luz verde, segundos depois de passar sobre a BR-116, para o sargento Danilo Peter chutar porta afora um fardo que caiu de paraquedas sobre a pista da base.
O fardo serviria para abastecer tropas amigas numa guerra. Mas que guerra? O Brasil não está em guerra, nem na iminência de uma.
– Errado o país que não se prepara para ela – diz Zampier.
Além do que, os caças da base aérea – em quantidade que a Aeronáutica diz ser sigilosa – também estão ali para interceptar aviões que entrem clandestinamente em espaço aéreo brasileiro. Por isso um deles fica permanentemente pronto num hangar, onde um piloto permanece de prontidão para decolar em poucos minutos se um alarme soar.
Enquanto isso, Zampier duela com a dupla Pampa Red, que tenta achar uma brecha para entrar no espaço aéreo sobre Osório. Auxiliados por controladores em terra, ambas as equipes buscam a situação perfeita: aquela em que voam rumo ao inimigo que vem com a mesma velocidade na direção contrária. É o momento ideal para lançar o míssil, e leva a melhor quem disparar primeiro. A situação não chega a ocorrer dessa maneira, mas em determinado momento, Zampier percebe que voa atrás do inimigo, a muitos quilômetros de distância. Só lhe resta um míssil, e ele aperta o botão vermelho no manche.
O resultado, ele só descobrirá quando pousar. Na sala de debriefing, a tensão do voo dá lugar à expectativa de descobrir, na tela de computadores, o que ocorreu no céu do Litoral Norte. Com a sincronização de dados, Zampier descobre que, no momento em que acionou seu míssil, o inimigo continuou no rumo. Dez segundos depois, ainda estava no rumo. Mais de 20 segundos e mantinha a rota, tempo suficiente para o míssil alcançá-lo.
– Está morto – diz o capitão para o tenente da dupla inimiga.
– Não, espera. Agora, olha, comecei a virar.
Tarde demais.
Osório está salva.
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