Dois oficiais do Exército que defendem mais democracia nos quartéis enfrentam a ira das Forças Armadas, são presos e correm o risco de ser expulsos da corporação

O capitão paraquedista Luiz Fernando Ribeiro de Sousa está há quase dois meses proibido de sair de sua residência em uma vila militar na pacata cidade de General Câmara, a 80 quilômetros de Porto Alegre. Militar da ativa e oficial do Arsenal de Armas do Rio Grande do Sul, capitão Fernando, como é conhecido, está preso e sentará no banco dos réus nos próximos dias diante de um Tribunal Militar que poderá afastá-lo dos quartéis. Considerado inimigo do Exército brasileiro, ele fundou há dois anos um movimento, junto com outros capitães, batizado de Capitanismo – que defende a adequação das normas da caserna à Constituição Federal. Na prática, Fernando advoga pela reformulação do Estatuto e do Código Penal Militar, ambos anteriores à Carta Magna de 1988. “Defendemos a manutenção da hierarquia e da disciplina militar, mas as coisas mudaram nas últimas quatro décadas”, escreveu ele à presidente da República, Dilma Rousseff, ainda durante a campanha eleitoral.

Fernando foi candidato do PT a deputado federal no Rio Grande do Sul nas últimas eleições. Durante a campanha, saiu às ruas defendendo propostas que causaram extremo desconforto no alto comando do Exército, como mais democracia nos quartéis, a descriminalização da presença de homossexuais assumidos nas tropas, assim como a implantação da Comissão da Verdade, apuração dos crimes praticados por militares durante a ditadura. O capitão não se elegeu, teve 2.158 votos, mas suas propostas têm repercutido até hoje.

Também no Rio Grande do Sul, um outro oficial do Exército tem enfrentado reprimendas severas das Forças Armadas por conta de suas opiniões. Autor do livro “Exército na Segurança Pública: uma Guerra Contra o Povo Brasileiro” (editora Juruá), o capitão Mário Soares, lotado no 3º Batalhão Logístico do Exército, em Bagé (RS), também enfrentou a prisão domiciliar ao criticar as Forças Armadas. “O Exército não pode mais ser uma ilha dentro do Estado”, argumenta. O livro, lançado no final de 2010, é resultado do mestrado em ciências penais que ele concluiu no ano passado e contém críticas ao uso das Forças Armadas no combate ao crime comum. “O preparo do Exército para desenvolver ações de polícia enfraquece a Defesa Nacional”, afirma Soares. Para ele, os armamentos adotados pelos militares em operações na cidade “têm capacidade de perpassar e destruir várias pessoas, pois os militares têm na força de seus armamentos a condição única de sua existência”.

Em ambos os casos, o Exército justifica que, oficialmente, os militares foram confinados em seus respectivos quartéis não pelas opiniões, mas pelo crime de deserção, ou seja, se afastarem por mais de oito dias consecutivos da caserna. A mesma estratégia já havia sido adotada com o casal de sargentos homossexuais Leci de Araújo e Fernando Figueiredo, em 2008. Após se declararem abertamente gays, os dois foram detidos por deserção. Agora, o Ministério Público Federal investiga se houve irregularidades na detenção e se houve tortura enquanto os dois estavam presos no quartel em que eram baseados.

No episódio dos militares do Rio Grande do Sul, não há acusações de agressão. Mas em ambos os casos os oficiais dizem que foram detidos de forma irregular. Soares se defende, afirmando que tinha bons motivos para não estar no quartel na data prevista de seu retorno. O militar foi passar as festas de fim de ano na Bahia, onde vive sua família, e encontrou o pai com uma doença degenerativa em estágio adiantado, a mãe em depressão profunda e procurou ajudar o irmão, deficiente físico, que mora com os dois. Diante dos problemas, Soares – que é tutor do pai – resolveu ficar um pouco mais para ajudar e, por fim, o drama familiar acabou por abatê-lo também. “Um psiquiatra diagnosticou que eu estava emocionalmente abalado”, explica Soares. “Tive o cuidado de levar o atestado ao quartel na Bahia no dia 31 de dezembro, para justificar o fato de não estar presente na data marcada para o regresso.” O documento não foi suficiente para justificar sua ausência, e ele ficou preso durante oito dias.

SILÊNCIO: Afastado do Exército desde março,
o capitão Fernando Ribeiro está em
prisão domiciliar há dois meses



Como o companheiro de farda, o capitão Fernando também está sendo acusado da prática do crime de deserção. Assim que terminaram as eleições em outubro, o Exército exigiu o retorno imediato do militar ao trabalho, antes mesmo da publicação oficial dos resultados do Tribunal Regional Eleitoral, que aconteceu em 3 de novembro. Segundo o militar, ele não recebeu a ordem: “O Exército enviou a convocatória para um endereço errado e não para o meu na vila militar onde vivo”. O imbróglio não para por aí. Ao convocar seu retorno ao quartel, a ordem do Comando do Sul contraria a decisão do chefe-maior do Exército, general Enzo Martins Peri, que, em março de 2010, afastou o capitão Fernando das atividades militares por tempo indeterminado até que ele responda ao Conselho de Justificação – um tribunal que pode expulsá-lo das fileiras militares por causa de suas opiniões públicas sobre as Força Armadas. A decisão de Peri foi baseada em entrevistas que Fernando deu a órgãos de imprensa e a blogs na internet, em que defendia suas ideias.


De acordo com especialistas em área militar, as Forças Armadas utilizam-se do artifício da deserção para condenar as vozes dissidentes. Quem desqualifica a tese de deserção é o procurador aposentado da Justiça Militar João Rodrigues Arruda. Uma das maiores autoridades brasileiras sobre direito militar, Arruda explica que o crime não tem mais lugar entre os oficiais, já que eles não precisam desertar para sair do Exército. “A qualquer momento, eles podem pedir demissão. Então, para que praticar um crime?”, questiona Arruda. Procurado para explicar os motivos das prisões dos dois oficiais baseados no Rio Grande do Sul, o Exército não quis se pronunciar.


Fonte: Isto É - Via: O Informante.