Os serviços de inteligência do Ocidente sabiam que Kadafi, o coronel-tirano, não passaria da quinta-feira, ou seja, de 20 de outubro.
Todos os informes apontavam no sentido de que Kadafi não resistiria e tentaria deixar Sirte, sua cidade natal.
As tropas da Otan-Nato, com a Sirte cercada, promoveram, na terça e na quarta, um intenso bombardeamento com a clara intenção de forçar a fuga de Kadafi. Como previsto, ele tentou uma fuga adrede preparada e num comboio de oito veículos.
Um drone (avião não tripulado) norte-americano e um avião francês Mirage estavam prontos para bombardear o referido comboio. Teve início, então, missão aérea que levou o número 26.089.
As rajadas disparadas pelos aviões atingiram, como destacado com exclusividade no post de ontem desta coluna Sem Fronteiras de Terra Magazine, as pernas de Kadafi, que deixou o veículo onde era transportado e procurou se esconder: relatos falam em ingresso num duto de concreto que serviria a uma futura rede de esgoto.
A essa altura, o comando da Otan-Nato e todos os 007 ocidentais sabiam que competiria – só não estava previsto no Livro Verde (o livreto escrito por Kadafi usado no seu proselitismo) – aos insurgentes a realização da caputura em terra. E também caberia aos insurgentes decidir o que fazer com o coronel-tirano. Para os 007 ocidentais, a chance de Kadafi ser entregue a Mahmoud Jibril, presidente do Conselho Nacional de Transição da Líbia e ex-ministro do coronel, beirava ao porcentual de 0,1%.
Um filme apresentado pela televisão Al-Smod da Líbia mostrou o coronel sendo capturado vivo. Ao pressentir que a arma encostada na sua têmpora poderia ser acionada, Kadafi, conforme gravação realizada, teria dito: “Não dispare. O que eu te fiz?”
Depois da pergunta, a única coisa que se sabe de seguro, até agora, é que Kadafi foi alvejado na têmpora. Não se sabe quanto tempo depois da sua pergunta.
Para o Conselho de Transição e para o comando da Otan-Nato interessa a versão de o disparo mortal ter sido feito por um descontrolado cidadão comum. Com base nessa versão, o Conselho de Transição, que promete eleições democráticas em 18 meses, avisa que vai instaurar uma investigação para apurar a morte do então tirano.
As forças da Otan-Nato vão procurar sair de cena o mais rápido possível. Só que terão dificuldades para justificar o descumprimento da Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
PANO RÁPIDO. Pela Resolução 1973 do Conselho de Segurança estavam autorizadas “todas as medidas necessárias a proteger a população civil”.
A atuação da Otan-Nato, durante um curto período, limitou-se a controlar o espaço aéreo. E coube à França evitar a tomada, pelas tropas fiéis a Kadafi, de Bengasi, onde teve início, em 17 de fevereiro passado, a revolta contra o coronel que se manteve 42 anos no poder. Num segundo momento, e com Bengasi salva graças à intervenção francesa, as forças sob coordenação da Otan-Nato passaram a promover uma guerra contra o tirano, em apoio aos revoltosos. Mas isso não era autorizado pela Resolução 1973.
Para a próxima semana, fala-se que haverá um pronunciamento do procurador-chefe do Ministério Público que atua no Tribunal Penal Internacional. Trata-se do argentino Luis Moreno Ocampo. O Tribunal é competente para julgar crimes de guerra, contra a humanidade e violações a direitos humanos.
Por Wálter Fanganiello Maierovitch do Terra
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Restam, no entanto, perguntas não respondidas. A História da Líbia é de conflitos permanentes. Desde a antiguidade, a área geográfica, onde se situa o país, foi invadida por inúmeros povos: fenícios, gregos, romanos, vândalos e bizantinos.
Em tempos mais recentes, italianos, alemães, ingleses e franceses estiveram ocupando os desertos que se estendem, a partir do Mediterrâneo, no norte da África.
Beberes e árabes formam a população líbia que, a partir do governo de Mohamede ben Ali – em 1840 – adotou o islamismo como religião, a partir de uma seita que se tornou altamente popular.
Aqui a primeira pergunta sem resposta. A queda violenta de um governante, ainda que ditador, não gerará um clima de humilhação e revolta em grande parcela da população?
Esta é muçulmana. Durante os últimos séculos, foram vítimas do colonialismo e do imperialismo que, sem escrúpulos, utilizou as riquezas naturais dos povos dominados.
Até há pouco, os governantes europeus cortejavam Kadafi e o utilizavam para negócios exuberantes. De repente, o dirigente morto caiu em desgraça.
Para derrubá-lo, somaram-se as maiores e mais poderosas forças armadas. Estados Unidos aliados à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico – bombardearam sem piedade populações civis.
Quando se realizam operações militares contra alvos indiscriminados restam traços de rancor e desamor nas coletividades agredidas. Até hoje, apesar das aparências em contrário, as populações das cidades alemãs bombardeadas na última Grande Guerra – particularmente Dresden, Frankfurt e Berlim – guardam a dor pela perda de seus antepassados.
O Ocidente, em sua ânsia de dominação, vai semeando ódio e desencanto por toda a parte onde se encontram presentes os muçulmanos. Ontem, foi o Iraque e o Afeganistão. Hoje, a Líbia.
Esta macabra escalada precisa conhecer paradeiro. Ser finalizada. Irá tornar a falsa primavera árabe em rigoroso inverno, nas relações entre os povos.
Os dias de hoje recordam o dramático e brutal episódio das cruzadas. Agrediram populações que as receberam calorosamente. Saquearam. Mataram. Violentaram. Em nome de valores religiosos, praticaram atrocidades inomináveis.
Repetir a História é tolo. O Ocidente sempre a repete se fundamentado em princípios intrinsecamente valiosos. Fala em democracia. Omite que esta, para ser implantada, exige condicionantes culturais e sociais.
Na verdade, o que se constata é o interesse econômico nas áreas integrantes da chamada falsamente Primavera Árabe. Está se gerando, na verdade, uma grande reação dos povos que adotam o Islam como religião.
O futuro demonstrará que, apesar das intervenções econômicas que virão, um substrato de animosidade restará presente. Quem é agredido, mais cedo ou mais tarde revida.
É lamentável que os países europeus e os Estados Unidos conheçam apenas as armas como diplomacia. Seria oportuno adotarem o diálogo como forma de resolver conflitos.
Chegou-se ao Século XXI com os mesmos vícios da antiguidade. Não se busca a paz. Deseja-se a guerra. Violam-se princípios. Aplaude-se a morte de pessoas indefesas.
Não é assim que se educa para a democracia. O devido processo legal e o direito de defesa são sustentáculo de valores perenes. O espetáculo selvagem visto nos últimos dias empobrece a humanidade. Envergonha seus autores.
A Primavera Árabe transformou-se no inverno dos mais elevados valores concebidos no decorrer do tempo. Continuam selvagens, como sempre.”
(Professor Cláudio Lembo, ex-vice-governador de São Paulo)