O convívio entre os povos, desde os tempos antigos, orienta-se por um
princípio e por uma realidade. O princípio é o de que pacta sunt
servanda. Se os acordos não forem respeitados, eles não existem e, por
conseguinte, não existem regras para a convivência entre as nações. A
realidade é o de que a política internacional, antes de tudo, é uma
relação de poder, qualquer que seja a sua forma. Mao dizia que o poder
está na ponta do fuzil. Gramsci acrescentava que o poder resulta de uma
combinação entre força e consentimento. Os Estados Unidos derrotaram a
União Soviética na guerra fria por sua superioridade econômica. Nye
teoriza sobre o poder suave. Moisi introduz o instigante conceito da
geopolítica das emoções.
Pois bem, a América do Sul parece estar buscando reescrever essas
duas noções fundamentais. Em nossa região, os tratados não precisam mais
necessariamente ser cumpridos. Serão cumpridos ou descumpridos em
função das afinidades ideológicas ou da relação de amizade entre os
países. É a versão contemporânea das práticas correntes, entre nós, na
Velha República: aos amigos, tudo; aos adversários, a lei. O Conselho do
Mercosul recusou o impeachment de Fernando Lugo sob o argumento de que,
embora a letra da Constituição do Paraguai possa ter sido respeitada, o
rito sumário teria caracterizado o golpe. Pode ser. Mas se recusarmos
as decisões do Legislativo e do Judiciário paraguaios, por configurarem
um simulacro de impeachment, tampouco poderemos aceitar o simulacro de
democracia que vige na Venezuela e muito menos recompensá-la com o
ingresso no Mercosul.
Em nosso subcontinente, a vontade dos menores, curiosamente, parece
prevalecer sobre a dos maiores. Um estudante de intercâmbio em Relações
Internacionais, recém-chegado de Marte, ao ler as notícias sobre a
perseguição a empresários brasileiros, pelo governo boliviano, em
represália à decisão do Brasil de conceder asilo a um senador da
oposição, poderia bem supor que a Bolívia é o país sul-americano com 8,5
milhões de quilômetros quadrados, uma população de 205 milhões de
habitantes e um produto interno bruto (PIB) de US$ 2,4 trilhões; e o
Brasil, a nação mais frágil, com território de 1 milhão de quilômetros
quadrados, 10 milhões de habitantes e um PIB de US$ 25 bilhões. Às vezes
pode até parecer que é efetivamente assim, mas a realidade é o inverso.
Infelizmente, esse episódio recente não é um fato isolado. A Bolívia
já ocupou antes uma planta da Petrobrás. O Equador contestou a
legalidade de um empréstimo do BNDES porque se indispôs com a companhia
construtora brasileira. Enquanto isso, o secretário de Comércio da
Argentina, com uma simples chamada telefônica, costuma violar o espírito
e a letra do Tratado de Assunção, o ato constitutivo do Mercosul.
A menção a esses fatos de modo algum sugere que o Brasil deva
prevalecer-se de sua superioridade econômica ou do tamanho de seu
mercado para impor a sua vontade. Ao contrário. Por uma questão de
solidariedade para com os nossos vizinhos e irmãos sul-americanos, e
mesmo por interesses econômicos e políticos próprios, o Brasil deve
buscar uma prosperidade compartilhada na região. Por que não traduzir as
palavras em fatos e promover uma abertura generalizada e unilateral do
nosso mercado aos parceiros sul-americanos? Quem tem condições para
propor, acertadamente, uma liberalização multilateral do comércio no
âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), com mais razão pode
comprometer-se com uma abertura mais ampla no âmbito regional.
Por que não impulsionar, como faz a China, uma integração do espaço
econômico regional por meio do mercado? Na medida em que um acordo de
integração é inviável na Ásia, em face dos vários conflitos entre países
da região, as grandes empresas chinesas, com o velado apoio de seu
governo, desenvolveram mecanismos de complementação industrial e de
integração das cadeias produtivas com as economias vizinhas. Hoje o
comércio intra-asiático já representa 53% das trocas totais dos países
do continente. No Mercosul esse porcentual, que já foi de 21%, de 1992 a
1999, caiu para 14% de 2000 a 2008. O Mercosul já representou 17% das
exportações brasileiras, hoje não passa de 11%.
Estamos assistindo a um visível retrocesso comercial e institucional
do Mercosul, entre outras razões, pela tolerância com a violação
sistemática das suas regras e o desrespeito às suas instituições. A
benevolência diante do descumprimento gera o descrédito perante a
sociedade, a insegurança jurídica para os agentes econômicos e a
deterioração da imagem do Mercosul entre os seus parceiros no restante
do mundo.
O Brasil tem o dever de fazer concessões aos seus vizinhos de menor
peso relativo nas negociações econômico-comerciais. Mas, em
contrapartida, tem o direito de cobrar o cumprimento do que foi
acordado. Temos meios para tanto. Não se trata de ameaçar ou fazer
represálias. Basta cumprir a lei. A Bolívia dificilmente resistiria ao
fechamento da fronteira contra a receptação de carros roubados ou o
tráfico de drogas. O Paraguai, que se soma muitas vezes ao coro das
ameaças contra os agricultores brasileiros, dificilmente suportaria a
suspensão do contrabando na fronteira.
O episódio recente na Bolívia é lamentável. E não somente pela
mesquinhez das ameaças contra produtores, que nada têm que ver com as
políticas de seus governos. Mas também por questionar a legitimidade do
asilo diplomático, uma das mais genuínas tradições da diplomacia
latino-americana, consagrada no caso de Haya de la Torre, um dos
próceres ilustres do nosso continente.
A Bolívia só se sente à vontade para praticar atos de verdadeira
provocação por estar convencida de que, mais uma vez, contará com a
benevolência do Brasil.
Diante desse cenário insólito, só nos resta indagar, repetindo Cícero: até quando, ó Morales, abusarás de nossa paciência?
DIPLOMATA, FOI EMBAIXADOR EM LONDRES E EM PARIS
Fonte: Estadão
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