Será que há uma forma de entendermos a afirmação de Mitt Romney de
que a Rússia é "nosso inimigo geopolítico número um" como outra coisa
que não seja uma ridícula nostalgia da Guerra Fria? A própria ideia de
um "inimigo geopolítico" é quase um anacronismo na época em que os EUA
enfrentam ameaças maiores de entidades sem Estado e de rivais econômicos
como a China.
Em entrevista à CNN, Romney disse que, sempre que os EUA recorrem à
ONU para impedir que um ditador massacre seu povo, quem surge para
defendê-los é a Rússia - quem poderia imaginar que Romney acreditasse na
ONU? O Washington Post considerou a declaração grosseira, porque a
Rússia "não vetou as resoluções contra Irã e Coreia do Norte. É verdade
que Moscou, junto com Pequim, obstruiu os esforços para deter a
violência no Sudão, em Mianmar, no Zimbábue e na Costa do Marfim. De
acordo com os critérios de Romney, pode-se dizer que a China é um
inimigo geopolítico, mas isto seria confundir um rival com um inimigo.
A China desrespeita os direitos de seu próprio povo muito mais do que
a Rússia, mas a consciência não exige que ela declare guerra a outros
países, muito menos aos EUA. A Rússia, ao contrário, exige inimigos. Em
2007, em Munique, o presidente Vladimir Putin atacou energicamente os
EUA como a fonte de "um uso quase incontido da força que "mergulhava o
mundo em um abismo de conflitos permanentes".
Evidentemente, ele não é o único líder que deplorava o militarismo do
governo de George W. Bush, mas Putin intensificou sua retórica desde
então, acusando a secretária de Estado, Hillary Clinton, de instigar a
violência na Rússia. Putin não hesitaria em identificar os EUA como o
inimigo geopolítico número um da Rússia. Ele demoniza Washington,
defende assassinos como Bashar Assad e é tolerante com o Irã.
Se Putin sempre agisse da maneira como fala, a Rússia poderia ser
mesmo o inimigo geopolítico número um dos EUA. Mas ele não faz isto. Em
2010, Moscou concordou em impor rigorosas sanções ao Irã e cancelou a
venda a Teerã do sistema antimíssil S-300. Assinou o novo tratado sobre
controle de armas Start e permitiu o trânsito de tropas americanas do
Afeganistão pela Rússia.
Apesar de todas as suas bravatas, Putin demonstrou que colaborará com
Washington em questões em que os interesses russos e americanos sejam
convergentes. Romney diz que a "reformulação" da política do governo de
Barack Obama com a Rússia não mudou o comportamento de Moscou, mas esse é
o parâmetro errado. O objetivo era reduzir o antagonismo que aumentara
na esteira da invasão russa da Georgia, em 2008, para que Putin se
concentrasse mais em interesses comuns e menos em exigir o fracasso dos
EUA para a Rússia ser bem-sucedida. Foi o que ocorreu.
Putin continua calculista e realista quando se trata dos interesses
russos, mas a má notícia é que, com o novo confronto com ativistas
pró-democracia, no plano interno, ele está se tornando mais agressivo em
relação ao resto do mundo.
Um segundo mandato democrata se preocupará mais em fortalecer os
laços com aliados tradicionais e menos em tentar converter adversários.
Romney afirma que reexaminará a implementação do novo Start e estudará o
plano de defesa contra mísseis na Europa, que a Rússia considera uma
ameaça. Evidentemente, Putin receberá toda tentativa cercear a Rússia
como uma provocação direta. Ele procura provocações para responder a
elas. Em suma, se eleito, Romney pode transformar a Rússia no inimigo
geopolítico que ele afirma que ela já é.
Fonte: Estadão
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