Quando
se dão muitas entrevistas em diferentes países e se diz essencialmente a
mesma coisa repetidas vezes, como eu, os veículos quase sempre se
dedicam a reembalar aquela mesma coisa, para que a entrevista que
publicam dê a impressão de conter novidades, mesmo que não traga
novidade alguma. É o caso do artigo da Reuters em 13 de Julho, [1] que pretende resumir minha entrevista ao jornal argentino La Nación.[2]
Como
tudo que tenha a ver com os vazamentos da Agência de Segurança Nacional
dos EUA, essa entrevista também está sendo ferozmente distorcida, para
desviar a atenção das revelações propriamente ditas. Tudo é reescrito
para atacar Edward Snowden e, secundariamente, para me atacar
pessoalmente, por estarmos, supostamente, “chantageando” e “ameaçando” o
governo dos EUA. Absurdo.
Que
Snowden criou uma espécie de “conexão do homem morto” – para que
documentos sejam divulgados no caso de ele ser assassinado pelo governo
dos EUA – já havia sido noticiado há várias semanas [3] e
o próprio Snowden já várias vezes sugeriu fortemente que fizera, sim,
exatamente isso. Não significa que ele pense que os EUA estejam tentando
assassiná-lo – e não pensa –, apenas que tomou precauções contra
inúmeras eventualidades, inclusive essa (afinal, é perfeitamente
razoável preparar-se para essa eventualidade, se se está enfrentando não
qualquer inimigo mas, precisamente, o governo que passou a última
década invadindo, bombardeando, torturando, ‘entregando’ prisioneiros a
torturadores em prisões estrangeiras, sequestrando, encarcerando sem
acusação formalizada, assassinando ‘à distância’ com drones, apoiando e
financiando os piores ditadores e assassinos, e matando seus próprios
cidadãos em golpes de assassinato pré-definidos).
Eis o
que eu disse na entrevista ao jornal La Nacion – afirmações verdadeiras e
nenhuma das quais, nem remotamente, teria algo a ver com ameaçar
alguém:
1) O
argumento sempre repetido de que Snowden teria a intenção de ferir os
EUA é absolutamente desmentido pelo fato de que ele tem, sim, todos os
tipos de documentos que mais rapidamente e mais seriamente podem hoje
causar dano aos EUA, se divulgados. E não publicou nenhum desses
documentos. Quando nos entregou os documentos que entregou, Snowden
várias vezes repetiu que aplicássemos a eles o nosso mais rigoroso
critério de avaliação jornalística, para decidirmos que documentos
deveriam ser publicados, com vistas a atender ao interesse público; e
quais deveriam ser escondidos, sob o argumento de que o dano gerado pela
publicação ultrapassaria o valor público que tivessem.
Se
Snowden visasse a causar dano aos EUA, poderia já ter vendido todos os
documentos, por quantia astronômica de dinheiro, ou já os teria
divulgado indiscriminadamente, ou os teria entregado a inimigo
estrangeiro. E não fez nada disso.
Snowden
examinou cuidadosamente cada um dos documentos que nos entregou e ainda,
depois disso, pediu que só se publicassem os que pudessem ser
publicados sem causar nenhum dano desnecessário a quem quer que fosse: o
mesmo critério que todos os veículos de imprensa comercial e
whistleblowers usam sempre. A ampla maioria das revelações já feitas é
um sinal de alerta, um ‘apitar de consciência’, para alertar contra a
vigilância secreta e total, sobre todos nós, que o governo dos EUA
estruturou e mantém em operação.
O meu
argumento sobre isso, naquela entrevista, era claro, e o repeti várias e
várias vezes: se Snowden quisesse agredir o governo dos EUA, poderia
tê-lo feito facilmente, mas não o fez, o que está bem comprovado – como
eu disse na entrevista – pelo fato de que tem, mas não divulgou,
documentos que, sim, poderiam causar grave dano a inúmeros programas
mantidos pelo EUA.
Snowden
não tem qualquer desejo de prejudicar os EUA. O que ele quer é lançar
luz sobre os programas de vigilância, para que o problema possa ser
democraticamente debatido. Por isso, nenhuma das revelações já
publicadas pode ser apresentada, nem de longe, como danosa à segurança
nacional dos EUA ou à reputação e credibilidade de funcionários dos EUA
que fizeram aquelas coisas e, na sequência, mentiram sobre elas.
2) O governo dos EUA está agindo sob o ímpeto da mais feroz irracionalidade.
A
crítica mais recente é que Snowden está na Rússia, não em outro país
‘neutro’. Mas Snowden não está na Rússia porque tenha escolhido o país.
Só está lá porque os EUA o impediram de sair: primeiro, lhe caçaram o
passaporte (sem qualquer devido processo legal ou sentença); depois,
pressionaram países aliados para que lhe negassem direito de voar em
espaço aéreo territorial daqueles países (chegando ao cúmulo de forçar o
pouso de avião presidencial no qual viajava presidente democraticamente
o eleito de um estado soberano, apenas porque havia a suspeita de que
Snowden estivesse a bordo); depois, forçaram pequenos países a impedir
que o avião pousasse para reabastecer.
Dada a
quantidade extraordinária de documentos que Snowden carrega com ele e a
gravidade de muitos daqueles documentos, eu disse, naquela entrevista,
que me parecia inacreditavelmente ridículo que o governo dos EUA tivesse
praticamente obrigado Snowden a permanecer na Rússia – o que faz
sentido zero, se se pensa nos documentos que Snowden carrega.
3)
Perguntaram-se se eu imaginava que o governo dos EUA empreenderia algum
tipo de ataque físico contra Snowden, caso tentasse viajar para a
América Latina, ou, mesmo, que os EUA chegariam ao ponto de derrubar o
avião em que ele viajasse. Foi quando eu disse que nada seria tão
completamente contraproducente, uma vez que – como vários jornais e
blogs já haviam noticiado – qualquer ataque desse tipo imediatamente
dispararia uma avalanche de revelações, porque nos libertaria, a nós,
jornalistas, de ter de examinar cada documento e decidir
responsavelmente, como sempre fizemos até agora.
E eu
disse também, naquela entrevista, que o governo dos EUA deveria, isso
sim, rezar e pedir a Deus pela segurança de Snowden, em vez de se por a
ameaçá-lo ou tentar agredi-lo ou feri-lo.
Nada
disso tem qualquer coisa a ver comigo: não tenho acesso aos documentos
do “seguro” de Snowden e não tenho papel algum no plano que ele
construiu para se proteger. Reporto os documentos que ele diz que tem as
precauções que disse que tomou para se proteger contra a ameaça que ele
pressente contra seu bem-estar. Isso não implica qualquer ameaça. São
fatos. Lamento se não agradam a todos, mas nem por isso deixam de ser
fatos.
Antes de a identidade de Snowden ser revelada como ‘apitador de consciência’ (no original whistleblower), escrevi:
“Desde
que o governo Nixon invadiu o consultório do psicanalista de Daniel
Ellsberg, a tática do governo dos EUA sempre tem sido atacar e demonizar
os ‘apitadores de consciência’, como artifício para distrair a atenção
do que eles expunham de malfeitorias do próprio governo, e para destruir
a credibilidade do mensageiro, para que as pessoas deixassem de dar
atenção à mensagem. O que se vê hoje, no caso de Snowden é, só,
repetição da mesma tática.” [4]
E é o
que é: mais um esforço para distrair a atenção, para que ninguém se
atenha à substância das revelações. (Hoje, Melissa Harris-Parry, âncora
do noticiário matinal na rede MSNBC, culpou Snowden pelo fato de a mídia
estar dando mais atenção a ele do que às revelações sobre a Agência de
Segurança Nacional dos EUA: [5] como
se ela não tivesse programa seu, que vai ao ar duas vezes por semana,
no qual poderia falar o quanto quisesse sobre as revelações que diz
considerar tão importantes.
Compare-se
(a) a atenção que tem sido dada ao drama do asilo de Snowden e a
alegados traços do seu caráter, e (b) a atenção dada à substância das
revelações sobre espionagem em massa, indiscriminada, pela Agência de
Segurança Nacional dos EUA.
Ou
comparem-se (a) as repetidas manifestações em órgãos da imprensa
norte-americana, no sentido de que Snowden (e outros que estão
trabalhando para denunciar a espionagem em massa na Agência de Segurança
Nacional) sejam tratados como criminosos, e (b) a virtualmente nenhuma
manifestação, na mídia dos EUA, no sentido de que o diretor da
Inteligência Nacional, James Clapper, seja tratado como criminoso por
mentir ao Congresso.
A
invenção de alguma nova “ameaça” é, só, mais um esforço para falar de
qualquer coisa, exceto as revelações de que o governo dos EUA mente ao
Congresso e de que a Agência de Segurança Nacional dos EUA, apoiada em
premissas muito duvidosas do ponto de vista da legalidade, espiona todos
os cidadãos norte-americanos (além de espionar o resto do mundo).
Ontem
era outra coisa, amanhã inventarão uma terceira ou quarta coisa. Como já
disse nessa entrevista a Falguni Sheth publicada hoje em Salon, [6] é
atitude típica dos EUA: no resto do mundo mídia e analistas focam-se no
conteúdo das revelações; nos EUA, os jornalistas e especialistas
midiáticos mantêm-se obcecadamente a falar de qualquer coisa, exceto do
conteúdo das revelações.
Haveria
inúmeras vias acessíveis para que Snowden divulgasse os documentos que
decidira divulgar. Ele escolheu a que lhe pareceu mais responsável:
procurar jornais e jornalistas nos quais confiava e cobrar que a
divulgação fosse feita com responsabilidade. O esforço para
desmoralizá-lo e apresentá-lo como uma espécie de traidor não encontra
nenhuma confirmação nos fatos. Toda a entrevista tratou desse aspecto.
Quem queira saber quem, de fato, teve comportamento criminoso e causou dano grave aos EUA, não terá dificuldades para descobrir [7] [8] [9] –
e fará trabalho mais produtivo que o de demonizar quem tanto se
arriscou para tocar o apito e alertar as pessoas contra, precisamente,
aqueles crimes. Mas, como já disse, e aqui repito, nada disso nos
impedirá, nem por um momento, de continuar a informar sobre os muitos
casos de espionagem e vigilância interna pela Agência de Segurança
Nacional dos EUA que ainda não vieram a público.
Autor: Glenn Greenwald
Fontes:
[1] http://www.reuters.com/article/2013/07/13/us-usa-security-snowden-greenwald-idUSBRE96C08Q20130713
[2] http://www.lanacion.com.ar/1600674-glenn-greenwald-snowden-tiene-informacion-para-causar-mas-dano
[3] http://www.thedailybeast.com/articles/2013/06/25/greenwald-snowden-s-files-are-out-there-if-anything-happens-to-him.html
[4] http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/jun/07/whistleblowers-and-leak-investigations
[5] http://tv.msnbc.com/2013/07/13/edward-snowden-come-on-home/
[6] http://www.salon.com/2013/07/13/qa_with_glenn_greenwald_americans_reaction_surprising_and_gratifying/
[7] http://www.salon.com/2013/07/01/this_man_is_still_lying_to_america/
[8] http://www.nytimes.com/2013/06/28/opinion/the-criminal-nsa.html?pagewanted=all&_r=2&
[9] http://www.ibtimes.com/fisc-will-not-object-release-2011-court-opinion-confirmed-nsas-illegal-surveillance-1305023#
[2] http://www.lanacion.com.ar/1600674-glenn-greenwald-snowden-tiene-informacion-para-causar-mas-dano
[3] http://www.thedailybeast.com/articles/2013/06/25/greenwald-snowden-s-files-are-out-there-if-anything-happens-to-him.html
[4] http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/jun/07/whistleblowers-and-leak-investigations
[5] http://tv.msnbc.com/2013/07/13/edward-snowden-come-on-home/
[6] http://www.salon.com/2013/07/13/qa_with_glenn_greenwald_americans_reaction_surprising_and_gratifying/
[7] http://www.salon.com/2013/07/01/this_man_is_still_lying_to_america/
[8] http://www.nytimes.com/2013/06/28/opinion/the-criminal-nsa.html?pagewanted=all&_r=2&
[9] http://www.ibtimes.com/fisc-will-not-object-release-2011-court-opinion-confirmed-nsas-illegal-surveillance-1305023#
O original encontra-se em http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/jul/13/reuters-article-dead-man-s-switch, com tradução de Vila Vudu. - Via Plano Brasil
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