Um ataque contra a Síria
ou Irã ou contra qualquer outro demônio estadunidense se baseará em uma
variante de moda, a “Responsabilidade de Proteger”, ou R2P, cujo
fanático pregoeiro é o ex-ministro de Relações Exteriores australiano
Gareth Evans, co-presidente de um “centro mundial” com base em Nova
Iorque. Por John Pilger, do The Guardian
Na parede tenho exposta a primeira
página do Daily Express de 5 de setembro de 1945 com as seguintes
palavras: “Escrevo isto como uma advertência ao mundo”. Assim começava o
relatório de Wilfred Burchett sobre Hiroshima. Foi a notícia bomba do
século.
Com motivo da solitária e perigosa viagem com a qual desafiou as
autoridades de ocupação estadunidenses, Burchett foi colocado na picota,
sobretudo por parte de seus colegas. Avisou que um ato premeditado de
assassinato em massa a uma escala épica acabava de dar o disparo de
partida para uma nova era de terror.
Na atualidade, [a advertência de] Wilfred Buirchett está sendo
reivindicada pelos fatos quase todos os dias. A criminalidade intrínseca
da bomba atômica foi corroborada pelos Arquivos Nacionais dos EUA e
pelas ulteriores décadas de militarismo camuflado como democracia. O
psicodrama sírio é um exemplo disso. Uma vez mais somos reféns da
perspectiva de um terrorismo cuja natureza e história continuam sendo
negadas inclusive pelos críticos mais liberais. A grande verdade
inominável é que o inimigo mais perigoso da humanidade está do outro
lado do Atlântico.
A farsa de John Kerry e as piruetas de Barack Obama são temporais. O
acordo de paz russo sobre armas químicas será tratado ao cabo do tempo
com o desprezo que todos os militaristas reservam para a diplomacia. Com
a al-Qaeda figurando agora entre seus aliados e com os golpistas
armados pelos EUA solidamente instalados no Cairo, os EUA pretendem
esmagar os últimos Estados independentes do Oriente Próximo: primeiro a
Síria, depois o Irã. “Esta operação [na Síria]“, disse o ex-ministro de
exterior francês Roland Dumas em junho, “vem de muito antes. Foi
preparada, pré-concebida e planejada”.
Quando o público está “psicologicamente marcado”, como descreveu o
repórter do Canal 4, Jonathan Rugman, a esmagadora oposição do povo
britânico a um ataque contra a Síria, a supressão da verdade se converte
em tarefa urgente. Seja ou não verdade que Bashar al-Assad ou os
“rebeldes” utilizaram gás nos subúrbios de Damasco, são os EUA, não a
Síria, o país do mundo que utiliza essas terríveis armas de forma mais
prolífica.
Em 1970 o Senado informou: “Os EUA derramaram no Vietnã uma
quantidade de substâncias químicas tóxicas (dioxinas) equivalente a 2,7
quilos por cabeça”. Aquela foi a denominada Operação Hades, mais tarde
rebatizada mais amavelmente como Operação Ranch Hand, origem do que os
médicos vietnamitas denominam “ciclo de catástrofe fetal”. Vi gerações
inteiras de crianças afetadas por deformações familiares e monstruosas.
John Kerry, cujo expediente militar escorre sangue, seguramente que os
lembra. Também os vi no Iraque, onde os EUA utilizaram urânio
empobrecido e fósforo branco, como o que fizeram os israelenses em Gaza.
Para eles não houve as “linhas vermelhas” de Obama, nem o psicodrama de
enfrentamento.
O repetitivo e estéril debate sobre se “nós” devemos “tomar medidas”
contra ditadores selecionados (ou seja, se devemos aplaudir os EUA e
seus acólitos em outra nova matança aérea) forma parte de nosso lavado
de cérebro. Richard Falk, professor emérito de Direito Internacional e
relator especial da ONU sobre a Palestina, o descreve como “uma máscara
legal/moral unidirecional com anseios de superioridade moral e cheia de
imagens positivas sobre os valores ocidentais e imagens de inocência
ameaçada cujo fim é legitimar uma campanha de violência política sem
restrições”. Isso “está tão amplamente aceito que é praticamente
impossível de questionar”.
Se trata da maior mentira, parida por “realistas liberais” da
política anglo-estadunidense e por acadêmicos e meios de comunicação
auto proclamados gestores da crise mundial mais que como causantes dela.
Eliminando o fator humanidade do estudo dos países e congelando seu
discurso com uma linguagem a serviço dos desígnios das potências
ocidentais, endossam a etiqueta de “falido”, “delinquente” ou malvado
aos Estados aos que depois infligirão sua “intervenção humanitária”.
Um ataque contra a Síria ou Irã ou contra qualquer outro demônio
estadunidense se baseará em uma variante de moda, a “Responsabilidade de
Proteger”, ou R2P, cujo fanático pregoeiro é o ex-ministro de Relações
Exteriores australiano Gareth Evans, co-presidente de um “centro
mundial” com base em Nova Iorque. Evans e seus grupos de pressão
generosamente financiados jogam um papel propagandístico vital instando a
“comunidade internacional” a atacar os países sobre os quais “o
Conselho de Segurança resiste aprovar alguma proposta ou que recusa
abordá-la em um prazo razoável”.
O de Evans vem de longe. O personagem já apareceu em meu filme de
1994, Death of a Nation, que revelou a magnitude do genocídio no Timor
Leste. O risonho homem de Canberra alça sua taça de champanhe para
brindar por seu homólogo indonésio enquanto sobrevoam o Timor Leste em
um avião australiano depois de haver firmado um tratado para piratear o
petróleo e gás do devastado país em que o tirano Suharto assassinou ou
matou de fome um terço da população.
Durante o mandato do “débil” Obama o militarismo cresceu talvez como
nunca antes. Ainda que não haja nenhum tanque no gramado da Casa Branca,
em Washington se produziu um golpe de Estado militar. Em 2008, enquanto
seus devotos liberais enxugavam as lágrimas, Obama aceitou em sua
totalidade o Pentágono que lhe legava seu predecessor George Bush,
completo com todas suas guerras e crimes de guerra. Enquanto a
Constituição vai sendo substituída por um incipiente Estado policial, os
mesmos que destruíram o Iraque a base de comoção e pavor, que
converteram o Afeganistão em uma pilha de escombros e que reduziram a
Líbia a um pesadelo hobbesiano, esses mesmos são os que estão ascendendo
na administração estadunidense. Por trás de sua amedalhada fachada, são
mais os antigos soldados estadunidenses que estão se suicidando que os
que morrem nos campos de batalha. No ano passado 6.500 veteranos tiraram
suas vidas. A colocar mais bandeiras.
O historiador Norman Pollack chama isso de “liberal-fascismo”: “Em
lugar de soldados marchando temos a aparentemente mais inofensiva
militarização total da cultura. E em lugar do líder grandiloquente temos
um reformista falido que trabalha alegremente no planejamento e
execução de assassinatos sem deixar de sorrir um instante”. Todas as
terças-feiras, o “humanitário” Obama supervisiona pessoalmente uma rede
terrorista mundial de aviões não tripulados que reduz a mingau as
pessoas, seus resgatadores e seus doentes. Nas zonas de conforto do
Ocidente, o primeiro líder negro no país da escravidão ainda se sente
bem, como se sua mera existência supusesse um avanço social,
independentemente do rasto de sangue que vai deixando. Essa obediência a
um símbolo destruiu praticamente o movimento estadunidense contra a
guerra. Essa é a particular façanha de Obama.
Na Grã Bretanha as distrações derivadas da falsificação da imagem e
da identidade políticas não triunfaram completamente. A agitação já
começou, mas as pessoas de consciência deveriam apressar-se. Os juízes
de Nuremberg foram sucintos: “Os cidadãos particulares têm a obrigação
de violar as leis nacionais para impedir que se perpetrem crimes contra a
paz e a humanidade”. As pessoas normais da Síria, e muito mais gente,
como nossa própria autoestima, não se merecem menos nestes momentos.
Do Carta Maior - Via: Plano Brasil
Sugestão: Lucena
Por John Pilger, Jornalista do The Guardian. Grã Bretanha. Em “Bitácora” do Uruguai.
Tradução: Liborio Júnior
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