A imprensa brasileira tem divulgado notícias consistentes alusivas à espionagem conduzida pelos EUA contra o governo e empresas brasileiras, notadamente a Petrobras. A fonte destas informações é sobretudo um ex-funcionário da National Security Agency, a NSA, que abandonou suas funções carregando consigo milhares de documentos alusivos à massiva espionagem internacional patrocinada pelo governo dos EUA.
A bisbilhotagem norte-americana era de largo espectro. Albergava a espionagem tradicional é aquela por meio da qual um Estado busca conhecer, clandestinamente, informações protegidas de outro Estado, exemplarmente representada pelos avanços desleais da agência NSA, sobre as comunicações de email, telefônicas e congêneres da Presidência da República.
Outra modalidade a que parece ter se dedicado a NSA é a da espionagem de cunho econômico. Esta consiste no avanço indevido dos EUA sobre as informações protegidas de empresas brasileiras. Em função do envolvimento de um governo, ela difere da espionagem corporativa ou industrial, em que uma empresa espiona os segredos de outra.
A questão da espionagem econômica parece sempre ter assombrado os norte-americanos. No começo de 2013, curiosamente, eram os EUA que alardeavam se sentir ameaçados pela espionagem da China. Antes, em 1996, os EUA cunharam uma legislação penal específica, o chamado Economic Espionage Act, de 1996, para proteção de suas empresas da espionagem econômica e do furto de segredos comerciais por agentes e governos estrangeiros.

Espionagem e a OMC
O fato é que, graças à indiscrição do agente Snowden, que meritoriamente vem revelando a invasão de privacidade sistematicamente conduzida pelos EUA não apenas contra governos, cidadãos e empresas estrangeiras, mas também contra os estadounidenses, o Brasil tomou tenência da necessidade de construir melhores barreiras à curiosidade alheia.

Concomitantemente, o Brasil viu-se colocado na incomoda situação de ter de responder assertiva e altivamente a uma intrusão desleal daquela que ainda é a maior potência econômica do mundo. Além de cogitar a suspensão da visita de Estado que está prevista para outubro, aventa-se denunciar o ocorrido em diversos foros internacionais e vitupera-se contra a afronta à soberania nacional.
Não se viu, todavia, ainda ser ventilada a hipótese da espionagem contra a Petrobras ser levada ao âmbito da OMC.
Uma das formas cogitáveis de confrontar a espionagem patrocinada por governos contra segredos industriais é a invocação de tratados internacionais que protejam a propriedade intelectual. No âmbito da normativa que rege a OMC há o acordo Trips (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) que impõe aos membros da instituição o dever de proteger os direitos de propriedade intelectual. O Trips ingressou no arcabouço normativo que regula o comércio internacional muito em função de um esforço específico dos EUA para combater a chamada pirataria. A proteção à propriedade intelectual está difusa em todo o texto do tratado,e a proteção da informação secreta está contundentemente anotada no artigo 39 do tratado:
SEÇÃO 7: PROTEÇÃO DE INFORMAÇÃO CONFIDENCIAL
Artigo 39
1. Ao assegurar proteção efetiva contra competição desleal, como disposto no Artigo 10bis da Convenção de Parias (1967), os Membros protegerão informação confidencial de acordo com o parágrafo 2 abaixo, e informação submetida a Governos ou Agências Governamentais de acordo com o parágrafo 3 abaixo.
2. Pessoas físicas e jurídicas terão a possibilidade de evitar que informação legalmente sob seu controle seja divulgada, adquirida ou usada por terceiros, sem seu consentimento, de maneira contrária a práticas comerciais honestas, desde que tal informação:
a) seja secreta, no sentido de que não seja conhecida em geral nem facilmente acessível a pessoas de círculos que normalmente lidam com o tipo de informação em questão, seja como um todo, seja na configuração e montagem específicas de seus componentes;
b) tenha valor comercial por ser secreta; e
c) tenha sido objeto de precauções razoáveis, nas circunstâncias, pela pessoa legalmente em controle da informação, para mantê-la secreta.
A um desavisado, a propósito, o dispositivo parecerá ter sido cunhado sob encomenda para reprovar a noticiada espionagem conduzida pela NSA contra as informações da Petrobras.
Todos os membros da OMC, EUA inclusive, submetem-se às regras do Trips.
A vantagem de se buscar no arcabouço normativo da OMC uma resposta digna à violação dos interesses nacionais e ao vilipêndio ao esforço científico dos brasileiros reside no fato de que a OMC dispõe de um mecanismo razoavelmente efetivo de imposição de suas normas.
Com efeito, o chamado Sistema de Solução de Controvérsias da OMC tem sido considerado, desde sua criação, com satisfatoriamente autônomo, imparcial e técnico, e atuando quase como um judiciário do comércio internacional, já deu ao Brasil expressivas vitórias, inclusive em litígios com os EUA.
Um possível argumento contra a aplicação do dispositivo do Trips em casos de espionagem econômica é o de que as normas da OMC são cunhadas para serem aplicadas pelos membros da organização dentro dos respectivos territórios. A espionagem, poder-se-ia argumentar, foi conduzida pelos EUA em território estrangeiro — no caso, o brasileiro — o que a poria a salvo da proibição aludida. Este tipo de argumentação, todavia, não é insuperável. Toda a decisão de violação de segredos empresariais brasileiros terá sido tomada no coração do território norte-americano, e a sua perpetração muitas vezes por meio da própria internet torna inequívoco que a violação ocorreu, muitas vezes, no próprio território dos EUA.
Ainda que a reclamação brasileira não atingisse, ao final, pleno êxito, só o fato de expor o tema no âmbito da OMC já seria bastante reparador para a nação brasileira.
O Brasil, cujas entranhas foram irremediavelmente remexidas pela curiosidade norte-americana, faria bem em levar, ao âmbito da Organização Mundial do Comércio, o debate sobre a pirataria de Estado conduzida pelos Estados Unidos.

Por:João Paulo de Oliveira é procurador da Fazenda Nacional. Tem experiência na área de Direito Processual e Direito Internacional Público, atuando principalmente em temas ligados à OMC, blocos regionais e comércio internacional.

Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2013