Várias análises sobre vigilâncias norte-americanas no Brasil eludem o
núcleo da moderna ordem estatal. Todo poder público usa o segredo e a
espionagem, práticas hoje garantidas pelas "maquinas de guerra" que
operam nas fímbrias das políticas oficiais. O jornal O Estado de São Paulo mostrou que entre ditaduras irmãs, como a chilena e a brasileira, existiu desconfiança ardilosa e quebra do sigilo alheio.
Não é preciso muito saber para captar o problema. Basta frequentar A
Guerra do Peloponeso e Hobbes: "Em todos os tempos os reis e pessoas de
soberana autoridade, por sua independência, vivem suspeições contínuas
em posturas de gladiadores, de armas apontadas e olhos fixos uns nos
outros; as fortalezas, as guarnições, os canhões postos nas fronteiras
de seus reinos espiam continuamente os vizinhos, o que é postura da
guerra" (Leviatã). Para a defesa da República, diz ainda Hobbes, são
necessárias pessoas "que procuram descobrir todos os pensamentos e atos
que podem prejudicar o Estado; os espiões são tão importantes para os
soberanos quanto os raios solares para a alma humana, para discernir
objetos visíveis (...) eles são necessários ao bem público como os raios
de luz para manter as pessoas, comparáveis às teias de aranha cujos
fios separados, postos lá e cá, advertem o pequeno animal sobre os
movimentos externos..." (De Cive).
Quem se iludiu com o fim da guerra fria hoje constata poderes
mundiais em plena atividade bélica, aberta ou dissimulada. A Síria é o
caso agudo e o Brasil, um ensaio que pode rumar para situações
indesejadas. Cabe aos brasileiros seguir uma linha de fortalecimento,
deixando de lado lamúrias e invectivas vazias. Na cena internacional,
quem não cresce diminui, na medida em que os adversários aumentam sua
força. O país que não aplica recursos na defesa (incluindo as
informações) fica à mercê de poderes hegemônicos.
Existem técnicas seculares para captar intentos agressivos alheios -
econômicos, bélicos, políticos - e proteger as próprias forças. Já
Mazarino, artífice do Estado moderno, usa o livro de Tritêmio
Polygraphia (1518). Nele se desenvolve a escrita secreta para uso
governamental. A informática do século 21 acolhe os herdeiros de
Tritêmio com sofisticados programas para redigir e ocultar mensagens.
Mas para aquela arte é preciso investimento em ciência, tecnologia,
gente treinada a serviço do País. Sem mecanismos apropriados, nossos
profissionais não recebem incentivo ou seguem para o exterior. Atitude
pré-maquiavélica é culpar os outros porque cresceram, sem aumentar
nossos recursos.
O poder "público" esconde suas iniciativas e espiona as dos
estrangeiros. Ele também conquista a opinião, nacional ou planetária,
com a propaganda que pulveriza oposições internas, persuade ou intimida
outras soberanias (Étienne Thuau, Raison d'État et Pensée Politique à
l'Époque de
Richelieu). A razão de Estado permite interpretações das
leis favoráveis às potências dominantes. Segundo Christian Lazzeri, "o
Estado é jogador que não aceita perder e modifica as regras do jogo". Se
uma soberania é incapaz de prever e antecipar ataques, ela é inepta e
inapta para o jogo internacional. Prever significa antecipar o não
rotineiro, é matéria de prudência. Além da burocracia, os Estados
relevantes usam velozes meios de guerra que vão dos espiões aos
militares "terceirizados", com relativa autonomia em face dos poderes
oficiais.
Comentário de Eva Horn: "Guerra é rapidez, segredo, violência,
astúcia, mas o Estado é fixidez e enraizamento num lugar (...). A
máquina de guerra é externa ao Estado, mesmo quando seus elementos
integram o aparelho estatal (exército, polícia, serviços de
inteligência). Segredo e traição de segredos, desinformação e violação
de tratados, propaganda e conspiração integram a máquina de guerra que
não pode ser inserida nos princípios da soberania nacional. O moderno
'partisan', o clandestino e lutador 'irregular' pode corporificar, como
paradigma, a máquina de guerra" (Knowing the Enemy: The Epistemology of
Secret Intelligence).
A última frase de Eva Horn retoma, do autoritário Carl Schmitt, a
Teoria do Partisan (cf. Diálogo sobre o Partisan, em La Guerre Civile
Mondiale). O Estado corroído pelos mecanismos bélicos semiclandestinos
tende a atenuar a diplomacia e a política externa convencional. É a
figura do anti-Estado, para falar como Norberto Bobbio.
As guerrilhas e as formas rápidas de luta libertaram a Espanha em
1808 e foram decisivas no Vietnã. Mas as "máquinas de guerra" que
enfrentaram os guerrilheiros aprenderam bastante com eles. Elas agem de
modo flexível na fímbria cinzenta da ordem pública e, sigilosas,
remodelam a razão de Estado, usando licença maior do que as imaginadas
por Maquiavel. Guerrilhas desestabilizaram o direito e rumaram para a
truculência ditatorial, como no Camboja. As máquinas de guerra somadas
aos terroristas que usam técnicas de guerrilha entorpecem as
prerrogativas legítimas do poder. As máquinas de guerra, não raro,
decidem ações dos Estados. A dureza burocrática e legal é vencida por
elas, criando situações incontornáveis.
No Brasil, após ditaduras em que as máquinas de guerra abusaram da
espionagem e da propaganda, o País descobre que a liberdade democrática
de sua gente exige investimentos. Nosso Estado exibe um anacronismo
perene. Exigir "explicações" de potências hegemônicas é esquecer o que
as levou a semelhante posto: guerra e investimento em ciência e técnica.
As máquinas de guerra as conduzem a desastres, como é o caso dos
Estados Unidos no Afeganistão, no Iraque e, possivelmente, na Síria. Mas
para deter sua força, só um poder equivalente. Quem se candidata de
fato e sem bravatas?
*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia da Unicamp e autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).
Do Estadão
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