A guerra cibernética já começou e para ela não estamos preparados, como
não estávamos em 1914 nem em 1942. E desta guerra já somos alvo.
Por que estamos em guerra? Porque esta é a principal característica da pax americana:
Kosovo, Irã-Iraque, Iraque, Afeganistão, Líbano, Palestina, Líbia,
Síria, Israel. Por enquanto, enquanto durarem os escudos chinês e russo,
descansam os eurasianos. Mesmo assim, Rússia e China não estão livres
da espionagem eletrônica. Neste ponto, fazem companhia a Brasil, México,
Venezuela, Irã e Paquistão.
Mas a pergunta é esta: que faz o Brasil nesse
rol, se não temos fronteira com os EUA, se não temos arsenal nuclear e
não pretendemos fabricar a bomba, não abrigamos terroristas, não estamos
em guerra interna e não alimentamos a esperança de superar
economicamente o gigante imperial e com eles temos relações mais que
amistosas? Contra o Brasil, o capricho da prepotência chegou ao gabinete
da presidente Dilma, que teve telefonemas seus, e-mails e outras
mensagens de texto rastreados pela Agência Nacional de Segurança, NSA,
dos EUA. Contra nós foram assestados pelos menos três programas, capazes
de acompanhar o tráfego de telefonia e dados. Para quê? Dizem os
documentos até aqui revelados por Edward Snowden, ex-funcionário da NSA,
que os objetivos da espionagem eram político-estratégicos e comerciais.
De um lado pretendia ‘melhorar a compreensão dos métodos de comunicação
e dos interlocutores da presidente e seus principais assessores’ e de
outro, atendendo tanto aos interesses do Departamento de Estado quanto
aos do Departamento de Comércio, antecipar para os negociadores dos EUA
os estudos do Itamaraty, e fornecer aos seus empresários informações de
seus concorrentes brasileiros em eventuais disputas comerciais. Neste último caso agem aqui e em todo o mundo.
Assim é a guerra do III milênio: terrorismo de Estado e guerras assimétricas. Não obstante seu declínio, que requer anos e anos
para completar-se, aprofunda-se a hegemonia (militar, científica,
ideológica) dos EUA e nada amaina sua agressividade. Nem a crise
interna, nem o fracasso rotundo das incursões no Afeganistão e no
Iraque. Ao contrário, coincidindo com a crise do capitalismo financeiro
monopolista, que corrói a economia da União Europeia e determina a
dilapidação de direitos sociais, previdenciários, salariais e
trabalhistas em geral —, a política dos EUA (que independe dos Bushs e
dos Obamas, como dos Nixons e dos Clintons) prima por iniciativas
aventureiras, que vão desde intervenções militares e assassinatos
‘cirúrgicos’, à invasão dos sistemas internacional e nacionais de
comunicação, desrespeitando a soberania de Estados, e destroçando a
ordem jurídica internacional. A insânia, que só a impunidade pode
explicar, chega ao ponto de interceptar, as comunicações de presidentes
de países com os quais não têm, ou não tinham, qualquer sorte de
beligerância.
Esta política, que associa intervencionismo e
expansionismo sem reservas, desrespeito ao multilateralismo e aos
organismos internacionais, que virtualmente decreta a inutilidade da
ONU, se não pode ser contida, e não pode no horizonte a olho nu, começa a
despertar mal-estar e indignação. Pelo menos entre os povos ofendidos.
Embora os europeus tenham sido bastante ‘compreensivos’ ante a
espionagem eletrônica, da qual muitos deles, aliás, são sócios.
Encolheram as unhas.
A direita alemã, leia-se Angela Merkel, acossada
pela opinião pública em ano eleitoral, calou-se sobre intervenção. O
agravamento da crise francesa silenciou o boquirrotismo do presidente
Hollande. Barack Obama, para acalmar a opinião pública interna, que
ainda não esqueceu seus mortos no Vietnã e tem presentes os fracassos
das incursões ‘cirúrgicas’ no Iraque e no Afeganistão, garante que usará
apenas mísseis de longo alcance e jamais tropas do exército, tropas de
ocupação. Ou seja, promete matar sem que seus soldados entrem em
combate.
O fato objetivo é que a guerra já começou e que
para ela não estamos preparados, como não estávamos nem 1914 nem em
1942. E desta guerra já somos alvo, e dessa condição temos ciência
desde pelo menos 2001, segundo depoimento do general Alberto Cardoso, na
qualidade de ministro do Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência no governo FHC.
O então responsável pela nossa inteligência
referia-se ao projeto Echelon – comandado pelos EUA (leia-se NSA), e,
nas suas palavras, integrado ainda pelo Reino Unido, Canadá e Alemanha
–, que, naquela altura já tinha capacidade de interceptar comunicações
por e-mail, voz e fac-símile. Em depoimento prestado ao Congresso
brasileiro em 2008, no segundo governo Lula, portanto, o engenheiro
eletrônico Otávio Carlos Cunha da Silva, diretor do Cepesc (Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento para Segurança das Informações, da Agência
Brasileira de Inteligência-ABIN), confirmou aos parlamentares: “O
Echelon intercepta todas as comunicações […] tudo o que está no ar, em
satélites, links de micro-ondas, torres”.
Mais recentemente, em 2012, em palestra em Seminário de que resultou a publicação Política de defesa e Projeto nacional de desenvolvimento,
o general José Carlos dos Santos, comandante do Centro de Defesa
Cibernética-CDCiber, dá conta da Guerra Cibernética e cita vários de
seus empregos, pela Rússia, pelos EUA e por Israel, entre os quais a
ação combinada entre norte-americanos e israelenses para atrasar o
programa nuclear iraniano: “Foi desenvolvido um malware,
um vírus que, aplicado aos sistemas de controle das ultra centrífugas,
fazia com que estas atingissem velocidades de operação bem acima de sua
zona de conforto, provocando superaquecimento e destruição física das
máquinas”.
Mais e mais a diplomacia dos EUA é exercida pelo
Departamento de Defesa, em permanente guerra não declarada na qual
avulta o papel de agências de inteligência e ataques cibernéticos a
alvos civis ou militares, incluindo assassinatos de adversários
escolhidos, líderes políticos ou cientistas. E não há razão objetiva
para não suspeitarmos que pelo menos China e Rússia, além da Otan,
trabalhem com os mesmos objetivos e as mesmas armas. Estaremos nós
preocupados com essa dependência tecnológica? Teremos já consciência de
suas consequências industriais e militares? Captura de dados de GPS pode
ser usada para teleguiar mísseis balísticos com vistas ao assassinato,
como sabe o governo de Israel. Provocando um blecaute é possível
congelar uma estrutura, ou promover dano físico de instalações
industriais, hidroelétricas, nucleares, militares etc., como foi o
exemplo da Usina de Natanz, no Irã. É inimaginável o que pode ser
alcançado como interferência nos sistemas aéreos e espaciais.
Em depoimento à Comissão de Relações Exteriores do
Senado Federal após a revelação da espionagem dos EUA no Brasil, o
ministro da Defesa, Celso Amorim, reconheceu que nossas vulnerabilidades
“existem e são muitas”, porque, além de os softwares de segurança serem
todos estrangeiros, todas as comunicações, inclusive as de segurança,
passam por um satélite que não é brasileiro. “No meu computador, por
exemplo, eu aperto um botão e ele deve ligar direto com a Microsoft. E
sou Ministro da Defesa”. E acrescenta: “O que eu tenho de importante a
dizer não faço na internet, faço por outros meios”. Quais?
O Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, pretende
resolver o desafio da espionagem com projeto de lei de proteção de dados
individuais que promete enviar ao Congresso Nacional, bem como com a
aprovação do Marco Civil da Internet, “que prevê o armazenamento de
dados de brasileiros em território nacional”. A questão, porém, não é de
legislação interna, mas de política de Defesa e supõe suporte
tecnológico, especialmente na garantia do livre e seguro trânsito de
informações, estratégicas ou não. Que não possuímos. Depende de uma
agência de informação, que não possuímos (a ABIN é um triste arremedo) e
depende de serviços de contra-espionagem, que dependem de decisões
políticas, de tecnologia e de muitos recursos. Depende de estarmos
preparados para ciberguerra. E depende, apenas para cuidar da imagem
ferida do pais, de diplomacia. Até aqui temos falado muito e agido muito
pouco, porque a única coisa a fazer é, ab initio, suspender a viagem da presidente Dilma aos EUA em outubro. O resto, não passa do resto.
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