Raízes democráticas na sociedade civil são paradoxalmente pré-requisito
para revoluções. Sem democracia, os direitos civis e as reformas
movem-se sobre terreno frágil, argumenta o pesquisador Benjamin Barber.
O desejo de liberdade incita a rebelião, que por sua vez mais cedo ou
mais tarde acaba expulsando os autocratas de seus tronos. Quando uma
insurreição já começou, geralmente é tarde demais argumentar sobre a
eficácia de uma revolução como precursora da democracia.
Os caminhos para a democracia transcorrem historicamente de maneira
distinta. E não está claro se uma rebelião armada – mesmo que nela um
tirano seja deposto – leva compulsoriamente à democracia. Muito pelo
contrário: insurreições revolucionárias, sejam elas a de Paris em 1789,
de Moscou em 1917 ou na de Teerã em 1979, foram bem-sucedidas no que diz
respeito à deposição dos tiranos, mas não conseguiram fazer com que
fosse estabelecida uma democracia. O resultado final acabou com
frequência sendo a instabilidade, a anarquia, a guerra civil ou até
mesmo a tirania com nova roupagem.
Revoluções geram anarquia?
As revoluções ambicionam alcançar metas, que na melhor das hipóteses já
existem antes da rebelião. Muitas das mudanças radicais no mundo árabe e
no Norte da África no decorrer dos últimos anos foram precedidas pela
"decapitação" revolucionária de um regime autocrático (como no caso da
Líbia e do Egito).
A queda dos ditadores não levou automaticamente a um governo mais livre
nem a uma sociedade civil mais capaz. Muito pelo contrário: a revolução,
não importando o quanto ela tenha sido bem intencionada, acabou
favorecendo mais a anarquia que o Estado de direito. Isso deixou claro
que, excluindo o governo formal, há pouco potencial de Estado de direito
nessas sociedades em transição.
Falta de respeito ao Estado de direito
Na Líbia, seguiram-se sérias consequências ao assassinato de um ditador
que gradualmente tirou seu país do círculo dos endividados,
introduzindo-o no mundo ocidental e que fez progressos muito modestos no
que diz respeito à sociedade civil e aos direitos humanos.
Apesar de todas as tentativas de atingir governo de unidade nacional, a
realidade na Líbia é diferente: estabeleceu-se uma hegemonia
descentralizada de tribos e militares e desde então reina uma guerra
civil latente.
Outro sinal do triste estado da Líbia hoje é a incapacidade do governo
em Trípoli de fazer com que a Zintan Militia, que mantém Saif Kadafi
como prisioneiro, extradite o filho do ex-ditador ao governo central do
país ou ao Tribunal Penal Internacional. Outro indício desta
incapacidade de governar são os ataques constantes a mesquitas sufi, que
acabam não sendo investigados pela polícia nem julgados pelos
tribunais. Outro ponto de reclamação é a liberdade de movimento das
forças da Al Qaeda no Norte da África, que foram libertadas de suas
prisões após a queda de Muamar Kadafi.
Resumindo: quando não há cidadãos responsáveis nem uma sociedade civil
enraizada, torna-se impossível firmar um governo estável ou desenvolver
um Estado de direito. A morte de Kadafi acabou pondo fim à pior
opressão, mas agora reina mais anarquia que estabilidade.
A longo prazo, as coisas irão se acalmar e as lideranças no país
alcançarão alguns progressos. Entretanto, com tempo, forças reformistas
poderiam ter alcançado a mesma coisa – sem os custos horrendos que a
queda de Kadafi trouxe. Mesmo sem a grande sensação de liberdade que a
derrubada do ditador significou.
Mudança revolucionária é criticada
No Egito a história transcorreu de maneira semelhante. Mubarak deixou o
poder, mas o país ainda se encontra em meio ao estrangulamento entre o
islã político e os militares. Os jovens liberais seculares, que
protestaram na Praça Tahrir levando à queda da ditadura, sentem-se agora
entregues às lutas pelo poder.
As mulheres continuam sendo marginalizadas e os direitos humanos
regularmente desrespeitados. Linhas divisórias políticas e religiosas
dificultam a construção de uma unidade nacional. Não se trata de achar
que a revolução não deveria ter acontecido, mas é verdade que a mudança
revolucionária não é necessariamente o melhor caminho para criar uma
sociedade civil saudável e cidadãos engajados.
Em países onde acontece no momento uma mudança violenta – como na Síria –
ninguém pode dizer com certeza quem vai se beneficiar da queda do
regime alevita do presidente Bashar al-Assad. A sociedade civil? Ou uma
nova ditadura xiita? Ou a Al Qaeda? Ou os fundamentalistas islâmicos? Ou
o liberalismo secular? Haverá de fato uma Síria unida ou o país irá
degringolar lentamente rumo à guerra civil? Haverá ali pluralismo? As
leis serão desprezadas?
A verdade é que a ira das pessoas, dominadas há gerações pela autocracia
e por um sistema opressor, dura frequentemente mais que as reformas
graduais. O rei George 3° e seu governo teriam tido como desviar da
Revolução Americana se não tivessem reagido tão rapidamente às acusações
de opressão.
Pois até mesmo a Revolução Americana não trouxe apenas liberdade, mas 80
anos de uma república escravagista e uma guerra civil sangrenta. Um
república civil livre só começou a existir praticamente um século depois
da insurreição, com a inserção da "cidadania de todos os homens" (sem
as mulheres).
Sociedade civil: chave para o sucesso
Ao observar os países do Leste Europeu, que tentam se reerguer depois da
derrocada da União Soviética, os que parecem mais bem-sucedidos nessa
empreitada (a Polônia, a Hungria e a República Tcheca) são exatamente
aqueles que, em momentos anteriores, já trouxeram uma cidadania capaz ou
já conheciam a resistência civil – por exemplo a Polônia através do
movimento Solidariedade e da Igreja Católica.
A partir disso pode-se concluir que as reformas civis e uma sociedade
burguesa, que já existia antes das mudanças radicais, são a chave do
sucesso. Paradoxalmente parece ser necessário um determinado grau de
capacidades civis para abalar eficazmente a autocracia e formar um
governo, que fortaleça e apoie as capacidades civis. Ou seja, antes das
transformações políticas, são necessários exatamente os recursos civis
que deverão ser assegurados pelas mudanças políticas.
O desastroso papel das mídias
Livrar-se de um autocrata e abalar uma elite política deveria provocar
mudanças civis. Mas quando já existe essa mudança civil, uma derrubada
violenta de governo e os altos custos daí decorrentes talvez pudessem
ser evitados. As mídias desempenharam com frequência um papel muito
infeliz ao incitar a rebeliões violentas.
E não precisaram assumir nenhuma responsabilidade. As mídias de massa
amam o espetáculo e idolatram os rostos transfigurados dos rebeldes
ensanguentados. E é exatamente essa mídia que não estará mais lá se a
revolução fracassar e começar uma contrarrevolução, ou se o mero caos se
instalar.
O Ocidente e as mídias deveriam ser mais cautelosos ao incitarem
insurreições num mundo em que tudo está entrelaçado e no qual as
consequências da anarquia civil e da instabilidade política vão além das
fronteiras nacionais, podendo se tornar onerosas. Pois os efeitos
dessas rebeliões são totalmente imprevisíveis e não é o Ocidente quem
paga a conta por isso.
O cavalo democrático à frente da carroça revolucionária
É difícil dizer quais lições deveríamos tirar da história ou dos grandes
contextos históricos das revoluções políticas. A história traz fatos.
Não se pode mais voltar atrás no caso de revoluções, não importa quais
sejam as suas consequências. Além disso, elas põem fim a uma opressão
tremenda e dão a um povo maltratado a sensação de liberdade, dignidade e
de um recomeço. Erros continuarão sendo cometidos, mas serão os
próprios e não os dos tiranos.
No entanto, as revoluções mais bem-sucedidas e produtivas aconteceram em
sociedades nas quais havia preliminarmente fundamentos democráticos e
uma consciência civil. Sociedades nas quais os rebeldes não eram mais
súditos, mas sim cidadãos. Isso deveria servir de argumento para que se
coloque o cavalo da democracia sempre à frente da carroça da revolução,
antes de iniciar insurreições problemáticas. Tudo isso a fim de
implementar, de fato, mudanças civis reais.
Benjamin R. Barber é pesquisador sênior do Centro de Filantropia e
Sociedade Civil do Centro de Graduação da Universidade da Cidade de Nova
York e fundador do Movimento de Independência. Ele foi assessor do
ex-presidente Bill Clinton e escreveu diversos best-sellers, entre eles
"A Jihad contra o McMundo".
Do DW
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