Deixemos de lado a retórica antiamericana dos governos de esquerda na América Latina – ou nem tão de esquerda assim, como disse em entrevista recente Jon Lee Anderson, biógrafo de Che Guevara, que os classificou como “um bando de superficiais” – e o discurso da presidente Dilma Rousseff em repúdio ao embargo econômico americano contra Cuba, ontem, durante cerimônia de inauguração da primeira etapa do Porto de Mariel, financiado pelo Brasil. Afinal, por que os Estados Unidos mantêm o embargo a Cuba ao mesmo tempo em que sustentam como parceiro comercial a China? Por que superaram as desavenças ideológicas com o governo chinês e não o cubano? Vejamos.

Cuba é um Estado autoritário no qual o Partido Comunista (PC) é constitucionalmente o único partido legal e “a força superior de liderança da sociedade e do Estado”. Bem, a República do Povo da China é um Estado autoritário no qual o Partido Comunista chinês (PCC) é constitucionalmente a autoridade suprema. Cuba é liderada por Raul Castro, primeiro secretário do PC e comandante chefe das forças de segurança. Na China, Xi Jinping é o secretário geral do PCC e presidente da Comissão Central Militar.

As descrições acima estão no mesmo relatório do Departamento de Estado dos EUA, publicado no ano passado, sobre a situação dos direitos humanos no mundo e constam no primeiro parágrafo das seções sobre Cuba e China.

Tortura, trabalho forçado, prisões psiquiátricas e a doação compulsória de órgãos

Em Cuba presos são mantidos em prisões lotadas, escuras e abafadas, com instalações sanitárias ou serviços médicos “inadequados”, onde dissidentes, ativistas pró-democracia e presos em geral dormem no chão de concreto ou em colchões “finos, infestados de insetos e vermes”. São sujeitos à intimidação e, às vezes, a agressões físicas. Na China, há tudo isso e “numerosos ex-prisioneiros relataram ter sido surrados, sujeitos a choques elétricos, forçados a sentar-se sobre fezes, privados de sono, entre outras formas de abusos físicos e psicológicos”. Confissões são arrancadas por tortura de presos amarrados de cabeça para baixo por dias, continua o relatório sobre China. Condenados são enviados a campos de trabalho forçado e há “relatos generalizados de presos políticos mantidos em instalações de saúde mental e involuntariamente submetidos a tratamento psiquiátrico”.

O Ministério da Segurança Nacional chinês administra diretamente 24 dessas instalações, chamadas de ankang, onde mais de 40 mil pessoas foram internadas desde 1998, entre elas, ativistas pró-democracia, religiosos, integrantes do banido Partido da Democracia, e cidadãos comuns que ousaram registrar petições contra o governo. Seus parentes recebem tratamento “particularmente duro”, revela o relatório dos EUA. O Ministério da Saúde de Pequim prometera acabar até 2017 com a prática, admitida publicamente pelas autoridades, de “tirar órgãos humanos de condenados à morte para transplante”, o que significa que o ritual macabro continua. Está tudo no relatório dos EUA.

De fato, a situação dos direitos humanos não é boa em Cuba, mas a China comunista parece realmente superar a ilha de Fidel nesse quesito. E a Casa Branca sabe bem disso.

Em Cuba, há 57,3 mil presos, alguns mantidos em isolamento, outros em campos de trabalho forçado e há adolescentes em instalações de segurança máxima. Outros três mil estão presos sem julgamento por “periculosidade potencial” (já imaginou se isso pega no Brasil?). Já a China não divulga o número de presos no país. Mas o relatório do Departamento de Estado americano cita um documento do Ministério da Justiça que revela haver 1,6 milhão de presos em 681 centros de detenção chineses. Segundo o Centro Internacional de Estudos Penitenciários, ONG britânica ligada à Universidade de Essex, outros 650 mil presos aguardavam sentença e entre 100 mil e 260 mil estavam detidos sem julgamento em prisões na China, onde “crianças são mantidas com presos adultos e obrigadas a trabalhar”.

http://www.rnw.nl/data/files/imagecache/must_carry/images/lead/article/2012/07/cuba-china-muro.jpgEm Cuba, não houve em 2012, ano em que os dados do relatório foram levantados, registros “de que o governo ou seus agentes cometeram execuções arbitrárias” ou “de desaparecimentos políticos”, embora tenham havido no passado. Na China, “as forças de segurança cometeram execuções arbitrárias” às centenas e são frequentes os assassinatos sob a custódia do Estado, o que naquele ano incluiu um menino muçulmano de 11 anos, preso por frequentar uma escola islâmica e espancado até a morte. Ativistas, religiosos, dissidentes e opositores desapareceram sem deixar rastros, diz o relatório, muitas vezes levados sob a acusação de revelar segredos de Estado, embora a definição seja pobre.

Em Cuba e na China toda a mídia é controlada pelo governo e usada como propaganda oficial, não há imprensa livre e a Internet é censurada. A Cuba dos Castro tem “pouca tolerância a críticas” e faz uso frequente de prisões de curto prazo (horas ou dias) para evitar protestos e o debate público é “limitado”. Na China, críticas aos líderes do governo são proibidas por lei e a distribuição de propaganda antigoverno prevê penas de 3 meses a 15 anos de prisão. O relatório aponta ainda, sobre a China: a intervenção na vida privada, como o ainda forte controle de natalidade, que envolve abortos forçados; a ausência de direitos trabalhistas e a corrupção endêmica.

Ao todo, os abusos e crimes cometidos pelo governo comunista chinês ocupam 159 páginas do relatório do Departamento de Estado americano; os do regime dos Castro ocupam 29 páginas.

O maior credor dos EUA

Os cubanos não vivem a democracia desejada pelos americanos; tampouco os chineses. Cuba mantém relações próximas com arqui-inimigos dos EUA, como Venezuela; a China, com Coreia do Norte, Irã, Síria.

Mas, há uma grande diferença entre eles. Enquanto o embargo a Cuba persiste, a China se tornou o maior credor da dívida externa americana. Dos cerca de US$ 14 trilhões da dívida americana, algo como US$ 5 trilhões são devidos a investidores estrangeiros, o maior aporte à China, com US$ 1,16 trilhão.

Cuba, é verdade, não fez as reformas de mercado que fez a China. Os primeiros passos, ainda tímidos, nesse sentido foram dados muito recentemente após a aposentadoria de Fidel Castro. O irmão e sucessor, Raúl Castro, adotou o que chama de “atualização do modelo econômico”.

Na China, as reformas começaram logo após a morte de Mao Tse Tung em 1976. Nos início dos anos 1980, o governo acabou com as cooperativas agrícolas e permitiu negócios privados, abrindo o mercado para estrangeiros nas décadas seguintes. Mas a reforma política jamais acompanhou a econômica. O Partido Comunista da China continua tão poderoso, autoritário e violador quanto antes. Combate brutalmente qualquer sinal de oposição e manda dissidentes para campos de trabalho forçado, interna-os em prisões psiquiátricas ou simplesmente os executa. A China é um dos cinco países com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, poder este que usa para bloquear sanções contra os governos mais corruptos, autoritários e sanguinários o mundo. Entrou para a Organização Mundial de Comércio, mas mantém relações comerciais tensas com um enorme superávit comercial, desrespeito a patentes e a pirataria de mercadorias.

É como diz um amigo, empresário paulistano: “A China continua tão comunista e autoritária quanto antes. E nada me tira da cabeça que está usando as armas do capitalismo para matar o próprio capitalismo.”

Por Adriana Carranca - Do Estadão