Após a derrocada da União Soviética,
a democracia liberal parecia destinada a um triunfo absoluto. Na
ausência de alternativas viáveis, acreditava-se que aderir a ela traria
como recompensa estabilidade política e prosperidade econômica para
sempre. Mas, como alerta o ditado, alguma coisa é infalível até que
deixa de funcionar.
Nos últimos anos, cientistas políticos
do mundo todo passaram a apontar indícios de algo que parecia
inimaginável: a democracia liberal começava a ruir até mesmo nos países
em que suas bases estavam mais consolidadas.
Uma onda de populismo autoritário
ameaça o planeta, dizem os pesquisadores. O caso mais simbólico foi a
eleição de Donald Trump nos EUA, mas as manifestações da crise incluem
exemplos de natureza e efeitos variados, como a vitória do brexit no Reino Unido, de Viktor Orbán na Hungria, de Recep Tayyip Erdogan na Turquia e mesmo a de Jair Bolsonaro no Brasil.
Uma singularidade do fenômeno é que essas decisões foram
tomadas pelo eleitor de forma livre e espontânea. Vem daí o provocativo
título que o cientista político Yascha Mounk deu a seu livro, “O Povo
contra a Democracia”, publicado agora no Brasil pela Companhia das
Letras.
Doutor por Harvard (EUA), Mounk se insere no recente filão de livros
de análise política com mensagem alarmante: a democracia vai de mal a
pior e nossa liberdade corre perigo. No ano passado, uma obra
semelhante, “Como as Democracias Morrem”
(Zahar), dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
entrou na lista dos mais vendidos de vários países, inclusive no
Brasil.
Ainda é cedo para avaliar se os prognósticos pessimistas estão
corretos ou não, mas o interesse despertado por esses títulos comprova
que de alguma forma souberam capturar preocupações reais do leitor. Na
semana passada, Mounk participou de uma série de palestras no Brasil.
Embora não descarte a possibilidade de estar equivocado, Mounk percebe muitos indícios de um futuro tenebroso. “Creio que a democracia enfrenta
agora seu maior desafio. As pessoas estão perdendo a fé no sistema.
Passaram a eleger líderes autoritários que atacam a ordem institucional,
com a desculpa de que representam a vontade popular. Então o risco é
muito mais complexo e sutil, pois resulta de demandas da sociedade.”
A principal contribuição de Mounk ao debate é apontar uma crise no
próprio conceito de democracia liberal. Liberalismo e democracia, diz
ele à Folha, permaneceram colados por muito tempo, mistura que garantiu
tanto a proteção dos direitos individuais como a tradução da opinião
popular em políticas públicas, através do voto. O sucesso do modelo
conferiu a feição política do Ocidente, dando-nos a impressão de que os
dois termos formavam um só ente imutável.
Mas a cola que os unia está rapidamente perdendo aderência, alerta o
cientista político. O sistema vem se desvirtuando em duas novas formas
de regime. De um lado há um liberalismo antidemocrático,
ou direitos sem democracia, em que, a despeito de eleições regulares e
competitivas, a população é excluída da tomada de decisões fundamentais,
em benefício das elites.
A revolta dos cidadãos com esse quadro contribuiu para levar ao outro lado da moeda: a democracia iliberal,
ou democracia sem direitos, na qual a maioria opta por um governante
antiestablishment que promete restituir sua participação política, mesmo
que aos custos de subjugar as instituições independentes e restringir
direitos das minorias.
O cabo de guerra entre a vontade popular e os direitos individuais
parece provocar um curto-circuito na ideia de democracia liberal, uma
vez que os dois lados têm bons motivos para puxar a corda.
“A população não está errada ao perceber que sua participação
política é pequena em muitos casos. E querer mudar isso é um fator muito
positivo. O problema é que essa reivindicação beneficia populistas como
Hugo Chávez e Bolsonaro.”
Do UOL
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