Eis um caso curioso de interpretação do que se passa na geopolítica mundial: o principal analista do serviço secreto dos EUA, Thomas Fingar, acha que o poder de seu país está erodindo. E vai erodir mais, num passo acelerado.

A avaliação de Fingar foi feira em uma conferência para seus colegas de profissão, no início do mês. A transcrição (em inglês) está disponível para os leitores. Para ter acesso, clique aqui. Vale a leitura. Para sapear trechos selecionados e editados, em português, leia o post abaixo. E, a seguir, reprodução do texto publicado ontem (21.set.2008) no caderno Mais!, da Folha.

A erosão do império

Líder da inteligência dos EUA prevê declínio da influência mundial de Washington, mas não vê nenhum país à altura de substituí-lo

FERNANDO RODRIGUES - DA SUCURSAL DE BRASÍLIA


Intelectuais de esquerda e desafetos dos EUA ganharam um aliado de peso para os argumentos e vaticínios sobre o declínio norte-americano. Surgiu uma análise tão heterodoxa quanto sombria no coração do império, dentro de uma de suas instituições mais tradicionais, o serviço secreto do país.

Eis o prognóstico de Thomas Fingar, presidente do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA: "A dominação americana será muito reduzida [até 2025]. A esmagadora dominância que os EUA desfrutaram no sistema internacional nas áreas militar, política e econômica e, discutivelmente, na área cultural está erodindo e vai erodir num passo acelerado, com a exceção parcial do setor militar".

Fingar falava numa conferência de agentes e analistas do setor de informações norte-americano. A transcrição de sua palestra está disponível na internet [leia quadro ao lado].

Ele é considerado um dos mais importantes intérpretes da chamada "comunidade de inteligência" dos EUA, uma intricada teia de agências que incluem a CIA e vários outros órgãos cuja obrigação é coletar dados para análise estratégica do governo.

Ao expor seu ponto de vista, Fingar resumia o conteúdo dos briefings oferecidos pelo serviço secreto aos dois candidatos principais a presidente dos EUA, o democrata Barack Obama e o republicano John McCain. É costume esse tipo de reunião entre agentes de inteligência e políticos no período pré-eleitoral.

Após a eleição, o novo presidente receberá um trabalho completo do serviço secreto, com uma avaliação de cenários possíveis para os EUA e para o mundo até 2025. O ocupante da Casa Branca usará documentos como esse na formulação de sua política nos próximos quatro anos.

Sobre o processo de globalização, Fingar enxerga mais desigualdade. "A distância entre ricos e pobres -internacionalmente, regionalmente- vai crescer." Seria necessário, diz ele, uma reforma de várias estruturas de "tremendo sucesso" (FMI e Banco Mundial, entre outras), mas que ficaram obsoletas para "tratar dos desafios, das conseqüências da globalização". O problema é como implementar tal reforma. Toda idéia vinda dos EUA, "mesmo que seja uma idéia muito boa, estará manchada, se não completamente morta na largada" por causa da péssima imagem do país.

O vácuo não será preenchido tão cedo. Fingar não identifica nenhuma força emergente capaz de exercer o poder de liderança desfrutado pelos EUA no Ocidente no período pós-Segunda Guerra Mundial.

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Sobrará aos EUA o poderio militar, mas "menos significante". Não haverá no futuro alguém interessado em "atacar com forças maciças convencionais". Fingar também esboça pessimismo a respeito dos efeitos da mudança climática no planeta sobre a geopolítica mundial. Vislumbra crises políticas provocadas pelas dificuldades derivadas do clima mais severo. Prevê desabastecimento de água em regiões como "o já instável Oriente Médio e a China".

Encontro na Disney

O encontro anual de agentes secretos e analistas de informações norte-americanos de vários escalões foi realizado de 2 a 4 deste mês. Sem se preocupar com a já baixa credibilidade da "comunidade", sobretudo depois do 11 de Setembro, os participantes escolheram como sede do encontro o chamativo Walt Disney World Swan and Dolphin Resort, em Orlando, na Flórida.

A entidade organizadora foi a INSA (Intelligence and National Security Alliance), uma espécie de associação de classe dos arapongas dos EUA. Nome do evento deste ano: "Transformação Analítica 2008 - Vantagem da Decisão para Desafios Futuros".

Integrante da "comunidade" desde 1970 e estrela do encontro na Flórida, além de presidir o Conselho Nacional de Inteligência, Fingar fala alemão e chinês e é vice-diretor da poderosa DNI (Director of National Intelligence), organismo criado após o 11 de Setembro com o objetivo de coordenar e analisar as informações produzidas por todos os escalões governamentais.

Vácuo internacional

O problema, diz Fingar, é não ter surgido uma força mundial capaz de construir uma nova agenda minimamente consensual. Cita como pretendentes Rússia, China e União Européia. Todos têm, na sua opinião, a mesma bagagem negativa dos EUA. "Não há ninguém em posição ou prestes a estar numa posição de, nesse período de tempo [até 2025], tomar a dianteira e instituir as mudanças que certamente precisam ser feitas no sistema internacional."

Nesse trecho de sua fala, é como se Fingar deixasse uma pergunta no ar: qual país teria hoje a força que tiveram os EUA na fase final da Segunda Guerra Mundial para criar novos acordos como os de Bretton Woods, de onde nasceram o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial?

O governo norte-americano foi o grande patrocinador daquele sistema. Representantes do mundo inteiro se dispuseram a passar alguns dias em julho de 1944 num vilarejo no interior da Nova Inglaterra, Bretton Woods, no Estado de New Hampshire.

A participação brasileira é contada com algum detalhe por um dos enviados do país, Roberto Campos (1917-2001), no seu livro "A Lanterna na Popa" (ed. Topbooks, 1994). Tudo foi determinado pelos EUA, e os outros países foram se encaixando. Agora, essa operação seria inexeqüível -sob o comando de Washington ou de qualquer outro governo.

A palestra de Fingar é instrutiva para conhecer como o establishment norte-americano forma seus juízos de valor e sua visão de mundo. A transcrição de 32 páginas é abrangente, mas muitos países e regiões do mundo ficaram de fora. A palavra "Brasil" não aparece nenhuma vez. "América Latina" surge em um contexto junto com o Sudeste Asiático, quando o assunto é a alocação de pessoal de inteligência norte-americana.

Em resumo, o crescimento brasileiro dos anos recentes e a descoberta do petróleo da camada pré-sal foram insuficientes para colocar o país numa área relevante e abrangida pelo radar da "comunidade de inteligência" norte-americana.