Com o caos aéreo e a corrida armamentista da Venezuela, militares brasileiros voltaram ao centro da atenção do país. VEJA faz uma radiografia das Forças Armadas e traz dados da primeira pesquisa da história com os homens de farda, mostrando o que eles querem e o que pensam.
Otávio Cabral
Ana Araújo |
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Em Resende, no interior do Rio de Janeiro, o aspirante Diógenes Serra Azul Albuquerque se diz satisfeito com sua escolha profissional. Ele está cursando o 3º ano da Academia Militar das Agulhas Negras, instituição que forma os oficiais do Exército. Ganha 800 reais por mês, gosta do curso que concluirá no ano que vem e tem clareza sobre o papel do Exército no Brasil de hoje. "Vivemos uma situação de paz, mas não dá para prever o que será o mundo daqui a cinco ou dez anos", diz ele, repetindo, com precisão milimétrica, o pensamento de seus superiores. Em Brasília, um ex-piloto de caça conta por que deixou a Aeronáutica depois de quinze anos de serviço. "Desde criança, sonhava em ser piloto de caça", afirma ele, que pede para não ser identificado. "Passei risco de morte, mas sempre achei que valia a pena. Nos últimos anos, com salário baixo e equipamento obsoleto, comecei a repensar minha vida. A paixão me sustentou por muito tempo, mas me sentia inútil. Achei que era hora de mudar." Como tenente-coronel, ele ganhava cerca de 7.000 reais. Agora, fará concurso para promotor do Ministério Público. Se passar, começará com 12.000 reais.
O aspirante do Exército e o ex-piloto da Aeronáutica vêm de um mesmo mundo – o mundo militar, que, como se pode constatar, é capaz de exercer fascínio no caso de uns e destruir até sonhos de infância no caso de outros. A reportagem de VEJA começa com esses dois personagens para que, desde o início, o leitor tenha em mente um aspecto central: as Forças Armadas brasileiras, essa instituição cuja história remonta a 350 anos, não são o paraíso nem o inferno, e os militares brasileiros, esse contingente de 290.000 homens, não são heróis nem vilões. As Forças Armadas e seus integrantes são, a um só tempo, um pouco das duas coisas: viveram glórias e tragédias, ouviram aplausos e vaias. Agora que o Brasil celebra 22 anos de democracia depois de 21 anos de ditadura, os militares, com uma intensidade rara, voltam a chamar a atenção do país, felizmente não em razão de rebuliços nos quartéis ou acenos à cólera das legiões. A atenção que atraem se deve a fatores que incluem o caos aéreo, a posse de um ministro da Defesa como Nelson Jobim, cujas ambições políticas só são menos notórias que seu talento para o marketing, e a escalada armamentista do ditador venezuelano Hugo Chávez. Nesse cenário, é relevante saber o que os militares pensam e o que querem.
Ana Araújo |
TAMANHO DA TROPA Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, marcham durante treinamento: será que um efetivo de 100·000 homens não seria suficiente? |
Em parceria com a CNT/Sensus, VEJA realizou duas pesquisas: uma com a população, entrevistando 2.000 pessoas em 24 estados, e outra inédita na história brasileira, ouvindo a opinião dos próprios militares. Foram entrevistados 384 soldados e oficiais, em dezenove cidades. Todos do Exército, única força pesquisada por reunir 65% do contingente militar do país. A cúpula do Exército autorizou os pesquisadores a entrar nos quartéis e questionar qualquer militar, sem a presença de superiores, e fez uma única exigência, aqui atendida: informar que a opinião dos militares é dos militares, não do Exército como instituição. A pesquisa mostra que os militares acham o Brasil um país desorganizado (63,5%), reclamam da obsolescên-cia dos equipamentos militares (68,5%), acham que a criação de reservas indígenas mina a segurança da Amazônia (68,2%) e pensam que os presidentes civis têm lhes dado tratamento inadequado (77,1%), embora gostem do formato do Ministério da Defesa (56%), ainda que preferissem vê-lo comandado por um militar (69,5%).
O cruzamento das pesquisas, cotejando a opinião de civis e militares, traz revelações curiosas. Os civis são esmagadoramente favoráveis ao emprego do Exército na luta contra o crime, já os militares nem tanto (veja quadro). Ainda no campo da criminalidade urbana, a pesquisa mostra que 50,8% dos civis não aceitam o recurso dos maus-tratos contra criminosos para obter informações, e só 35,4% dos militares têm a mesma opinião – mas é preciso ressalvar que a pergunta feita para civis e militares não é exatamente igual (veja quadro). Além das diferenças, civis e militares estão em notável sintonia de pensamento em alguns casos. Um ponto em que uns e outros exibem maioria semelhante é com relação à Amazônia: ambos temem que a floresta seja ocupada por uma potência estrangeira (veja quadro). É uma sintonia interessante, sobretudo porque o temor que os militares têm de uma invasão amazônica às vezes soa como paranóia fardada – mas até que faz sentido diante da penúria de gente e de equipamentos das Forças Armadas, uma realidade que o grosso da população civil ignora.
Ana Araújo |
EVASÃO E CONCURSOS Mulheres de militares protestam em Brasília por melhores soldos para os maridos: evasão crescente e procura por concursos públicos |
O Brasil possui o 15º maior efetivo militar do mundo e o maior da América do Sul, mas, em números proporcionais, considerando o tamanho do país e da população, tal vantagem some. A Colômbia é a campeã sul-americana na relação entre o tamanho do efetivo do Exército e o do território. Tem um militar para cada 8 quilômetros quadrados. O Chile vence na relação entre efetivo e população, com 5.500 fardados para cada grupo de 1 milhão de habitantes. Além disso, o Brasil tem problema grave de equipamento. Os militares sonham com as maravilhas da tecnologia e preparam um plano de investimento que, idealmente, consumiria 16 bilhões de reais em cinco anos, mas vivem uma realidade dramática. O Exército possui tanques dos tempos da Guerra da Coréia, de 1953. A Marinha, responsável pelo litoral brasileiro, não tem navio com menos de vinte anos de uso. Há fragatas inglesas do início da década de 70. A Aeronáutica, talvez a força mais bem equipada, possui aviões Buffalo com mais de quarenta anos que nem saem do chão e estão sendo canibalizados para ceder peças a outros aviões.
A escassez de dinheiro repercute na própria formação da tropa. Ao treinar tiro num tanque blindado Cascavel, um aspirante-a-oficial do Exército usava munição do próprio blindado. Como cada tiro custa 250 dólares, o Exército comprou um redutor de calibre para que o treinamento passasse a ser feito com bala de fuzil, que custa 10 reais. Pior: as primeiras aulas de tiro são realizadas com chumbinho e fuzis de ar comprimido. Só depois de alguma prática, o aspirante tem direito a utilizar a munição de 10 reais. Na Aeronáutica, um piloto de caça voava 250 horas por ano no treinamento. A hora de vôo de um caça supersônico sai por 1.000 reais. Por isso, o treinamento hoje não passa de oitenta horas. "A preparação é pior, causa frustração pessoal, e os profissionais não têm a mesma qualificação", diz um dos brigadeiros que comandam a Aeronáutica pedindo o anonimato. "Temos um plano para aumentar o treinamento para 100 horas/ano, mas é impossível voltar às 250 horas do meu tempo", diz ele, que se formou em 1990. A penúria, no entanto, nunca desestabilizou centros de excelência das Forças Armadas, como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica ou o Instituto Militar de Engenharia. Outras despesas foram cortadas. O Exército chegou a adotar meio expediente nos quartéis às segundas e às sextas-feiras. Só para cortar o almoço de segunda e o jantar de sexta, poupando duas refeições. Na Vila Militar, bairro onde vivem 25.000 militares e seus familiares no subúrbio do Rio, há fartos sinais de precariedade. Um exemplo: nos dois hospitais do bairro não se fornece roupa de cama. O paciente leva de casa.
Ana Araujo | "Desde criança sonhava em ser piloto de caça. Passei risco de morte, mas sempre achei que valia a pena. Nos últimos anos, comecei a repensar minha vida. A paixão me sustentou por muito tempo, mas me sentia inútil. Achei que era hora de mudar." EX-PILOTO DE CAÇA |
Com a história recente do regime militar e as recorrentes discussões sobre indenizações a familiares de esquerdistas que morreram, fica-se com a impressão de que a vida nacional é toda ela permeada pelo embate entre civis e militares. É engano. Como a conquista da independência se deu sem a interferência de militares, o Brasil começou sua vida autônoma em 1822 de modo notavelmente infenso à influência da caserna. O Brasil era um império ordeiro, cultor do civilismo e orientado pelo constitucionalismo da Inglaterra. Havia um agudo contraste com os vizinhos, na maioria repúblicas em permanente convulsão e dominadas por caudilhos. Com a Guerra do Paraguai (1864-1870), que produziu a maior carnificina da história sul-americana, o Brasil ganhou seus primeiros heróis militares, que começaram a cobrar de dom Pedro II, o imperador, o devido reconhecimento ao seu sacrifício. O Exército conquistou identidade, tornou-se uma corporação. Começou aí a saga da influência militar na vida brasileira. Tal influência resultou no golpe que proclamou a República, em 1889, deu no tenentismo dos anos 20 do século passado, deflagrou a Revolução de 1930, deixou rastro na ditadura do Estado Novo e desembocou no golpe de 1964 – que deu início ao mais longo período de domínio fardado na história do país.
Encerrado o regime de 64, os militares perderam espaço e influência na vida nacional. No governo Sarney (1985-1990), ainda eram fortes, pois o presidente recorria ao aconchego dos urutus sempre que julgava necessário. Fernando Collor (1990-1992) demonizou os militares na campanha eleitoral, mas consumiu um cordato matrimônio com eles no seu breve governo. Sob Itamar Franco (1992-1994), os militares, acionados para corrigir qualquer emergência, experimentaram seu último período de influência. De 1995 em diante, entre os governos de Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva, dois perseguidos pelo regime militar, a situação mudou.
"A mais séria crise da história das Forças Armadas está em curso desde 1995 e é causada pela falta de prioridade e pelo desconhecimento do que as Forças Armadas representam para o estado", diz o cientista político Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas. De 1995 até 2003, os militares perderam uma série de regalias herdadas do regime militar. Entre outros cortes, deixaram de receber licença de um mês para cada dez anos trabalhados, gratificação salarial de 1% por ano de serviço e promoção automática ao se aposentar, que garantia um salário 10% mais alto do que na ativa.
Com isso, a grande batalha dos militares tem sido não perder dinheiro. Pelos dados do World Economic Outlook da ONU, o Brasil está entre os países da América do Sul que menos investem nas Forças Armadas. Em 2005, gastou-se 1,8% do PIB. É um porcentual inferior ao do Equador (3,7%), do Chile (3,5%), da Colômbia (3,3%) ou da Bolívia (2,2%). Os comandantes militares fazem questão de denunciar essa situação sempre que possível. Ao transmitir o cargo ao sucessor em março, o então comandante do Exército, general Francisco de Albuquerque, disse que o dinheiro não dava nem para "superar o desgaste de décadas". O almirante Julio Soares de Moura, ao assumir a Marinha, denunciou que a situação era "insustentável". Com a gritaria, os militares arrancaram 2,2 bilhões de reais a mais do Orçamento do ano que vem. Já é alguma coisa. Corresponde a 3% do total do Orçamento, mas nem de longe lembra os áureos tempos, durante a ditadura, quando chegaram a abocanhar 24% do Orçamento – uma enormidade absurda, é claro. Diante das dificuldades, não surpreende que a evasão cresça. No ano passado, bateu o recorde: 206 oficiais foram embora. Neste ano, 136 já pediram o quepe.
"O Brasil ou tinha capacidade de produzir equipamentos de ponta ou recursos para comprá-los. Hoje, não tem nem uma coisa nem outra", avalia o professor Expedito Bastos, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora. Cálculos oficiais indicam que, entre 2002 e 2006, o salário dos militares caiu 19,2% em termos reais. Já os servidores civis tiveram aumento real de 5,29%. "O sonho de um militar hoje é prestar concurso público. Em toda cerimônia nos quartéis há distribuição de panfletos de cursinho preparatório. É raro encontrar um militar de baixa patente satisfeito com a carreira", diz Ivone Luzardo, presidente da União Nacional de Esposas de Militares, entidade que organiza panelaços e acampamentos por aumentos salariais. Na Vila Militar no Rio, há propaganda de cursos em quase todas as portas de unidades militares. Pudera. Um soldado ganha menos do que um policial militar de Alagoas, a menor remuneração do país. Dá 850 reais contra 772. As di- ferenças na iniciativa privada são mais gritantes. Um capitão médico do Exército recebe uns 6.000 reais. Um médico de uma fundação como o Hospital Sarah Kubitschek, sonho de consumo dos doutores militares, tem salário inicial de 10.000 reais.
Os militares têm seu quinhão de responsabilidade pela situação crítica. À falta de gente e dinheiro alia-se um defeito geográfico produzido por eles mesmos: os militares estão presentes onde não se precisa deles e ausentes de onde são necessários. Há mais fardados no Rio do que na Amazônia. Em parte, o descompasso geográfico decorre dos altos custos de deslocamento, mas também da resistência dos militares em deixar a boa vida à beira-mar. Uma deformação estrutural revela tal viés: as Forças Armadas são magras na base, mas obesas na cúpula. O Exército tem 151 generais para um efetivo de 190.000 militares. Dá um general para cada 1.258 homens. É mais do que é observado em países em guerra, como Estados Unidos ou Israel. Nesse cenário, seria razoável criar uma estrutura mais enxuta e ágil, mas aí a coisa esbarra no corporativismo militar. Especialistas dizem que o Exército poderia ter 20.000 homens altamente treinados para se deslocar para qualquer ponto do país em menos de 24 horas e 80.000 homens para ocupar os demais batalhões. Dá 100.000, quase a metade do contingente atual, dentro do qual não há nem 5.000 capazes de se deslocar num único dia para qualquer área do território. No entanto, 63,3% dos militares acham que o Exército, hoje, é menor do que o necessário. Só 3,1% o consideram grande demais.
Com tudo somado, militares e estudiosos do assunto são quase unânimes em afirmar que as Forças Armadas atravessam a pior crise da história. Isso, naturalmente, ajuda a minar o astral da tropa, mas, talvez de modo surpreendente, não se ouve um pio contra os civis ou o regime democrático. "Pode haver algum general pensando isoladamente em golpe, em volta ao poder. Mas o Exército não tem mais nada de imediato a oferecer à sociedade, não tem mais respaldo popular", diz Expedito Bastos, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Fabiano Accorsi |
O QUE É BOM RESISTE Um teste no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (acima) e uma experiência no Instituto Militar de Engenharia: os centros de excelência permanecem de pé |
Ana Araújo |
Na pesquisa realizada pela CNT/Sensus, 35% dos civis dizem que gostariam de ter os militares de volta ao governo. É um número alto, mas é preciso levar em conta que quase 60% são contrários – e entre eles estão muitos dos próprios militares. Quando os jovens falam na volta dos militares ao poder, no entanto, nem sempre isso tem conotação tão negativa quanto parece aos que já eram adultos no tempo da ditadura. Quanto mais o tempo passa, a memória empalidece e melhora a reputação das Forças Armadas. Desde 1989, o Ibope mede o prestígio dos militares. Nas pesquisas iniciais, cerca de 50% dos pesquisados diziam confiar nos militares. Nos levantamentos mais recentes, esse porcentual passou a girar em torno de 70%.
Entre os militares, existe uma aceitação inconteste do poder civil. Na pesquisa, embora 56% deles digam que os presidentes militares trouxeram mais desenvolvimento ao país, 23% acham que os civis fazem um trabalho melhor. É a metade, mas não deixa de ser significativo que exista uma massa na caserna a prestigiar civis em detrimento de militares. "A realidade mundial é outra, não há clima para intervenções militares nem intenção nas Forças Armadas de promovê-las", diz o general Gerson Menandro, comandante da Academia das Agulhas Negras. "Após quase vinte anos de eleições diretas para presidente, está consolidado entre os militares o respeito à alternância de poder." As trombetas que tocam de vez em quando vêm dos clubes militares, que reúnem os oficiais da reserva. Mesmo ali, não prospera o golpismo. Eis a avaliação do general da reserva Gilberto Figueiredo, que preside o Clube Militar, com sede no Rio: "Há problemas sérios no país, mas eles têm de ser resolvidos dentro da democracia. Não há mais espaço no Brasil atual para revoluções militares".
Nada disso significa que as Forças Armadas tenham se transformado em um grupamento sem idéias nem ideais. A instituição nutre um forte sentimento corporativo e pode-se perceber, aqui e ali, a persistência da ideologia do inimigo interno – uma ideologia que veio da França, e não dos Estados Unidos, ao contrário do que muitos pensam. O Exército, particularmente, tem-se na conta de uma reserva moral, de último sustentáculo da estabilidade e da ordem – e as pesquisas de opinião mostram que a instituição é vista assim pelo povo.
"Esse sentimento pode ser constatado pelo fato de que o Exército ainda hoje mantém a chamada ‘estratégia da presença’, espalhando quartéis por todo o território nacional, até em cidades em que são absolutamente desnecessários", diz o professor João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, fundada há dois anos. Ou seja: os militares preservam um sentimento corporativo e uma visão de mundo distinta dos civis. Imaginar que, por isso, os militares devem ser vistos como inimigos ou que um golpe pode estar sendo gestado é uma tolice. As diferenças entre civis e militares são grandes, mas naturais e complementares. Existe espaço suficiente na caserna para a realização profissional do aspirante Diógenes Serra Azul Albuquerque e, na vida civil, para o recém-chegado ex-piloto de caça.
Quando fizeram a segurança dos chefes de estado que estiveram no Rio de Janeiro para a conferência do meio ambiente, a Eco 92, os militares tiveram sucesso total. Desde então, com o aumento da criminalidade no Rio, a idéia de colocar o Exército para policiar a cidade tornou-se recorrente. Em julho, nos Jogos Pan-Americanos, os militares novamente saíram às ruas, e os cariocas, aliviados com a súbita queda em assaltos e crimes, voltaram a aplaudi-los. A atuação do Exército como força policial, no entanto, é o tema que mais divide a opinião de militares e civis. Entre os civis, 87,9% apóiam a idéia de levar o Exército a subir o morro em busca de bandidos, segundo pesquisa feita pela CNT/Sensus em parceria com VEJA. Entre os militares, apenas 43,8% aceitam a idéia e outros 20,3% dizem que depende do caso. As objeções levantadas pelos militares contra a presença do Exército nos morros cariocas fazem sentido. Eles dizem que são treinados para a guerra, não para enfrentar o crime. Em combate, são preparados para eliminar o inimigo, não para detê-lo. São treinados para atuar em equipe, em pelotões, não individualmente ou em dupla, como costuma ocorrer na guerra policial urbana. É tudo verdade. Mas a questão central permanece: qual a lógica de manter um Exército com 190 000 homens armados sem uma guerra para travar, enquanto o crime organizado, espantosamente bem armado, aterroriza uma população indefesa? A população, claramente, acha que não há lógica. Os militares, embora desgostando da idéia, têm mostrado interesse crescente em debater a possibilidade de ajudar no combate ao crime. O assunto é pauta constante nos quartéis e academias, e já existe até treinamento. Na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), aspirantes a oficial do Exército treinam técnicas de comando e combate numa cidade cenográfica, semelhante a um morro carioca – tem casebres, botecos, vielas, grades, muros, só não tem moradores caminhando pelas ruelas. A disciplina, chamada de GLO, que se traduz por "garantia da lei e da ordem", é obrigatória no 3º dos quatro anos do curso. Na Aman, também há uma palestra por mês sobre temas da atualidade. Neste ano, em duas ocasiões o tema foi a situação do Rio e do narcotráfico. "Temos de estar sempre preparados para atuar nas cidades na garantia da ordem para o caso de haver necessidade", justifica o general Gerson Menandro, diretor da Aman. Fiel ao código de conduta militar, o general Menandro não diz se ele próprio é a favor ou contra o Exército subir o morro. Em geral, os altos oficiais são contra. Um dos maiores temores é a contaminação do Exército pela criminalidade. Trata-se de um risco real. Em junho passado, a polícia prendeu uma quadrilha composta de ex-integrantes da tropa de elite do Exército, na Ilha do Governador. Eles foram cooptados para dar lições de guerrilha aos "soldados" das facções criminosas, principalmente com aulas de tiro. Para uma categoria como os militares, tão ciosa de seu patriotismo e de sua retidão de caráter, constatar que ex-colegas se envolveram com a bandidagem é um choque. O Exército, caso venha a ser escalado para combater o crime, talvez devesse aprimorar os mecanismos de controle de sua tropa, acionar seus serviços de inteligência, tudo para evitar a ramificação da criminalidade. Mas é praticamente certo que algum tipo de infiltração, de fato, aconteceria. Outro fantasma que atormenta os militares é a morte acidental de algum civil. "Seria a desmoralização das Forças Armadas, que já estão com a imagem arranhada pela crise nos aeroportos", diz um oficial da ativa, para completar em seguida: "Há até um pensamento paranóico na caserna de que o governo tem intenção de colocar os militares na rua só para desmoralizá-los". De fato, é uma abordagem um tanto paranóica. Como indica a pesquisa do instituto Sensus, é a opinião pública, com uma ampla maioria, que gostaria de ver os militares ajudando a combater a criminalidade. |
CHÁVEZ DÁ A LARGADA
O fantasma da corrida armamentista foi exorcizado na América do Sul depois da onda de democratização dos anos 80, mas seu espectro está de volta à região, e o motivo é um só: a Venezuela de Hugo Chávez. Com o sexto maior Exército do subcontinente, o país está se armando até os dentes. Nos últimos tempos, Chávez comprou 24 caças russos Sukhoi 30, que são hoje os mais modernos da região. Adquiriu 53 helicópteros e 100 000 fuzis de assalto AK-103 – destinados a armar um exército popular, pois a força regular tem apenas 60 000 homens – e tem planos de transformar sua força naval na mais avançada da América do Sul. Tudo à custa de investimentos de 4,3 bilhões de dólares em cinco anos. A manobra de Chávez, que reivindica uma fatia robusta do território da Guiana, já provocou alarme do ex-presidente José Sarney, para quem o ditador venezuelano está querendo criar "uma potência militar". O próprio comandante do Exército brasileiro, general Enzo Peri, numa referência velada à escalada de Caracas, disse recentemente que o Brasil precisa se preocupar com sua "capacidade de dissuasão". Tais temores ainda não repercutem entre a população em geral. A pesquisa do Sensus realizada em parceria com VEJA mostra que 57,9% dos brasileiros não acreditam na possibilidade de um conflito armado com os vizinhos e 46,5% não acham que os governos populistas de Venezuela, Bolívia e Equador representem ameaça ao país. Os militares estão mais alarmados (veja o gráfico). A preocupação com vizinhos, em especial a Venezuela, pode ser mero pretexto dos militares para valorizar seu papel ou faz sentido mesmo fora da caserna? É certo que, neste momento, o Brasil detém a supremacia militar na região, como acontece desde a Independência, em 1822, mas é crescente o risco de perdê-la. "Se o Brasil continuar como está, andando para trás, em dez anos perderemos a liderança", aposta o cientista político Expedito Bastos, do Núcleo de Assuntos Militares da Universidade Federal de Juiz de Fora. Há uma tróica de países a ameaçar a superioridade brasileira – além da Venezuela, a conta fecha com o Chile e a Colômbia. Embora com poderio militar menos vistoso que o brasileiro, os três países têm ambiciosos planos de reaparelhamento do material bélico. Com investimento de 3,9 bilhões de dólares, o Chile está recebendo caças americanos, fragatas inglesas, submarinos franceses e tanques alemães. A Colômbia, que anunciou investimento de 3,6 bilhões de dólares, quer aumentar seu efetivo em 38 000 homens. Os três países já têm, hoje, uma proporção mais confortável que a brasileira entre militares e civis. No Brasil, há 1 650 militares para cada milhão de habitantes. Na Venezuela, são 2 350 militares. Na Colômbia, 3 600. No Chile, 5 500. O mesmo acontece na relação entre o tamanho do efetivo do Exército e o do território. O Brasil tem um militar para cada 45 quilômetros quadrados. Na Venezuela, é um fardado por 27 quilômetros. No Chile, um para 15. Na Colômbia, um para 8 quilômetros. O Exército brasileiro tem preocupações que a maioria dos civis julga um exagero – tem até batalhão especializado em ataque químico e biológico, que foi usado nas visitas do papa Bento XVI e do presidente George W. Bush. Mas a questão dos países vizinhos é seu calcanhar-de-aquiles. "A movimentação armamentista dos vizinhos traz medo às Forças Armadas, principalmente ao Exército", diz o cientista político Alexandre Fuccille, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas. Ouvido com a condição de manter o anonimato, o comandante de uma das Armas diz o seguinte: "A situação na América do Sul é alarmante. Chávez está armando a Venezuela e planeja armar a Bolívia de Evo Morales. O Chile tem aumentado o orçamento militar e aplica o treinamento mais intensivo e eficiente da região. Se Chávez construir uma rede de apoios com países mais ao sul e bases para sua Força Aérea, será uma ameaça grave. O Brasil não pode pensar que não há ameaça. Vivemos tempos de paz, mas essa paz pode não ser tão duradoura". A história ensina que relações militares podem deteriorar-se abruptamente – ou aprimorar-se, mas, nesse caso, sempre de modo mais lento que abrupto. A histórica rivalidade entre Brasil e Argentina é um exemplo de melhora. "Os argentinos estão muito mais preparados do que nós para a integração militar no âmbito do Mercosul", atesta o professor João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa. Na crescente proximidade entre os dois países, já há tropa brasileira em terras da Argentina, e tropa argentina treinando em porta-avião brasileiro. Enquanto Chávez cultiva seus delírios bolivarianos, pelo menos a parte sul da América do Sul tem logrado mandar um recado de paz e sensatez. |
Antonio Milena |
ENTRE A MATA E A PRAIA Militares em treinamento na Amazônia: a região é considerada prioridade, mas tem mais fardado no litoral do Rio do que na floresta |
Nos 185 anos de vida independente do país, os militares brasileiros já se preocuparam com temas bastante diversos – dos paraguaios, com os quais lutaram até 1870 no mais sangrento conflito da América do Sul, aos comunistas financiados pelo ouro de Moscou, nos anos 60 e 70 do século passado. Hoje, a preocupação central é a Amazônia. Com sua vastidão verde, suas promessas de fartura genética e sua generosa oferta de água doce, a Amazônia é considerada pelos militares um dos grandes "pontos de cobiça" do mundo. Na pesquisa da CNT/Sensus em conjunto com VEJA, 82,6% dos militares disseram que a Amazônia corre o risco de sofrer uma ocupação estrangeira. O que chama mais atenção é a revelação de que a esmagadora maioria dos civis compartilha a mesma opinião com os militares (veja o quadro abaixo) – embora não haja um único sinal concreto de que uma invasão seja iminente ou esteja sendo planejada. "Não podemos nos descuidar das fronteiras, do nosso parque industrial, da nossa capital e da Amazônia", resume o cientista político Geraldo Cavagnari, membro do núcleo de estudos estratégicos da Universidade Estadual de Campinas.
No caso da Amazônia, as Forças Armadas brasileiras não temem os países vizinhos. Temem as potências estrangeiras (além dos cientistas e dos missionários). Acham que os estrangeiros podem estar interessados nas riquezas ainda desconhecidas da floresta. Com os vizinhos com os quais compartilha a Amazônia, como Colômbia, Venezuela e Peru, o Brasil tem feito exercícios conjuntos, destinados a coibir o contrabando e o narcotráfico nas fronteiras. Exército e Aeronáutica, as forças que mais se dedicam à região, também têm promovido ações sociais em áreas carentes, como oferta de tratamento médico e odontológico, para suprir a ausência do estado. "É preciso evitar que guerrilheiros das Farc colombianas ou paramilitares venezuelanos entrem no Brasil e usem a Amazônia como refúgio", diz o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, professor aposentado da Unicamp e diretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina. Ele completa: "Hoje, as ameaças assumiram novas formas: narcotráfico, crime organizado, tráfico de pessoas e poder da delinqüência sobre populações sem proteção do estado".
Apesar da preocupação com a floresta, os militares até hoje não conseguiram ocupá-la de forma minimamente razoável. Menos de 10% das unidades militares estão na região. Do efetivo de 190 000 homens do Exército, menos de 15% trabalham na região – só cerca de 25 000 homens. Nos estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Espírito Santo, que não fazem fronteira com nenhum país nem estão sob a ameaça de ocupação estrangeira, há quase o dobro de militares – 49 000. Nos últimos vinte anos, o Exército transferiu dois grandes batalhões para o norte do país. O batalhão de Petrópolis, no Rio, foi para Boa Vista, a capital de Roraima. Outro batalhão, antes localizado em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, deslocou-se para Tefé, no Amazonas. Um terceiro, o de Niterói, também no Rio, está sendo enviado a São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, mas o deslocamento integral não aconteceu até hoje. A última promessa é concluí-lo até o fim do ano. Não é necessária muita imaginação para saber por que alguns militares resistem em deixar o aprazível litoral do Rio para se embrenhar na mata de São Gabriel da Cachoeira.
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