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O novo coronelismo

Gaudêncio Torquato

Fonte: Estadão

No Brasil, o passado é sempre revisitado. E com direito a reviver seus hábitos, mesmo os pérfidos. É o caso do coronelismo do ciclo agrícola, que castigava o livre exercício dos direitos políticos. Os velhos coronéis da Primeira República (1889-1930) consideravam os eleitores como súditos, não como cidadãos. Criavam feudos dentro do Estado. A autoridade constituída esbarrava na porteira das fazendas. Agora, neste país urbano, o governo precisa pedir licença para subir o morro. O império coronelista do princípio do século passado finca raízes no roçado do Rio de Janeiro. A denúncia é grave: 171 comunidades de dez cidades do segundo maior colégio eleitoral do País são dominadas por milícias - quadrilhas comandadas por policiais -, que, neste início de campanha, ameaçam pessoas se não elegerem seus candidatos. Estamos diante de um novo coronelismo? O voto de cabresto, prática fraudulenta dos tempos da oligarquia rural, transfere-se, neste momento, para o domínio de comandantes de milícias, personagens da urbe violenta que se valem da insegurança para implantar o medo. Os currais eleitorais são comunidades miseráveis, comprimidas em morros, favelas e bairros degradados, onde o poder bandido monta formidável aparato.

A mudança da identidade nacional pouco tem contribuído para a alteração do mapa político. Nos últimos 60 anos, a população urbana cresceu, no País, de 31% para 82%, agigantando cidades, expandindo demandas, mas propiciando a continuação de vícios, dentre eles o voto por encomenda. É verdade que mudanças sociais e políticas, a partir das décadas de 30-40, contribuíram para melhorar a participação do povo no processo eleitoral. Mas não se pode negar a imensa distância, hoje muito perceptível, entre a fortaleza econômica e a nossa frágil estrutura política. O biólogo francês Louis Couty dizia, em 1881, que "o Brasil não tem povo". Seu argumento era que, dos 12 milhões de habitantes da época, poucos eram os eleitores capazes de impor ao governo uma direção definida.

Uma razão para explicar nossa incultura política é a equação que soma componentes como pobreza educacional das massas, perversa disparidade de renda entre classes, sistema político resistente às mudanças, sistema de governo ortodoxo (hiperpresidencialismo de cunho imperial) e patrocínio de mazelas históricas, entre as quais reinam, absolutas, o patrimonialismo e o assistencialismo. Sob essa teia esburacada, a concentração de forças permanece sob a égide do Estado todo-poderoso, bem visível na função de cobrador de impostos, eixo repressor (policialesco), distribuidor de favores e com poder de definir os destinos da sociedade. O corolário deste modelo se expressa no conceito de "estadania" em contraposição à "cidadania", conforme explica José Murilo de Carvalho, ao demonstrar uma cultura orientada mais para o Estado do que para a representação política.

O brasileiro continua a ser um "cidadão menor" e nessa condição participará do processo em curso. Sob esta perspectiva, podemos compreender as causas para o ressurgimento de novos coronéis da política, como os quadrilheiros urbanos, e outras formas de opressão que limitam a liberdade do cidadão em pleno século 21. Para início de conversa, esse "cidadão precário" integra o maior contingente nacional, sendo a grande maioria dos 130 milhões de eleitores apta a votar em outubro. São os aglomerados que se aboletam nas periferias congestionadas do Sudeste, região que abriga 44% da população, e os bolsões carentes do Nordeste, onde vivem 28,5% dos brasileiros. A vassalagem de ontem muda de patrão, mas não de atitude. O drible moral continua a dar as cartas. Ontem, o coronel rural entregava o voto fechado no envelope para o súdito depositar na urna, sem lhe dar o direito de saber em quem estava votando: "O voto é secreto, imbecil." Hoje, o coronel miliciano e o chefe da gangue prometem conferir votos dados a seus candidatos. Se os votos forem menos, alguém pagará.

O eleitor inculto tende a votar no candidato mais conhecido ou que lhe é simpático. Até essa condição lhe é negada. Ademais, com a pasteurização partidária, as doutrinas ficam no baú. Alianças entre partidos pouco entusiasmam. Restrições feitas pela Justiça Eleitoral - algumas de caráter asséptico, como o controle da propaganda de rua - encolhem as campanhas. Não admira que, neste momento, 79% dos eleitores de Belo Horizonte, 58% dos do Recife e 56% dos de Salvador não saibam em quem votarão. A indecisão retrata a descrença do povo na política. Felizmente, livramo-nos do "coronelismo emotivo": artistas não poderão vender arte para promover candidatos. Resta esperar que a gritaria do programa eleitoral, daqui a duas semanas, seja capaz de atenuar a apatia da população. Pode-se apostar na ressaca a ser imposta por um desfile de caras e bocas recitando glórias.

O presidente Lula, eleito carro-chefe para puxar algumas campanhas, dará um empurrão em Marta Suplicy, em São Paulo, como tática para fragilizar o maior pólo oposicionista, enquanto libera a ministra Dilma Rousseff para ajudar candidatos petistas nas capitais. Na ausência de discurso, o "voto coronelista", induzido, patrocinado, pode encher as urnas de outubro. Nunca é tarde para a velha senhora, a política mandonista, reencontrar o berço esplêndido.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP
e consultor político