Allende
Fábio Luís
publicado no Correio da Cidadania em sentembro de 2003
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Salvador Allende concorre nos pleitos presidenciais a partir de 52 em alianças tentativas das forças de esquerda. Em 58, perde por uma diferença de apenas 3% nos votos. A dificuldade da direita em se agrupar monoliticamente manifesta-se na alternância dos presidentes eleitos, representantes de tendências políticas distintas. Esta divisão reflete uma hesitação histórica de maior amplitude, sintetizada no dilema burguês entre a afirmação de um projeto nacional ou a consolidação do capitalismo dependente. O governo democrata-cristão de Eduardo Frei, eleito em 64, foi o que mais longe chegou nos marcos da primeira alternativa.
Frei tipificou no continente a adesão à política norte-americana de “Aliança para o Progresso”, que, à sombra da revolução cubana, pregava modestas reformas sociais para distensionar a rebeldia popular. Seu lema: “Revolução em liberdade”. A moderação, porém, encontrou um campo reduzido de ação: acabou por descontentar a direita (que posteriormente acusaria Frei como o “Kerenski chileno”) e os setores populares, que elegeriam Salvador Allende no pleito seguinte (1970).
A Unidade Popular (UP) enfrentara uma direita dividida, vencendo com apenas 34% dos votos. Sua principal base de apoio eram os sindicatos, parte dos trabalhadores rurais e da classe média. Seu programa eleitoral, que teve música composta pelo tradicional grupo folclórico Inti-Ilimani, escrevia: “A única alternativa verdadeiramente popular, e, portanto, a tarefa fundamental que o Governo do Povo tem diante de si, é terminar com o domínio dos imperialistas, dos monopólios, da oligarquia latifundiária e iniciar a construção do socialismo no Chile”.
Embora claramente socialista na orientação, a UP praticava uma estratégia institucional e não insurrecional. Sua ousadia e originalidade despertavam as atenções do mundo para o que seria uma via chilena, ou “democrática”, ao socialismo. Para a América Latina e particularmente os brasileiros, o Chile tornou-se o refúgio da comunidade no exílio.
Os eixos do programa da UP eram portanto dois: reforma agrária e expropriação das grandes empresas privadas, com vistas à criação de uma “área mista” da economia tutelada pelo Estado. As nacionalizações não tardaram a acontecer, indenizadas em acordo com a legislação. Feitos os cálculos no caso do cobre, por exemplo, verificou-se que, debitadas as pendências e falcatruas provadas destas transnacionais, o estado chileno não devia um centavo.
A reforma agrária, iniciada por Frei, ganhou dimensão econômica e social estratégica, superando a mera distribuição de terras, embora esta também acontecesse. Segundo se relata, o ministro responsável percorria o país acompanhado pelo exército até as áreas de conflito, onde montava sua tenda diante da fila de trabalhadores rurais que buscavam regularizar seu lote. Qualquer resistência à reforma, estava o Estado para resolver.
Neste contexto, a reação da direita acelerou-se. Conspirando ativamente desde antes da posse, o empresariado e a democracia cristã distanciaram-se do partido e resolveram bater nos quartéis. O imperialismo norte-americano abandonou veleidades democráticas e assumiu seu papel: “Temos que salvar o Chile da loucura dos chilenos”, afirmava Henri Kissinger.
O que seguiu é notório. Dinheiro do governo e das transnacionais norte-americanas financiaram todo tipo de ação social desestabilizadora, com a finalidade de criar o ambiente propício a uma intervenção de força. Greve dos caminhoneiros (que para um país com a geografia chilena é catastrófica), e o conseqüente desabastecimento; atentados, forjados para atribuir a responsabilidade à esquerda; os famigerados “panelaços”; as matérias pagas, e também gratuitas, na grande imprensa; boicote no comércio internacional e no crédito, entre outras sabotagens e retaliações.
Allende sabia que o fiel do seu governo eram as Forças Armadas e, por isso, tinha militares como ministros. Um ensaio de golpe fora contido pela ação do setor legalista. Quando o comandante do exército, general Prats, pediu renúncia em meio à crise em agosto de 1973, Allende confiou ao general Pinochet o comando. Era o terceiro a assumir o cargo – um fora assassinado antes da posse, outro obrigado a renunciar para preservar unidade.
Com Pinochet, elaborou um plano de defesa contra um golpe. Ao general, confidenciou que convocaria naquela terça-feira um plebiscito sobre a sua permanência no cargo, mas não houve tempo. Na manhã de 11 de setembro de 1973, os militares se alçaram. No bombardeio ao palácio presidencial, Allende descobre a alta traição. Com um chapéu de mineiro na cabeça e um fuzil russo na mão, enfrentou o martírio para o qual, dizia, não era vocacionado.
A polícia especial chilena encontraria no porão do Palacio de La Moneda as armas enviadas pelo governo cubano ao povo chileno. Apenas uma foi usada, pelo próprio presidente Allende. As demais seriam aproveitadas pelos órgãos da repressão.
O golpe militar chileno apoiado pelo governo norte-americano em 11 de setembro de 1973 teve um significado profundo. A crueldade da repressão desencadeada, cujos efeitos se fazem ainda muito presentes na sociedade, só é compreensível à luz da transformação econômica que seguiu.
No Chile como no Brasil, o golpe teve um sentido de classe muito claro, viabilizando às custas das armas uma política econômica anti-popular. Mas diferente do Brasil, no Chile a repressão abriu caminho, em um nível imediato, para a primeira experiência do neoliberalismo no continente. Isto aconteceu sobretudo dado a mudanças na conjuntura internacional: a crise do petróleo e as guerras do Oriente Médio marcaram o final de um ciclo de expansão do capitalismo, que propulsionara o Brasil a viver o seu “milagre”.
Em uma perspectiva histórica mais ampla no entanto, o sentido do golpe em ambos países é correspondente, bem como na Argentina pouco depois. Sinalizam a opção das elites por um projeto de país calcado na afirmação do capitalismo dependente. Em outras palavras: defrontadas com o desafio de uma revolução burguesa que lançasse as bases de um projeto nacional autônomo lastreado na integração social interna, as elites latino-americanas acabaram por abdicar da formação da nação. Este caminho envolveria cortar o vínculo de dependência externo (e portanto enfrentar o imperialismo), fazendo aliado principal a própria população, o que implicaria romper um padrão de acúmulo de riqueza assentado na super-exploração do trabalho. Em síntese, constrangidas a optar por uma aliança para fora ou para dentro, a primeira foi mais fácil dadas a herança colonial e o padrão histórico de relação de classe. As ditaduras no continente assinalam o abandono de veleidades democráticas e a assunção de um projeto pelas elites latino-americanas de caráter anti-popular, anti-nacional e anti-democrático: aqui a “revolução burguesa” fez a sub-nação.
A experiência chilena foi onde mais longe se chegou no caminho oposto e por isso deixa lições especiais. É verdade que há um amplo leque de leituras e lições no interior da própria esquerda: os moderados avaliam que Allende provocou muitos inimigos ao mesmo tempo, internos e externos; enquanto os mais radicais criticam o legalismo às últimas conseqüências do presidente, que circunscreveu sua ação em grande parte à luta pelo estado. Joan Garcés, o assessor que Allende mandou fugir do La Moneda para que “alguém escreva essa história” não critica no seu livro o presidente, mas acha que foi um erro não armar a população.
De todo modo, o golpe ilumina a fragilidade das instituições na América Latina e conseqüentemente, de toda iniciativa transformadora nelas principalmente apoiadas. Revela ainda a violência do padrão de luta de classe no continente, deixando claro uma mensagem: quando não se leva a cabo a revolução, a reação é implacável e se faz sentir por décadas.
Salvador Allende deixou também um exemplo de caráter, ao levar às últimas conseqüências seu compromisso com o socialismo, legando ao povo chileno a maior riqueza que um homem público pode deixar: a sua dignidade.
Fábio Luís é jornalista.
Allende, o Último Discurso
por Léo Lince
O último discurso de Salvador Allende é um documento político magnífico. A transmissão realizada pela Rádio Magallanes - às nove horas e dez minutos da manhãã do fatídico dia 11 de setembro de 1973 - foi o registro de um ato de grandeza. O pano de fundo da gravação era o ruído da força: os estampidos do bombardeio golpista, a correria e os gritos na trincheira de resistência no Palácio de La Moneda. A voz de Allende, no entanto, era serena e firme, quase atemporal. Ele tinha, no foco da tragédia, a consciência nítida de que falava para a posteridade.
Há um nexo pleno de significados entre a fala solene do presidente assassinado e um outro documento, igualmente trágico, que ocupa lugar de destaque na política brasileira: a carta testamento de Getúlio Vargas. El nombre del hombre muerto pode ser outro, mas ambos sabiam que estavam saindo da vida para entrar na história. Os processos podem ser distintos, mas os inimigos listados nos dois casos são os mesmos: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação interna para, pela via do golpe de força, recapturar o poder de seguir reproduzindo seus privilégios. São as "aves de rapina" que sempre sugaram "as veias abertas da América Latina".
É curioso notar que o clima de extrema tensão em que foi pronunciado não contagia a forma nem crispa o conteúdo do discurso. Há uma enorme ternura nas palavras dirigidas aos setores populares que davam sustentação ao governo da Unidade Popular. Quanto aos golpistas, os "generais rasteiros", Allende lança o repto superior da condenação moral. No ponto alto do discurso estão palavras que valem ser citadas em negrito: "Não vou renunciar! Colocado nesta encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que foi plantada na consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão nos avassalar, porém não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos". Uma rara e preciosa súmula de coragem, dignidade e fé na vida.
A lucidez de quem sabia estar fazendo o último discurso assume tons de Neruda na conclamação final: "seguramente, a Rádio Magallanes será calada e o metal tranqüilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. (...) Sigam sabendo vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor". No dia seguinte ao assassinato de Salvador Allende, corria o mundo os versos fortes do grande poeta andaluz, Rafael Alberti: "Ontem, no Chile, morreu um homem/ Hoje mesmo, milhares de outros já se levantam/ A morte não acaba nada!" Verdade. Passados 30 anos, o carrasco que comandou os esquadrões da morte é escorraçado por onde passa, enquanto a voz do presidente martirizado ecoa cada vez mais forte. Nunca esqueceremos, companheiro Allende, o seu último discurso.
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1 Comentários
E com todo respeito ao autor da matéria e ao do blog, devo dizer que discordo da opinião de que houve uma opção das elites por um capitalismo dependente.
Primeiro porque um movimento como o que houve no Chile não daria certo sem apoio popular. Se as elites comandavam, o que é fato, é fato também que havia apoio popular e tanto foi que o regime se manteve sem maiores oposições por mais de 20 anos. E basicamente porque Allende fazia um péssimo governo, perdido que estava na tentativa de criar um regime socialista utópico e ao mesmo tempo ter que administrar um país eminentemente capitalista.
Em segundo lugar, porque o Chile, durante os anos Pinochet, errou muito menos em matéria econômica que Brasil e Argentina. Aliás, nas últimas 4 décadas é o país economicamente mais estável da região justamente porque sua economia foi tocada com bom senso e fugindo ao populismo que marcou os regimes militares de seus vizinhos.
Pinochet foi ditador e assassino, mas foi bom governante do ponto de vista econômico. Basta lembrar que para seu regime acabar, não houve insurreição popular e nem a pressão por mudanças ante sérios problemas econômicos, situação ocorrida no Brasil e na Argentina.
Pelo contrário! A redemocratização deu-se por um plebiscito onde o ditador obteve algo em torno de 30% de apoio, sem contar que na primeira eleição que seguiu-se, seu candidato perdeu o pleito por menos de 10% de diferença.
Isso para mim é fruto da memória do caos dos tempos de Allende, que muitos chilenos não queriam repetir.
Logo, Allende caiu pela má-fé de Pinochet, por conspiração das elites, mas também por colossais erros próprios, o mais visível, acreditar num socialismo utópico e burro.