Forças Armadas, a tortura e a Lei de Anistia
Wadih Damous
PRESIDENTE DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL DO RIO DE JANEIRO
Fonte: JB
Em 1979, era aprovada a Lei de Anistia. Perdoavam-se os crimes políticos para reconciliar o povo brasileiro. A lei de anistia nunca significou esquecimento, nem serviu para apagar de nossa história a tortura dos que contestavam o regime militar. Continua sendo direito dos cidadãos saber o que se passou nos porões na ditadura, naquelas páginas obscuras onde precisamos lançar luz para, finalmente, virá-las.
Há aqui um problema de interpretação do direito. Procura-se inserir no âmbito de proteção da Lei de Anistia práticas que a norma não comporta. Trata-se de um caso típico de "sobre-inclusão normativa". Não existe, nem existiu em qualquer legislação ou tratado internacional a tipificação da tortura como crime político. Pelo contrário, o direito internacional caracteriza a tortura como crime contra a humanidade, e como crime imprescritível, passível de julgamento mesmo se praticado no passado remoto.
O estado democrático de direito não pode se fundar na ocultação e no esquecimento da barbárie. Uma democracia não pode ter como ato inaugural o perdão de quem se dedicou a extirpar de seres humanos o seu impulso vital, de quem violou o núcleo mais básico da dignidade da pessoa humana.
Embora a investigação das torturas possa ser ainda dolorosa - ou incriminadora, dependendo de quem ocupava qual posição na época - só o conhecimento do que efetivamente ocorreu será capaz de promover a verdadeira reconciliação nacional, que não pode senão se fundar na verdade.
Até agora, passados 29 anos da anistia, não houve nenhum procedimento judicial em que o Poder Judiciário tenha apreciado a questão. Se estamos amadurecidos como país, isso implica assumir nosso passado. Sem desejo de revanchismo, apenas de justiça. Temos direito à memória e à verdade. Apenas o conhecimento dos fatos será capaz de dirimir as dúvidas e pôr um ponto final nas controvérsias.
Muitos dirão que o problema não é de interpretação do direito, mas de conveniência política. Se for esse o caso, razões ainda mais contundentes sugerem a investigação dos crimes de tortura e o julgamento dos agentes públicos envolvidos. O país não deve mais conviver com fantasmas e feridas que não cicatrizarão até que a justiça seja aplicada por completo.
As Forças Armadas brasileiras estão diante de grandes desafios. A sociedade espera delas que se capacitem para controlar e preservar a totalidade do território nacional e para dissuadir as ameaças à posse do nosso patrimônio natural. A recente descoberta de enormes reservas de petróleo no mar territorial brasileiro torna essas preocupações ainda mais graves e prementes.
Para dar conta desse desafio, ao lado dos significativos investimentos na modernização das Forças Armadas, é necessário trazer à luz os crimes contra a humanidade praticados no regime militar e purgar de nossa história o maior de seus erros. É preciso que arquivos sejam abertos e documentos apareçam.
Os honrados comandantes, oficiais e praças que compõem as Forças Armadas brasileiras não têm porque carregar o fardo da cumplicidade com facínoras que impuseram dor e sofrimento a pessoas mantidas sob sua custódia, às suas famílias e a toda a sociedade. Não é justo com os que sofreram, nem necessário para preservar a imagem das instituições militares.
O pleno resgate da confiança do povo brasileiro em suas Forças Armadas depende de um ato definitivo de distanciamento de práticas que a desonraram, como o uso do choque elétrico e do pau-de-arara, da realização de prisões sem inquérito ou processo, da simulação de suicídios. O temor não deve mais encontrar guarida em nossas instituições, ou será sempre um vergão na consciência nacional.
A investigação dos crimes de tortura praticados durante aquele período da história nacional é elemento indispensável para o resgate das melhores tradições republicanas das Forças Armadas brasileiras; é condição essencial para a urgente reestruturação do aparato bélico necessário à garantia da autodeterminação de nosso país.
0 Comentários