Embaixador Charles Elbrick
ficou 4 dias em cativeiro

Seqüestro de diplomata americano, um dos atos mais ousados da guerrilha no período da Ditadura

Fonte: UNIFICADO


Um dos atos mais marcantes do período militar completa 34 anos. Em 4 de setembro de 1969, cinco dias após uma Junta Militar assumir o poder no lugar de Costa e Silva - que havia deixado a presidência por problemas de saúde - o embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, era sequestrado por militantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Eles exigiam a libertação de 15 presos políticos, em troca da libertação do embaixador. A Junta Militar acabou cedendo e permitiu que os prisioneiros fossem levados de avião para o México. Charles Elbrick acabaria libertado quatro dias depois, em 7 de setembro.

Saiba mais sobre a reação
civil à Ditadura Militar

No Brasil, a reação civil ao golpe militar de 64 desencadeou uma luta armada que faria muitas vítimas até o início de abertura política, em 1977. Muitos oposicionistas decidiram-se pela guerra de guerrilha, inspirados na revolução cubana. Um dos líderes mais célebres da luta armada nos anos 60 foi o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária, morto por soldados no interior da Bahia, em 1971.

Um ano especialmente conturbado foi o de 1968. Ações terroristas sacudiram o país. Grupos de extrema-direita atacaram artistas, lançaram bombas contra entidades civis e intimidaram personalidades de perfil humanista, como o arcebispo Dom Hélder Câmara, que teve sua casa metralhada em Recife, em outubro de 68.

Agentes dos órgãos de segurança e dos serviços de informação das Forças Armadas agiam à margem da lei com prisões arbitrárias, torturas e o assassinato de opositores do regime militar. Em contrapartida, os grupos clandestinos de esquerda financiavam suas atividades com dinheiro obtido em assaltos a banco e furtos de automóveis. E praticavam seqüestros de diplomatas para negociar sua libertação em troca de armas e da soltura de presos políticos.

Além do seqüestro do embaixador americano, no início da década de 70 seriam seqüestrados também o cônsul do Japão em São Paulo, Nobuo Okuchi, e os embaixadores da Alemanha, Ehrenfried von Holleben, e da Suíça, Giovanni Bücher.

Processos semelhantes ao brasileiro aconteceram em toda a América Latina. No Chile, em 73, um golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet depôs o presidente eleito Salvador Allende, inaugurando uma sangrenta ditadura militar. Na Argentina, os militares implantaram a ditadura em 76, dando início a uma "guerra suja" contra os oposicionistas, com um saldo de 30 mil desaparecidos em sete anos.

Fonte: TV Cultura

Seqüestro do embaixador
10 de setembro de 1969

Fonte: Veja

O que dizia a reportagem de VEJA


Para os diplomatas, habituados às boas maneiras e às gentilezas dos salões, a violência física é a forma menos indicada de se resolver um problema. Para os terroristas, acostumados à subversão da ordem e à vida clandestina, a violência física é uma das formas mais indicadas de se resolver um problema. Na semana passada, um diplomata e alguns terroristas encontraram-se numa das ruas de Botafogo, no Rio, e iniciaram uma convivência forçada de quatro dias que seria encarada como um acontecimento extraordinário por todo o mundo. Num Cadillac preto, vinha Charles Burke Elbrick, cabelos penteados no velho estilo Carlos Gardel, embaixador dos Estados Unidos da América no Brasil. Os acontecimentos seguintes foram vertiginosos. O Cadillac de Burke entrou na Rua Marques. Um Volks vermelho fechou-o violentamente. Um personagem na calçada apontou um revólver. O carro vermelho e o Cadillac partiram quase instantaneamente. No carro vermelho, a polícia encontrou uma bomba de pavio curto e um longo manifesto. O governo deveria dar o sinal de que aceitava a troca do governador por presos políticos, divulgando o manifesto. Passava-se a esperar o nome dos quinze revolucionários a serem libertados. No domingo, o avião com os prisioneiros chegou ao México. E, no Brasil, apenas restava esperar a libertação do Embaixador.


O que aconteceu depois


Como a localização do cativeiro do embaixador foi descoberta pelas forças de segurança, o grupo de seqüestradores decidiu usar a confusão da saída de um jogo entre Fluminense e Cruzeiro no Maracanã, no domingo, para libertar o americano. Deu certo: a viatura que acompanhava o grupo ficou para trás e perdeu os seqüestradores nas imediações do estádio. Colocado num Volks, Charles Burke Elbrick foi levado à rua Eduardo Ramos, perto do Largo da Segunda-Feira, Tijuca, e deixado ali. Cumpriu a ordem de ficar quinze minutos ali sem pedir ajuda e, então, tomou um táxi e voltou para casa a salvo. Considerado a mais marcante e ousada ação da esquerda no combate à ditadura, o seqüestro do embaixador americano serviria de modelo para outros três raptos de diplomatas, entre 1969 e dezembro de 1970. Foi um raríssimo sucesso espetacular e instantâneo da esquerda armada, que entrou para a História com um passivo de derrotas colossais e definitivas..

Apesar de ter sido vista como um enorme êxito - um raríssimo sucesso da esquerda armada, a primeira derrota da ditadura -, pela libertação dos quinze presos políticos e pela divulgação do manifesto contra os militares na imprensa, a operação teve conseqüências negativas para parte do movimento revolucionário. Com erros graves em seu planejamento e execução, o seqüestro propiciou a perseguição e captura de vários integrantes do grupo que raptou o americano, além de revelar a identidade e o paradeiro de muitos companheiros dos seqüestradores. O líder do seqüestro, Virgílio Gomes da Silva, o comandante Jonas, foi preso em 29 de setembro de 1969, na avenida Duque de Caxias, em São Paulo, por agentes da Operação Bandeirantes, a Oban. Seu irmão, Francisco Gomes da Silva, o Chiquinho, já estava preso desde o dia anterior. No próprio dia 29, depois de doze horas de torturas, Jonas foi morto, pendurado no pau de arara, segundo conta Chiquinho. "Ouvi comentários segundo os quais os torturadores haviam retirados os olhos e os testículos do meu irmão", disse ele. O corpo não foi encontrado, e o nome de Virgílio Gomes da Silva está na relação dos prisioneiros políticos desaparecidos no Brasil.

Sob tortura dos militares que caçavam os seqüestradores, Chiquinho entregou o endereço de uma casa em São Sebastião pensando que o local estaria vazio - mas lá estavam a mulher e os filhos de Virgílio e Manuel Cyrillo, que também participou do seqüestro. Em 1º de outubro, mais um membro do grupo, Paulo de Tarso Venceslau, foi à casa de São Sebatião. Cyrillo e Venceslau foram presos e torturados - o primeiro ficou dez anos atrás das grades; o segundo só saiu da cadeia no fim de 1974. O mesmo destino tiveram vários outros militantes ligados de forma direta ou indireta à ação. Poucos escaparam - um deles, Franklin Martins, conseguiu ir para Cuba antes de ser capturado pela repressão. A série de prisões, torturas e mortes nos porões da ditadura representou um duríssimo golpe nos movimentos envolvidos, a ALN e o MR-8, num processo que culminou na morte do líder Marighella, ainda em 1969.

O embaixador Charles Burke Elbrick voltou para os Estados Unidos e morreu em 1983, época em que já se conduzia a abertura política no Brasil. O episódio do seqüestro foi tema de um livro de sucesso do jornalista Fernando Gabeira, um dos participantes da operação. Na década de 90, já com status de best-seller, o livro foi levado às telas de cinema. No início das filmagens, Gabeira se encontrou com Valery Elbrick, filha do embaixador e escalada para uma ponta no filme. "Estava curiosa para vê-lo. Papai achava que ele não viveria muito tempo", confessou Valery. Lançado em 1997, com orçamento de 4,5 milhões de reais, elenco da Globo e e o americano Alan Arkin num papel destacado, O Que é Isso Companheiro? teve grande sucesso de bilheteria e foi até indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro (não levou a estatueta). A produção, contudo, foi bastante criticada pelos sobreviventes da ação e suas famílias - na avaliação deles, o roteiro retrata os seqüestradores de forma negativa e poupa os militares e torturadores, além de contar com graves imprecisões históricas. O diretor Bruno Barreto se defendeu dizendo que a fita é uma ficção baseada em fatos reais, e que vários personagens foram alterados na trama. Não adiantou: a família de Virgílio Gomes da Silva processou o produtor Luiz Carlos Barreto pelo retrato do comandante Jonas, que aparece no filme como um primitivo e desumano guerrilheiro.

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Hércules 56 era o prefixo da aeronave da FAB que os levou ao exílio. O medo de serem atirados do avião, a primeira tequila da liberdade na chegada ao México, a posterior recepção como heróis em Cuba e a pronta volta à clandestinidade são lembranças que emergem de pessoas – quase todas – hoje mais ponderadas e reflexivas. Da parte dos organizadores do rapto de Elbrick, entre eles o jornalista Franklin Martins e o historiador Daniel Aarão Reis, vêm memórias igualmente reveladoras dos impasses humanos e das emoções contraditórias que eles experimentaram naqueles quatro dias de setembro.

Rapto e chantagem

O Brasil viveu na semana passada um fato único em sua história. Com o rapto de Charles Burke Elbrick, embaixador americano, o governo foi obrigado a libertar quinze presos políticos, condição de resgate imposta pelos seqüestradores

Fonte: Veja

Para os diplomatas, habituados às boas maneiras e às gentilezas dos salões, a violência física é a forma menos indicada de se resolver um problema. Para os terroristas, acostumados à subversão da ordem e à vida clandestina, a violência física é uma das formas mais indicadas de se resolver um problema. Na semana passada, um diplomata e alguns terroristas encontraram-se numa das ruas do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, e iniciaram uma convivência forçada de quatro dias que seria encarada como um acontecimento extraordinário por todo o mundo. Como nos bons filmes de suspense, a história começa com uma senhora de meia-idade olhando a rua pela janela de sua casa. Dona Elba Souto Maior é casada com um militar e é irmã do Secretário de Segurança do Território de Roraima. E talvez por isso alguns movimentos na calçada à sua frente lhe parecem extremamente suspeitos.

Quinta-feira, 4 de setembro, 9h - Dona Elba vê dois homens parados na Rua Marques, na calçada do outro lado de sua casa. Eles lhe parecem estranhos, nervosos. Ela os nota e depois os esquece por algum tempo. Uma hora depois volta à janela e vê chegar dois Volkswagens, um vermelho, outro azul. E mais homens estranhos. Quatro. Carregavam pastas pretas. Ela pensou que fossem assaltantes de bancos. Anotou a chapa dos carros. Mas não havia bancos por perto. Ela esquece de novo os estranhos.

12h45 - Os homens ainda estão lá, impacientes. As mesmas pastas pretas. Ela chama a polícia, identifica os Volks. O policial de plantão diz que não há nada anormal. Muita gente tem mania de assalto ultimamente. Dona Elba vai a Ipanema. Tranqüila.

13h - Dona Elba está de volta. As mesmas figuras. Desta vez, gesticulando, como personagens de um drama mudo. Dona Elba fica grudada à janela. Na sua imaginação os conspiradores silenciosos eram sete, um número da cabala. Até hoje, este número não foi confirmado. Uma coisa é certa: pelo próprio relato de Dona Elba, a ação que houve logo em seguida exigiu no mínimo cinco pessoas.

O SENHOR EMBAIXADOR - Em direção ao lugar onde Dona Elba assistia fascinada a estes acontecimentos, num Cadillac preto, dirigido por Custódio Abel da Silva, 41 anos, vinha Charles Burke Elbrick, cabelos penteados no velho estilo Carlos Gardel, embaixador dos Estados Unidos da América no Brasil. O Cadillac repete um trajeto que o Embaixador faz quase diariamente desde que chegou ao Rio, 56 dias atrás. Burke acabara de almoçar em sua residência e se dirigia para a Embaixada, no centro da cidade. Normalmente deveria estar a seu lado, no banco traseiro, Jofre Evangelista, seu guarda-costas. Mas Jofre chegou atrasado à saída do Embaixador. E Burke não é um homem muito preocupado com sua segurança. O perigo não é um fato incomum na sua vida. Quase exatamente há trinta anos (1º de setembro de 1939), acordou em Varsóvia com o barulho das bombas da Luftwaffe alemã, que invadia a Polônia. Tinha então 31 anos, a coragem dos jovens, e foi o primeiro a chegar ao prédio da Embaixada, sob bombardeio. Estava no começo de sua carreira diplomática, o que o levaria pelas capitais do Panamá, Haiti, Checoslováquia, Inglaterra, França, Portugal e Iugoslávia. Há duas semanas, quando o governo brasileiro lhe ofereceu o mesmo esquema de segurança usado por seu antecessor John Tuthill (três guarda-costas em vigilância permanente), ele recusou no seu português com sotaque lisboeta: "Estou há pouco tempo no Brasil, não sou muito conhecido".

14h45 - Mr. Burke era particularmente conhecido dos sete (ou cinco?) homens que obcecavam Dona Elba. Exatamente às 14h45, o que estava parado na esquina do quarteirão teve um ataque de excitação e passou a agitar o braço esquerdo. Outro entrou no Volks vermelho e deu a partida. Os acontecimentos seguintes foram vertiginosos. O Cadillac de Burke entrou na Rua Marques. O carro vermelho fechou-o violentamente. O personagem na calçada, debaixo da janela de Dona Elba, apontou um revólver para Abel. Abel passou para a outra ponta do banco e um homem armado ocupou o seu lugar. Dois outros abriram as portas traseiras e ladearam o Embaixador. O carro vermelho, o Cadillac e o carro azul partiram quase instantaneamente. Dona Elba grita. Um revólver é apontado para ela, que corre para chamar o marido. Quando voltam, os personagens do drama haviam deixado o palco do primeiro ato.

O HOMEM E A MÁQUINA - Abel e o Cadillac preto formavam uma dupla aparentemente invencível. A máquina tinha vidros a prova de bala, ar condicionado, intercomunicadores com a Embaixada, sistemas elétricos para fechamento automático de portas e vidros e alarmas diversos. Abel era considerado o melhor motorista da Embaixada, onde trabalhava há cinco anos, sempre como homem de confiança. Fizera "cursinhos" para saber manobrar aquela intrincada maquinaria. Mas na hora decisiva nada deu certo. Teve dificuldades depois para explicar a seus patrões, à polícia e, finalmente, ao Serviço Secreto do Exército as razões do fracasso. Aos jornalistas disse: "Eram três rapazes, dois vestiam camisa amarela. O que entrou a meu lado, a primeira coisa que fez foi arrancar os fios. Só paramos na Rua Caio Melo Franco" (uma ladeira deserta, sem saída, orlada por casas de muros altos, a cerca de 2 quilômetros da casa de Dona Elba). "Lá, uma Kombi, de motor ligado, esperava a gente. Atrás vinha o Volks azul. Vi que o Embaixador não queria sair do carro para a Kombi. Foi carregado." (Burke teria sido cloroformizado pelos seqüestradores.) Nessa altura, sua conversa com os repórteres foi interrompida com a chegada de policiais do DOPS, que o mantiveram incomunicável até o domingo. O resto da história, que Abel não contou, foi composto pelos policiais e pela empregada de uma casa de onde Abel telefonou à Embaixada para comunicar o seqüestro. A polícia encontrou rapidamente os dois Volkswagens usados no seqüestro, que não durou mais de quinze minutos. A Kombi desapareceu com o Embaixador e alguns ou todos os seus seqüestradores. No carro vermelho, parado a 500 metros da Rua Caio Melo, a polícia encontrou uma bomba de pavio curto (um abre-caminho para fuga precipitada?) e um longo manifesto de 874 palavras.

A GRANDE CHANTAGEM - "A vida e a morte do Senhor Embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela atender a duas exigências, o Senhor Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária." Bem escrito, numa linguagem seca, dura, o manifesto, assinado por grupos terroristas que se intitulavam Ação Libertadora Nacional (ALN) e Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), apresentava uma chantagem ao governo. Em troca da vida de Burke eles exigiam "a) a libertação de quinze presos políticos... b) a publicação e leitura desta mensagem, na íntegra, nos principais jornais, rádios e televisões de todo o país". Queriam que os quinze prisioneiros políticos fossem levados de avião até um desses três países - Argélia, Chile e México. Faziam provocações: "Exigimos apenas a libertação desses quinze homens, líderes da luta contra a ditadura. Cada um deles vale cem embaixadores do ponto de vista do povo. Mas o Embaixador dos Estados Unidos vale muito também do ponto de vista da ditadura e da exploração." As pesadas condições dos terroristas estavam lançadas. Mas que outra alternativa teria o governo para não engolir essa taça de amargura, se disto dependia a vida do Embaixador? O governo deveria dar o sinal de que aceitava a troca, divulgando o manifesto dentro de 48 horas. Os terroristas diziam: "Se a resposta for positiva, divulgaremos a lista dos quinze líderes revolucionários e esperaremos 24 horas por sua colocação num país seguro. Se a resposta for negativa, ou se não houver nenhuma resposta nesse prazo, o Senhor Burke Elbrick será justiçado".

UM CASO ÚNICO - Mrs. Elvira, a mulher do Embaixador, e o Presidente dos Estados Unidos foram dos primeiros a saber do rapto (pelas leis penais brasileiras, foi seqüestro e não rapto, que é "a tirada do lar por meio de sedução, emboscada ou violência, da mulher honesta, para fins libidinosos"). Nixon - que estava de férias em Cotton's Point, seu retiro de férias na Califórnia - foi avisado por um telefonema de Henry Kissinger, seu assessor especial para assuntos de segurança, avisado, por sua vez, pela Embaixada americana no Rio de Janeiro. Logo depois Nixon conferenciaria com seu Secretário de Estado William Rogers: disse estar preocupado e "acompanhando o caso com a maior atenção". Em Botafogo, na casa do Embaixador, Mrs. Elvira, defendida por uma guarda de doze policiais armados de metralhadoras e assistida por seu médico particular, não recebia visitas. Pony, o cão de estimação de Burke, gania alto.

A preocupação com a vida do Embaixador tinha motivos históricos. Em agosto do ano passado, também num Cadillac preto, o Embaixador dos Estados Unidos na Guatemala foi fechado na Avenida de la Reforma, Ciudad Guatemala, por dois carros. Em muitos aspectos o caso serviu de modelo. Mas o episódio guatemalteco diverge do brasileiro num ponto fundamental. John Gordon Mein, o Embaixador, tentou reagir e foi assassinado a tiros. Burke ainda podia ser salvo. Na mesma tarde do seqüestro, depois de diversas reuniões entre os Ministros militares, o corpo diplomático e os órgãos de segurança, o governo aceitou o ultimato. E apresentava suas razões numa nota lida pelo Ministro do Exterior Magalhães Pinto: "Convencido de interpretar com a fidelidade os sentimentos profundos e autênticos do povo brasileiro, o governo decidiu fazer o que está a seu alcance para evitar que se sacrifique mais uma vida humana, sobretudo quando se trata de um representante diplomático ao qual o Estado brasileiro, tradicionalmente hospitaleiro, deve proteção especial". Nos últimos minutos do dia, uma cadeia de rádio e televisão divulgava o manifesto. Na manhã do dia seguinte, os jornais fariam o mesmo. E passavam a esperar o nome dos quinze revolucionários a serem libertados. Quem seriam os escolhidos? A Aliança Libertadora Nacional era identificada pela polícia como o grupo Marighella. O Movimento Revolucionário 8 de Outubro recentemente teria sido desbaratado pela polícia, que chegou a anunciar cerca de vinte prisões. Acreditava-se que os seqüestradores escolheriam elementos de seus grupos.

A CAÇA - Numa tentativa de resolver o problema sem negociações, a polícia se mobilizou. No fim da tarde de quinta-feira, em Washington, fontes extra-oficiais diziam que um avião especial partira para o Rio com cerca de quinze agentes do FBI (Federal Bureau of Investigations) e da CIA (Central Intelligence Agency). A chegada de pelo menos três agentes do FBI foi confirmada por secretárias da Embaixada no Rio, na manhã do dia seguinte. No Rio e nos Estados vizinhos 4.200 agentes policiais, em 120 veículos, começaram a caçada, logo após às 15h30. Os vários serviços de informações e segurança interna do país, bloquearam estradas, isolaram ruas, vasculharam conhecidas células e centros de reunião de subversivos. Particularmente no Rio, iniciaram seus vigorosos movimentos os cinqüenta superpoliciais do Grupo Especial de Operações, homens para as tarefas mais difíceis, conhecidos como "intocáveis". (Na saída para a baixada fluminense um carro funerário não escapou à rigorosa vigilância. Até o defunto foi revistado.) Na manhã da sexta-feira, depois de uma reunião de três horas, o Alto Comando do Exército (os comandantes dos quatro Exércitos e chefes dos principais departamentos) anunciava uma contra-ofensiva permanente: "Um plano nacional de vigilância e repressão constante a ser posto em prática a curto prazo e coordenado diretamente pelos altos escalões das Forças Armadas". Como os terroristas já vinham sendo combatidos com vigor, este plano levaria a repressão interna a níveis desconhecidos.

O DIÁLOGO - Enquanto o Exército divulgava seu plano, estabelecia-se entre o governo e os terroristas um curioso diálogo. Às 11h05 o "Jornal do Brasil" foi avisado de que uma mensagem do Embaixador havia sido colocada numa das nove caixas de coleta de esmolas da igreja do Largo do Machado (Guanabara). A beata, dona da chave da caixa, só chegaria à 1 da tarde e o repórter teve que usar vários ardis para finalmente conseguir a carta. Numa letra nervosa, reconhecida pelos grafólogos da Polícia Federal, Burke avisava estar bem e recomendava às autoridades brasileiras: "Não devem tentar me localizar, o que poderia ser perigoso, mas se apressarem a satisfazer as condições impostas para a minha libertação". Um bilhete lacônico dos terroristas reforçava as recomendações: "Deixem de procurar-nos". E ameaçavam a retaliação na pessoa do Embaixador. O governo ouviu a voz clandestina e desmobilizou a caçada ostensiva. Os terroristas captaram a resposta e retrucaram. Às 15h32 avisavam à Rádio Jornal do Brasil que uma segunda mensagem estaria na caixa de sugestões do supermercado Disco, no Leblon (Guanabara). Desta vez, com a lista dos quinze. Junto, outro bilhete do Embaixador à sua mulher ("espero estar com você muito em breve"). Os terroristas autenticavam suas mensagens, anexando a elas os manuscritos do Embaixador. E sempre as terminavam com a exigência publicitária: "Esta nota deve ser divulgada para o povo".

OS INESPERADOS - A lista dos presos a serem soltos despertou interrogações não só quanto à sua possível composição mas também quanto ao preço a ser pago pelo governo. Por que quinze e não vinte ou todos? Por que não exigir que a Junta Militar renunciasse? O mais razoável era acreditar que os terroristas queriam fazer, na sua concepção, uni negócio possível. "Não exigiriam o que o governo não pudesse, evidentemente, conceder. A escolha dos nomes da lista confirma, de certa forma, essa preocupação de impressionar favoravelmente certos setores e, também, outros grupos subversivos. Escolheram desde elementos do PC tradicional (que se opõe ao terrorismo), como Gregório Bezerra, antigo deputado do Partido, até os guerrilheiros de Caparaó, como Flávio Tavares. No coquetel de tendências políticas, formado pela lista dos quinze, entraram ainda as três alas do movimento estudantil: Wladimir Palmeira, Luís Travassos e José Dirceu, e -até um misterioso "Xuxu", que foi apresentado apenas com esse apelido. Coube ao governo identificá-lo como sendo o universitário Roberto Galhardo Zanconato, mineiro de 24 anos, do grupo terrorista Colina (Comando de Libertação Nacional), ligado a Marighella. E os seqüestradores não esqueceram José Ibrahim, um dos mais jovens líderes sindicais, dirigente da greve de metalúrgicos de Osasco, em 1968.

AVALISTAS - A imprensa mundial fora nomeada pelos terroristas como avalista da chantagem (o Embaixador só seria solto quando as agências noticiosas internacionais anunciassem a chegada dos presos ao México). E ela, desde a quinta-feira, deu ampla divulgação do seqüestro. Nos jornais dos EUA o caso Burke ganhou tanto destaque quanto a morte de Ho Chi Minh. O "New York Times", mais importante jornal dos Estados Unidos, abriu três colunas da primeira página para o seqüestro. E comentou a crise num áspero editorial: "São óbvias as razões por que os guerrilheiros escolheram o Embaixador americano para extorquir concessões dos governantes militares do Brasil. O rapto de Elbrick lhes garantiu publicidade mundial e levou o atual governo do Rio ao máximo de embaraço num momento crítico da vida nacional". Mas, acima de tudo, o caso Burke se transformou num precedente. Para amenizar esse precedente muita gente se reuniu muitas vezes, em muitos lugares diferentes. O jogo internacional começou oficialmente quando William Belton, conselheiro da Embaixada americana, foi ao Itamarati, pela primeira vez, tratar da crise. Era quinta-feira, e, a partir daquela movimentação, Washington, Rio, Cidade do México, Argel e Santiago passaram a receber informações permanentes sobre tudo. O núncio apostólico, Dom Umberto Mozzoni, decano do corpo diplomático, também foi oferecer sua colaboração. Eram 16h e a população brasileira ainda não sabia de nada. Quando Magalhães Pinto levou a notícia para as Laranjeiras, pouco depois, o Embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Mário Gibson Barbosa, já estava no Departamento de Estado. E o governo americano, por seu lado, já tinha avisado Alfred e Valerie Elbrick, filhos do seqüestrado, que estavam em Londres e Belgrado. Horas depois, Alfred conseguiu falar com sua mãe, no Rio, para receber novidades e tranqüilizá-la. Em Argel, o Chanceler Abdul Aziz Bouteflicka já havia recebido um primeiro aviso do Embaixador Hafid Keramane: "Se o Brasil soltar os quinze prisioneiros, eles poderão voar para aí". Gabriel Valdez, Ministro das Relações Exteriores do Chile, estava com um aviso idêntico, enviado pelo Embaixador Hector Corrêa. Enquanto isso, o Serviço de Comunicações Via Satélite, na Cidade do México, captava uma mensagem urgente do conselheiro Armando Cantu, encarregado dos negócios mexicanos no Rio - o Ministro Carrillo Flores também entrava no grande jogo. Antes que se atropelassem, os três governos eram consultados sobre a possibilidade de receberem os presos. Em pouco tempo, a solução argelina foi repetida: o país nunca assinou qualquer convenção internacional sobre o direito de asilo. Quanto a Santiago e Cidade do México, sua concordância foi estimulada pelo Departamento de Estado americano: antes que qualquer decisão fosse tomada nesses dois países, "porta-vozes oficiais" de seus governos afirmavam aceitar os quinze prisioneiros. Mas tudo estacionou porque o governo aguardava o novo sinal dos raptadores. No entanto, Dom Umberto Mozzoni não queria perder tempo. De "clergyman", o Núncio reunira alguns representantes do Corpo Diplomático na sala de jantar de sua residência, no Sumaré (não havia nenhum representante socialista), servira-lhes alguns uísques e apresentara um texto, um apelo aos terroristas, que deveria ser assinado por todos. Ninguém gostou dos termos do documento e o Núncio acabou assumindo sozinho a responsabilidade de sua divulgação. No sábado, todos os jornais publicaram o apelo do Núncio - um documento bem mais simples do que ele apresentara horas antes aos embaixadores. Mais ainda: já se sabia que os quinze escolhidos seriam soltos, e viajariam para o México, talvez naquele mesmo dia. Enfim, as negociações políticas já estavam encerradas. O Itamarati resolvera tudo numa reunião com Armando Cantu - que já havia resolvido tudo numa conversa telefônica com o Chanceler Carrillo Flores. Faltava, porém, que a base jurídica para a viagem dos quinze ficasse decidida. Os presos não podiam obter asilo político porque nenhum deles solicitara coisa alguma. Pela hipótese mais prática, eles seriam enquadrados na fórmula do asilo territorial: quando desembarcassem na capital mexicana, se apresentariam ao Serviço de Imigração pedindo proteção territorial. Eles não precisariam de passaporte, nem de salvo-conduto do governo brasileiro: a única autoridade mexicana a tratar juridicamente da questão, assumindo a responsabilidade direta e funcional, seria o fiscal aduaneiro do aeroporto. Na noite de sábado, os personagens principais da trama diplomática encerravam sua participação nos bastidores do drama. E a história ia chegando a um fim.

FINAL - O lento desenlace começara na madrugada de sábado, quando os repórteres concentrados na sacada do aeroporto do Galeão esquadrinhavam nervosamente com suas teleobjetivas as pistas de decolagem nas proximidades da base militar, a 1.400 metros de distância. Ainda não se sabia qual o avião escolhido para levar até o México os quinze presos políticos. Uma parte das atenções se concentrava no grande Hércules da FAB, estacionado fora do seu hangar. Às 7h, os olhares se desviaram para o aeroporto civil, onde dois aviões desceram, um em seguida ao outro, e se aproximaram até ficar porta contra porta. Eram aeronaves da FAB e logo foram cercadas pela polícia da aeronáutica. Provavelmente houve transbordo de prisioneiros. Sem informações oficiais, os boatos cresciam: da Inglaterra, mais tarde, a BBC informaria que os soldados da aeronáutica seriam oficiais da Marinha que tentaram impedir o embarque dos prisioneiros. Enquanto isso, no aeroporto civil, um carro com chapa oficial circulava insistentemente em torno de dois misteriosos aviões da Força Aérea americana. Pouco depois, os passageiros do automóvel oficial subiram para um dos aviões que levantou vôo não se sabe para onde. Às 12h40 desceu um helicóptero no aeroporto militar. Supunha-se que viera da ilha das Cobras trazendo Marchetti e Flávio Tavares. Mas levantou vôo novamente duas horas depois sem que nenhuma pessoa tivesse descido. Por volta de 13h, pousou um jato da FAB trazendo os presos de São Paulo. Automóveis iam e vinham constantemente, deixando e levando passageiros. Às 4 da tarde o Hércules, que a FAB chama de "Carcará", ainda estava no chão. Quarenta e cinco minutos antes, no entanto, na sala de imprensa do Itamarati, o Chanceler Magalhães Pinto lia com voz pausada a seguinte declaração à Rádio Jornal do Brasil: "Já posso afirmar que o avião da FAB, Hércules 2456, decolou do Galeão com destino ao México. Terá de fazer dois pousos em território brasileiro antes de chegar ao destino". O Ministro fez questão de ouvir pessoalmente a gravação de sua mensagem, transmitida poucos minutos depois, através da RJB, em emissão extraordinária. Nesse mesmo momento, entretanto, já se sabia no próprio Itamarati que o Hércules realmente não havia levantado vôo ainda. E, nos corredores do velho palácio, começaram a circular entre os diplomatas e jornalistas os mais desencontrados boatos sobre novos impedimentos à viagem do "Carcará". Na manhã do mesmo dia, segundo a polícia de São Paulo, as famílias de oito dos presos políticos tinham tido prolongados encontros com autoridades militares, solicitando que a viagem não fosse realizada. Elas temiam que o asilo político concedido no México não fosse suficiente para impedir futuras represálias. Dois presos da Guanabara, por outro lado, declararam que preferiam cumprir a sua pena no Brasil: Ricardo Villasboas de Sá Rego, antigo guitarrista do conjunto musical Momento 4, preso quando distribuía panfletos subversivos, e Maria Augusta Carneiro, presa na mesma ocasião. Enquanto isso, no Recife, revelava-se que Gregório Bezerra já estava a par dos planos para o seqüestro do Embaixador com vários dias de antecedência, e também se negava a seguir viagem. Sua advogada, Mércia Albuquerque, esclareceu que Bezerra esperava ser solto e anistiado ainda esse ano. Com 69, ele cumpria atualmente uma pena de dez anos na Casa de Detenção do Recife. Essas notícias sobre prisioneiros que se recusavam a partir, aliadas a informações sem origem certa de que alguns setores das Forças Armadas não se conformavam com a decisão do governo, formaram o núcleo dos boatos, só desfeito às 17h03, quando finalmente o turbo-hélice Hércules levantou vôo da Base Aérea do Galeão. Embarcaram treze pessoas, sobrando apenas o "Xuxu", que havia embarcado às 18 horas na Base Aérea de Belo Horizonte, com destino a Belém, via Recife, e Gregório Bezerra, que deveria seguir da capital pernambucana no mesmo avião. Bezerra foi libertado às 20h e conduzido ao aeroporto militar dentro de um Volkswagen azul escoltado por três automóveis da Polícia Federal. Meia hora antes tinha sido examinado pelo cardiologista Luiz Vilar, que constatara alterações cardíacas. Segundo as declarações do Coronel Olinto Ferraz, diretor da Casa de Detenção de Recife, Gregório tinha acompanhado atentamente pelo rádio as notícias do seqüestro do Embaixador americano. Durante a noite não conseguira conciliar o sono. Às 21h30 de sábado, ele chegou ao aeroporto militar vestindo calça e camisa brancas. As 21h10 aterrou o Hércules com os prisioneiros embarcados na Guanabara. E às 22h, com sua lista de passageiros quase completa, "Carcará" levantou vôo novamente em direção à sua última escala, na Amazônia. Às 15h40 de domingo (hora de Brasília), o avião chegou ao México. E, no Brasil, apenas restava esperar a libertação do Embaixador.