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Bush e a ONU

Newton Carlos - Correio Brasiliense

Do ponto de vista da legalidade internacional, a coisa seria muito simples. O secretário-geral da ONU, Kofi Anan, encaminha ao Conselho de Segurança a comunicação do Iraque de que aceita, sem condições, a volta dos inspetores de armas com mandato definido em votação soberana. O artigo 6º da Carta da ONU manda que todos os países membros acatem as decisões do conselho, supostamente a cargo da manutenção da paz e da segurança no mundo.

Mas não é isso que tem acontecido e dificilmente acontecerá agora. Bush está em guerra pessoal contra Saddam Hussein, e suas exigências não se limitam ao banimento de estoques de armas cuja existência caberia aos inspetores levantar. O cardápio de imposições americanas tem quase 30 itens. A reação negativa e instantânea da Casa Branca ao recuo do Iraque teve o objetivo de ‘‘formatar’’ a reação do próprio conselho. Colocá-lo de passos acertados com os Estados Unidos.

Bush foi muito claro em seu discurso no plenário da ONU. Ou a entidade faz com o Iraque o que ele quer que ela faça, ou se tornará irrelevante, desnecessária, do ponto de vista do atual governo americano. Dar uma chance à ONU, na visão hoje dominante em Washington, é permitir que ela mostre o seu grau de submissão. Se aceitável, tudo bem, se não, os Estados Unidos agirão sozinhos. Gente da Casa Branca até já calculou o custo da guerra, passado ao Wall Street Journal.

Ficaria entre 100 e 200 bilhões de dólares. O secretário do Tesouro americano, Paul O‘Neill, deu sinal verde em sua área. Disse que os Estados Unidos podem muito bem arcar com os custos de qualquer tipo de ação contra o Iraque, inclusive militar. Não entra um grão de ONU nessa movimentação. A gana em cima de Saddam Hussein é em geral encarada como obsessão em terminar o trabalho do pai, que venceu a guerra do Golfo e talvez tenha achado melhor, em 1991, poupar Saddam Hussein.

Como ele já fora um tirano ‘‘a favor’’, ainda poderia ser útil no mesmo tipo de tarefa exercida no passado, a de contrapeso aos xiitas do Irã. Mas Bush tem outras ambições, além de fazer o que o pai não fez. Há uma doutrina Bush em campo e ele quer transformá-la em lei universal a partir do Iraque. O nosso velho conhecido Kissinger se dispõe a ajudá-lo. Fala em ‘‘conceito revolucionário’’, já que Bush enterra o princípio secular da não-intervenção em assuntos internos de outros países.

O artigo 51 da Carta da ONU dá o direito de defesa diante de agressões reais. A doutrina Bush permite atacar ‘‘preventivamente’’, na suposição de que o outro vai atacar. Ela corporifica a lei do mais forte. Ninguém seria louco, por exemplo, no mundo de hoje, de ir sobre os Estados Unidos. O Conselho de Segurança, sob o domínio de seus cinco membros permanentes, encampou o ‘‘sistema de potências’’ que levou a duas guerras mundiais.

A ONU seria a vigência do internacionalismo e acabou num ‘‘falso internacionalismo da Guerra Fria’’, segundo o historiador inglês Geoffrey Barraglough. A entidade nunca se meteu em conflitos envolvendo diretamente seus caciques. Ficou longe das guerras do Vietnã, das Malvinas e da Argélia, deixou a China em paz no Tibete e os russos no Afeganistão. Com o fim da Guerra Fria, o ‘‘sistema’’ ficou nas mãos de uma única superpotência, os Estados Unidos.

Bush provavelmente mantém a decisão de atacar sozinho o Iraque se a operação na ONU fracassar. Caso isso aconteça, a ONU estará entre as primeiras vítimas. Receberá o seu tiro de misericórdia.


Newton Carlos é jornalista