Falso internacionalismo
Newton Carlos - Jornalista - Correio brasiliense - Via NOTIMP FAB: 247/2008 de 03/09/2008
Numa jogada de distanciamento de Bush e sua doutrina, a dos ataques preventivos, o Partido Democrata e seu candidato presidencial, Barack Obama, sustentam que cabe ao Conselho de Segurança da ONU tratar das crises internacionais. Mas com seu formato de nascimento vigente até hoje? A idéia de um internacionalismo esbarra no fato de que o Conselho pode ser paralisado por um pequeno grupo de países com direito de vetar resoluções contrárias aos seus interesses. Teoricamente louvável a intenção de Obama e dos seus. De prática inviável, no entanto.
Há uma visão histórica que adota a invasão da China, por parte do Japão, como marco inicial da segunda grande guerra. Era começo dos anos 1930. Sem condições militares de resistência, a China apelou para a Liga das Nações, a ONU daquela época, mas as baionetas japonesas acabaram falando mais alto e a partir daí a Liga foi sendo desmontada. Sobrevieram o martírio abissínio, imposto com crueldade por Mussolini, e a busca de “espaços vitais” por parte de Hitler. Tornou-se trágica piada falar em internacionalismo, ambição retomada depois da Segunda Guerra.
As potências vencedoras concordaram que era preciso criar mecanismos que assegurassem a integridade da espécie humana. Ou a paz e a segurança no mundo. Nacionalismos só tinham produzido desgraças. Seis anos de guerra mataram 50 milhões. Dostoievski teria razão com suas “memórias do subsolo”? Os homens tanto adoram construir como destruir. O bombardeio de Dresden, na Alemanha, acabou com 200 mil vidas numa só noite. O holocausto massacrou 6 milhões e a bomba atômica foi construída e também testada nas cidades-martírios de Hiroxima e Nagasaki.
“O ser humano pode vir a ser considerado mais um fracasso da natureza”, disse a historiadora Barbara Tuchman. Fortaleceu-se a convicção de que era preciso implantar o internacionalismo como guardião de deveres e direitos universais. A formação da ONU partiu da trágica constatação de que sistemas de potências foram responsáveis por duas guerras mundiais e mazelas adjacentes. Liquidá-los era um imperativo de convivência e da paz no universo. Mas a arquitetura da ONU, cuja tarefa, em linguagem formal, seria a de “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra”, foi traçada em função dos interesses nacionais dos grandes: Estados Unidos, ex-União Soviética, Inglaterra, França e China.
Instalou-se o “falso internacionalismo da guerra fria”, segundo definição do historiador inglês Geoffrey Barraclough. Passaram-se décadas e nada mudou. Os cinco ficaram com assento permanente e poder de veto no Conselho de Segurança, onde se concentram as decisões sobre guerra e paz. Na prática, foi ressuscitado o velho sistema de potências, de trágicos antecedentes. A ONU não se envolveu com o Vietnã, assunto dos Estados Unidos, nem com a guerra de independência da Argélia, onde a França aplicou técnicas de tortura que até hoje servem de modelo a operações de contra-insurgência. Militares e serviços de inteligência americanos envolvidos com o Iraque tiveram entre suas cartilhas o filme A batalha de Argel e nem sequer se tocou seriamente no assunto Argélia na ONU.
Tanques russos acabaram com a Primavera de Praga com o Conselho de Segurança imobilizado. A ex-União Soviética invadiu o Afeganistão e os Estados Unidos invadiram o Iraque usando argumentos falsos e violando leis internacionais. “Guerra ilegal”, acusou o ex-secretário-geral da ONU Koffi Anan, em entrevista à BBC de Londres. E daí? Há mais de 50 anos a China invadiu o Tibete e continua lá até hoje. São calculados em 400 os mortos em repressão a manifestações recentes. A China tem poderes para bloquear qualquer resolução que procure devolver o Tibete aos tibetanos e seu refugiado dalai-lama. A Inglaterra retomou as Malvinas pelas armas, com inteligência fornecida pelos Estados Unidos.
Bush lançou a doutrina das guerras preventivas, dando aos Estados Unidos o direito de atacarem desde que “achem” que vão atacá-los. Derrubou um princípio cujas raízes estão no século 17, o da não-intervenção em assuntos internos dos países. A proliferação das armas nucleares é considerada pela ONU a maior ameaça à humanidade. Mas ela não consegue fazer com que Israel abra seu arsenal à inspeção internacional. Ou com que o Irã deixe de lado suas ambições armamentistas. Há bombas num Paquistão instável, minado de islamismo radical, e na Índia, com a praga dos atentados terroristas. Se depender do Conselho de Segurança, a Rússia ficará impune com suas ações desafiadoras no Cáucaso e disposição de demarcar áreas de influência, em confronto com operações americanas de “aproximação”.
Nova guerra fria? Com lances de guerra de fato? Já se fala que muda o cenário estratégico, com a Rússia “reanimada” e buscando retomar a condição perdida de potência mundial. São situações que o Conselho de Segurança deveria resolver, em nome da paz. Mas sobrevive o falso internacionalismo, agora talvez de uma nova guerra fria. Cai num vazio, portanto, a declaração de Barack Obama de que cabe ao Conselho resolver as crises internacionais. Com que roupa?
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