O avião brasileiro de Hugo Chávez
O projeto armamentista da Venezuela inclui um monomotor do Brasil e submarinos da Rússia
Roberto Lopes - Revista ÉPOCA

Jorge Silva
EM MARCHA
Hugo Chávez quer equipar e fortalecer a Marinha e a Força Aérea da Venezuela. Para treinar pilotos militares, ele pretende adquirir 24 aviões modelo Guará 200, homologados pela Aeronáutica brasileira (abaixo), por US$ 8 milhões
Divulgação
O ex-caminhoneiro paranaense Jesus Rodrigues passou os últimos dias cotando, na Itália e na Rússia, o preço de chapas metálicas para aviões pequenos, de um só motor. Jesus é dono da Plasmatec, uma empresa modesta, espremida entre dois gigantes do setor aeronáutico: a Embraer, quarta maior fabricante de aviões do planeta, e a Avibras, que exporta foguetes militares. A Plasmatec fica em São José dos Campos, cidade do interior paulista que respira aviação. Das pranchetas da empresa saiu o projeto do Guará 200, um monomotor de dois lugares ideal para adestrar pilotos – civis e militares. A Aeronáutica homologou o modelo e Jesus já tem um cliente interessado em comprar 24 unidades. É o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. O negócio poderá render US$ 8 milhões.

Os cadetes do 2º ano da Escola de Aviação Militar Bolivariana, na Venezuela, precisam de aviões para treinar. Dos 12 aviões SF-260 usados hoje, fornecidos pela Itália entre 2000 e 2001, só três estão voando. As Forças Armadas da Venezuela tentaram em vão comprar aviões da Embraer e da chilena Enaer. Os aviões que interessavam aos venezuelanos têm componentes de fabricação americana, e Washington proíbe qualquer negócio em que esses produtos possam parar nas mãos dos militares chavistas. O Guará driblou esse problema. Normalmente oferecido com um motor americano Lycoming, de 200 HP, a gasolina, será vendido pela Plasmatec com o motor francês SMA, de 230 HP, a querosene.

Para Roberto Pereira, historiador da indústria aeronáutica brasileira, a aposta de Chávez no Guará é acertada: “Ele é derivado do Universal, um antigo avião que tinha fama de robusto. Tem tudo para ser ainda melhor”. Maquetes do Guará pintadas com as cores da aviação venezuelana já foram distribuídas a alguns gabinetes oficiais de Caracas.

Na semana passada, o vice-presidente e o ministro da Defesa da Venezuela embarcaram para a Rússia. Uma das razões da viagem pode ser a assinatura da compra do primeiro lote de submarinos Kilo 636. Além de torpedos, o modelo dispara mísseis sizzler, capazes de atingir alvos a 300 quilômetros de distância, na superfície. Chávez tem pressa em fechar o negócio. Seus almirantes chegaram a pedir a Moscou um submarino emprestado para que oficiais e marujos chavistas pudessem, sob supervisão russa, ir se acostumando ao “brinquedo” novo. O pedido foi negado. A Venezuela subiu a oferta e os russos concordaram em incluir no contrato um Kilo usado, que poderá chegar à frota venezuelana no fim de 2011. O submarino russo é maior e mais equipado que o Tupi, da Marinha brasileira (leia o quadro abaixo).

Em Havana, o almirante Pedro Miguel Pérez Betancourt, chefe da Marinha cubana que durante a Guerra Fria foi treinado na base naval de Riga (na Letônia, ex-república soviética), está ansioso pela chegada dos submarinos russos. O motivo é um acordo entre castristas e Chávez. Oficiais cubanos estagiariam nos Kilo 636. Em troca, os venezuelanos aprenderiam com os cubanos a pilotar caças russos. Mais que isso, permitiriam a Chávez acesso às escutas realizadas pelas estações de vigilância eletrônica de Havana. São antenas que rastreiam desde transmissões de fax em Wall Street a transferências de dados militares por microondas e comunicações via satélite das Forças Armadas americanas.

A Embraer não pôde vender aviões a Chávez
porque continham peças fabricadas nos EUA

A estratégia armamentista de Chávez é motivo de preocupação. Duas semanas atrás, uma advertência do ex-encarregado de Negócios da Venezuela em Brasília e em Bogotá Edgar Otálvora, hoje colunista do jornal venezuelano El Nuevo País, passou de mão em mão no Ministério da Defesa, em Brasília. “As aquisições bélicas que realiza o governo venezuelano pouco a pouco deixam de ser estritamente defensivas”, afirma Otálvora. “O tipo e a quantidade de equipamentos que Hugo Chávez está comprando desenham a construção de um aparato de guerra destinado a atuar muito mais além das fronteiras venezuelanas”.

Há um ano, oficiais de Chávez foram ao estaleiro italiano Fincantieri, no Porto de Trieste. Entre eles estava o então chefe da Primeira Brigada de Fuzileiros Navais, o almirante Carlos Máximo Aniasi Turchio, ex-ajudante-de-ordens de Chávez e seu amigo pessoal. Turchio e os companheiros queriam informações sobre os navios porta-helicópteros da classe San Giusto, construídos para a Marinha da Itália. São barcos de 8 mil toneladas, maiores do que quase todas as unidades da Marinha brasileira. Têm pista de pouso, porão para armazenar lanchas de desembarque e alojamentos que acomodam até 350 fuzileiros bem armados. Os venezuelanos gostaram do navio, mas o acharam “pequeno”. Disseram precisar de uma embarcação maior, capaz de transportar 850 soldados prontos para o combate – o efetivo de um batalhão inteiro. Afirmaram que seu governo poderia encomendar até três navios desse porte. A Venezuela também se interessou por uma corveta lança-mísseis da classe Mirazh e por um hovercraft Murena E. Com 31 metros de comprimento e altura de um prédio de três andares, o hovercraft se desloca sobre um colchão de ar, tem canhões e mísseis antiaéreos. Sua garagem pode transportar um tanque de guerra ou 130 soldados.

O tipo e a quantidade de equipamentos desenham um aparato de guerra
EDGAR OTÁLVORA, ex-encarregado
de Negócios da Venezuela

O avião Guará pode parecer um detalhe na extensa lista de compras de Chávez, mas ele não deverá ser a única contribuição brasileira para a Força Aérea da Venezuela. Em maio, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, confirmou o interesse do Brasil em abrigar indústrias que possam dar manutenção a equipamentos militares fabricados no Leste Europeu, como os caças Su-30 – exatamente os que Chávez importou da Rússia. A declaração foi dada em Quito, onde Jobim tentava atrair o governo equatoriano para o projeto de um Conselho Sul-Americano de Defesa sem os Estados Unidos. Para espanto da diplomacia brasileira, Jobim classificou de “erro” o veto imposto pelos americanos às Forças Armadas chavistas. “O presidente Chávez acabou comprando aviões na Rússia”, afirmou o ministro. “Isso criou um problema logístico. Como dar manutenção a esses aviões? Mandando a Moscou? Por isso, estamos conversando com os russos, que desejam estabelecer fábricas na América do Sul”.

O Brasil não está conversando só com os russos. Em maio, Martin Rima, ministro da Indústria e Comércio da República Tcheca, visitou o Rio Grande do Norte com seu compatriota Zdenek Sykora, da fábrica de jatos militares Aero Vodochody. Sykora anunciou a intenção de instalar uma subsidiária da Vodochody no Estado. “É um negócio que interessa ao Brasil e à República Tcheca”. No Rio Grande do Norte já funciona o centro de treinamento de pilotos de caça da Força Aérea Brasileira.

Os acordos que Chávez assinou com países vizinhos (leia o quadro abaixo) mostram um esforço para aumentar a influência militar da Venezuela na região. “Há uma percepção equivocada de que os problemas comuns aos países da América Latina servem para uni-los”, afirma o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, especialista em assuntos de defesa que faz consultoria para a oposição ao governo Lula. “A expansão militar da Venezuela mostra que isso está errado”.

Zona de influência
Os acordos que ampliam a presença de Chávez na região
Revista Época
1. CUBA
Cooperação no adestramento de tripulações navais e aéreas; transferência de navios de guerra venezuelanos para Cuba; financiamento para reformar oficinas navais e construir lanchas. Cubanos foram contratados para fazer reparos em um navio de transporte militar da Venezuela. Há 22 outros programas de ajuda a Havana em andamento
2. NICARÁGUA
Financiamento para a construção de uma refinaria de petróleo prevista para ficar pronta em 2012, ao custo de US$ 4 bilhões. Vai se chamar Supremo Sonho de Bolívar e processará 150 mil barris por dia. Caracas promete ainda uma lancha de patrulha para a modesta Força Naval nicaragüense
3. BOLÍVIA
Transferência de aviões de transporte Hercules C-130, de fabricação americana; cooperação para o treinamento dos cadetes da Marinha da Bolívia e para a gestão dos portos fluviais e lacustres desse país; apoio financeiro à indústria petroquímica boliviana
4. EQUADOR
Apoio financeiro e técnico à exploração e ao processamento de petróleo. Trinta especialistas venezuelanos assessoram o governo de Quito no assunto.
Os dois países estudam agora a possibilidade de construir uma refinaria em território equatoriano, capaz de processar 300 mil barris/dia de óleo