Filósofo da 3ª via - Nesta que foi sua última grande entrevista antes de deixar o governo Lula, na semana passada, Mangabeira Unger tenta expor porque acredita sintetizar as ideias que criam uma saída para o Brasil

Kamila Fernandes da Redação Jornal O Povo

Em 2005, o pré-candidato a presidente Roberto Mangabeira Unger tecia duras críticas ao governo Lula, considerando-o equivocado e taxando-o de o mais corrupto da história do Brasil. Quatro anos depois, integrado a esse mesmo Governo, Mangabeira, 61, afirma que há avanços e que suas críticas não passaram de “excessos discursivos”.

De um jeito ou de outro, seja por conta dos “excessos” ou de contradições, Mangabeira se tornou, nos últimos anos, um dos personagens mais controversos da política brasileira, com presença influente em palanques de grandes nomes, como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola e Ciro Gomes, sempre como mentor.

Nesta nova entrevista às Páginas Azuis do O POVO (a primeira foi publicada em 27 de junho de 2005), Mangabeira deixa claro o seu novo ponto de vista em relação ao governo petista, bem diferente da entrevista anterior, mas demonstra enxergar seu papel como algo que vai além do atual Governo, numa ação preparatória para o futuro. Quiçá, do seu próprio governo, pretensão que não esconde em seu discurso.

Esta entrevista foi a última dada por Mangabeira antes de deixar o Ministério dos Assuntos Estratégicos para voltar às pressas a Harvard, onde leciona há quase 40 anos e onde foi professor, inclusive, do presidente Barack Obama. Em sua carta de despedida, entregue a Lula na segunda-feira passada, Mangabeira alegou que precisava voltar para ajudar a custear os estudos dos filhos, mas que quer continuar a ajudar o Brasil, e “de perto”. Leia a seguir os principais trechos desta entrevista.

O POVO - Naquela entrevista ao O POVO, o senhor fazia muitas críticas ao governo Lula. Quem mudou mais, o senhor ou o presidente?
Mangabeira - Não, mudança substancial não houve nem da parte do presidente nem da minha. Eu fui um crítico ferrenho do primeiro governo Lula e, em alguns momentos, a paixão política me levou a um excesso discursivo, mas o básico não foi isso. O básico é que o presidente demonstrou clareza e magnanimidade ao convidar um crítico de seu primeiro governo para ajudá-lo no cumprimento de uma grande tarefa. Ele e eu concordamos que o que nos une é o futuro, é um compromisso com um rumo para o Brasil. Podemos ter divergido, e ainda divergir, sobre o que deveria ou poderia ter ocorrido lá atrás. Mas este não é o assunto de agora, o assunto agora é qual é o próximo passo para o Brasil. E neste tema decisivo, há entre o presidente Lula e mim uma convergência completa. O que nós queremos é construir um modelo de desenvolvimento que, por meio de ações institucionais, amplie as oportunidades para aprender, para trabalhar e para produzir, e assegure a primazia dos interesses do trabalho e da produção.

OP - De que forma?
Mangabeira - [Mudando] Todas as nossas instituições econômicas, a nossa maneira de organizar a democracia representativa, que faz com que as mudanças continuem a depender de crises, a nossa maneira de ensinar e de aprender, que se pauta por um enciclopedismo informativo superficial, contraditório com a anarquia criadora que caracteriza a nossa cultura. A primeira coisa que tem de acontecer no Brasil é o Brasil aceitar-se para poder transformar-se. Esse é o eixo agora da minha ação pública. Olhando no horizonte dos meus engajamentos imediatos, vejo quatro grandes projetos libertadores para o povo brasileiro: democratizar a economia do mercado, capacitar o povo brasileiro, aprofundar a democracia e construir um escudo econômico que resguarde a heresia nacional e permita nos integrar à economia do mundo de uma forma ativa, e não passiva. O primeiro projeto é a democratização da economia de mercado. Não basta regular o mercado, não basta contrabalançar as desigualdades geradas no mercado, recorrendo a políticas sociais, é preciso reorganizar o conteúdo institucional do mercado para torná-lo includente e ampliador de oportunidades. O segundo grande projeto libertador é a capacitação do povo brasileiro, e nessa matéria eu vejo duas prioridades, a primeira é reconciliar em nosso País, muito grande, muito desigual, em regime cooperativo, a gestão local das escolas por estados e municípios, com padrões nacionais de investimento de qualidade, e a segunda é construir uma maneira de ensinar e de aprender que substitua o decoreba por capacitação analítica. O terceiro projeto libertador é aprofundar a democracia e construir instituições políticas de uma democracia de alta energia e que elevem o nível de participação popular na vida cívica, e instituições que resolvam rapidamente os impasses entre os poderes do Estado pelo engajamento direto do eleitorado.

OP - O senhor acredita ser possível conciliar uma produção intelectual com a prática política, mantendo-se coerente?
Mangabeira - Eu nunca me vi como professor, eu me vejo como um pensador. A paixão pela filosofia, pelo pensamento, tem sido uma das grandes forças na minha vida. E a tentativa de intervir no mundo, a outra força. Eu nunca atuei na academia como um acadêmico relacionado com grupos, com tendências, com escolas. Eu vivi na academia como que num mosteiro, e, em geral, na vida, o que me atrai são os extremos, o mosteiro e o campo de batalha. O que me repele é o que está no meio, a vida normal. E esses dois extremos tem uma analogia moral e psicológica decisiva. A política transformadora e o pensamento filosófico são, do ponto de vista humano, dois lados da mesma ambição. Em primeiro lugar, tratam de tudo, em vez de tratar de algo específico. E em segundo lugar exigem tudo, uma mobilização completa das emoções. O filósofo Hegel comentou uma vez que a única tragédia que sobrevive na vida burguesa é a impossibilidade de reconciliar a vida do pensamento com a vida da ação. Mas eu creio que é uma impossibilidade relativa que se deve sobretudo às exigências ilimitadas dessas duas formas de ação. Então eu não experimento essa mudança de circunstância como uma revolução na minha situação existencial, eu experimento como uma tentativa de continuar mais radicalmente no mesmo lugar.

OP - Mas o senhor acha possível, em meio a cultura política brasileira, repleta de denúncias. implementar as mudanças que propõe?
Mangabeira - Esse problema não é uma idiossincrasia brasileira, é a manifestação nacional de um problema universal da ação humana. O filósofo [Miguel de] Unamuno disse uma vez o seguinte: na história, os vitoriosos são os que se adaptam ao mundo, os derrotados são os que exigem que o mundo se adapte a eles. Por isso, completou, todo o progresso da humanidade repousa sobre os ombros dos derrotados. Nós temos que fazer uma escolha, ao intervir, se vamos nos render à lógica do mundo constituído ou se vamos, para usar o vocabulário da teologia cristã, estar no mundo sem ser completamente dele. E essa ideia da ação está ligada a um dos temas centrais do meu pensamento filosófico. A nossa característica humana mais importante é que nós somos sempre formados em contextos específicos, não flutuamos, nós somos criaturas das ordens sociais, culturais e conceituais em que transitamos. E esse fato geral da ação transformadora é reforçado por uma característica do povo brasileiro, que é a sua singular disponibilidade. Veja a aplicação desse fato para a sucessão presidencial em geral no Brasil, não digo essa, mas a política presidencialista. O regime presidencialista é muito defeituoso, copiado dos Estados Unidos e desenhado para dificultar as mudanças e desacelerar a política. Mas tem uma virtude, que é permitir, ou pelo menos ameaçar, uma desestabilização periódica de esquemas constituídos. E a lógica básica das sucessões presidenciais no Brasil é muito simples: o povo brasileiro fica sempre tentando encontrar saídas e surpresas. Na frase do meu amigo e aliado Brizola, costeando o alambrado. E o sistema dos partidos e da mídia ficam tentando negar saídas e surpresas ao povo e fechar o cerco.

OP - O senhor passou muitos anos no exterior, mas nunca deixou de acompanhar a política brasileira. Ver de perto...

Mangabeira - Mas eu não acompanhei só. Eu tive, ao largo de toda a minha ação pública, momentos decisivos de engajamento. Começaram durante o regime militar, eu me apresentei a Ulysses Guimarães, trabalhei na formação do PMDB, sou eu o redator do manifesto de fundação do partido com o meu co-autor José Serra, e depois eu tive uma série de engajamentos políticos em que eu procurei trabalhar com agentes políticos como Leonel Brizola e Ciro Gomes, que eu julgava úteis para o desdobramento do rumo nacional que eu propunha. Tive e tenho imensa admiração por esses homens, mas reconheço que cometi, nessa fase da minha ação pública, o erro clássico dos filósofos em política, que é encontrar uma outra pessoa para fazer o serviço.

OP - Então o senhor acha que tem que assumir essa posição?
Mangabeira - Eu descobri algo óbvio e algo menos óbvio. O óbvio é que o outro é o outro. O menos óbvio é que é mais fácil mudar um País do que mudar uma pessoa. Sem dúvida. Para mudar um País basta ser um estadista, para mudar uma pessoa, precisa ser um profeta.

OP - Isso é uma crítica a alguém?
Mangabeira - Não, não estou fazendo crítica a ninguém, estou fazendo crítica a mim mesmo. Porque cometi esse erro clássico dos filósofos.

OP - Mas o senhor alimenta ainda essa idéia de virar presidente?
Mangabeira - Cada momento de engajamento meu me revelou uma necessidade de me engajar de forma ainda mais incontida, sem reservas. Fazer política é despojar-se e não há engajamento neutro.

OP - Sua tarefa de planejar parece difícil diante do temor de que haja um engessamento de ações futuras...
Mangabeira - Eu entendo a prática [do planejamento] como uma prática definida por uma combinação de cinco compromissos: o primeiro e mais importante é organizar uma dialética entre o ideário que demarca o rumo e uma definição muito concreta dos primeiros passos para entrar naquele rumo. O ideário não define uma planilha, mas organiza uma sequência. Não é arquitetura, é música. E o possível que conta não é o horizonte fantasmagórico das possibilidades remotas, é o possível alcançável. Como começar a trilhar o caminho. O único longo prazo que conta é o longo prazo que possa começar no curto prazo. E o possível que importa é o possível adjacente. É assim que se muda o mundo, nada é mais poderoso no mundo. O segundo compromisso é a reconstrução do federalismo brasileiro. É preciso substituir esse federalismo de repartição rígida de competências por um federalismo cooperativo, que associe as três instâncias da federação em ações conjuntas e experimentos compartilhados. É uma maneira de mudar a relação entre o centro e a localidade. O terceiro compromisso que baliza essa prática é sempre que possível tentar partir do que já deu certo, e há muita coisa que no Brasil já deu certo, em vez de partir de dogmas e de aprioris. Um quarto atributo dessa prática é substituir o processo decisório fechado por um processo decisório aberto, que engaje todas as instâncias do Estado e da sociedade na construção das soluções. E a quinta aspiração definidora, facultada pelas outras quatro, é teimar na ideia de construir um projeto que seja do Estado brasileiro, e não apenas do Governo que está momentaneamente no poder. Então, eu entendo que o meu trabalho não é apenas colaborar na formulação de um plano de governo do Lula, é contribuir na construção de um projeto capaz de sobreviver ao Governo Lula. Agora, toda essa prática se insere num contexto de atitudes e de ideias hostis a esse objetivo. No Brasil sobram partidos, mas faltam alternativas. A rigor, nós só temos duas ideias consolidadas no discurso político brasileiro, a ideia dominante é a do Estado que conduz, que por meio dos bancos públicos se alia às grandes empresas e que por meio dos programas sociais atenua os efeitos da pobreza e da desigualdade. O discurso minoritário, que é dos grandes empresários, é o discurso da quebra das amarras, menos imposto e menos regulação e mais flexibilidade para produzir e diminuir o custo Brasil. A maioria do povo brasileiro descarta esse segundo discurso como um pretexto para servir aos interesses do grande capital. Há um imenso espaço vazio na vida pública brasileira para um terceiro discurso, que é o Estado usar seus poderes e recursos para dar braços, asas e olhos à energia empreendedora e criativa que surge de baixo em todo o lugar no Brasil. E hoje há uma base social concreta para o preenchimento dessa lacuna, para a construção desse terceiro discurso, ao qual a minha ação pública agora procura dar conteúdo institucional.

OP - O senhor não é uma voz isolada no Governo Lula, se inserindo nesse discurso majoritário que o senhor descreveu?
Mangabeira - Mas é um avanço, é um desdobramento. E eu vejo a ideia dessa terceira posição como uma ideia que hoje no Brasil tem uma base social concreta, ainda que ela não tenha uma voz política clara. A base social concreta é o surgimento de uma segunda classe média. A classe média tradicional sempre foi o protagonista mais importante na história do País. Essa classe média tradicional está hoje fragilizada econômica e espiritualmente, porque ameaça assimilar dos países ricos a cultura do desencanto com a política, num País em que tudo continua a depender do encaminhamento coletivo, de soluções coletivas para problemas coletivos. Nós precisamos desesperadamente de política. Surge, porém, ao largo dessa classe média tradicional fragilizada, uma segunda classe média. É o acontecimento social mais importante na história do Brasil nas últimas décadas. Milhões de brasileiros que vêm de baixo, que lutam para abrir pequenos negócios, que estudam à noite e que inauguram uma cultura de auto-ajuda e de iniciativa. Quase inteiramente desconhecida das elites brasileiras, essa segunda classe já está no comando do imaginário popular.

OP - Em termos práticos, entre os candidatos postos para a sucessão presidencial, o senhor acha que alguém encarna as suas ideias?
Mangabeira - No meu lugar, sabe, eu não posso me manifestar com respeito a sucessão presidencial. Por uma razão simples: o princípio do meu trabalho, uma aspiração que baliza a minha tarefa, é construir um projeto de Estado que possa ser abraçado pela convergência mais ampla possível de forças políticas e sociais do País, e que transcenda até mesmo a divisão entre Governo e oposição.

OP - O senhor, em outros momentos, já fez diversas críticas aos partidos no Brasil, chegando a comparar o PT com o PSDB...
Mangabeira - Eu não posso fazer isso no cumprimento dessa tarefa agora. Eu devo me abster de comentários sobre a política partidária enquanto eu estiver exercendo essa tarefa de zelar por uma política de Estado.

OP - Retomo a questão sobre sua intenção de ser candidato a presidente. Isso é fato?
Mangabeira - Eu, com sinceridade, ainda não defini o próximo passo da minha ação pública. E não devo fazer isso enquanto estiver no Governo, mas é claro que é algo sobre o qual eu penso ardorosamente, o que fazer em seguida, como levar adiante este caminho. E considero todas as opções. Preciso considerá-las sem preconceito e sem me intimidar com os muitos obstáculos. Não com respeito a mim, mas em geral a lógica da sucessão presidencial é muito simples, o povo brasileiro fica buscando saídas e surpresas. O tema de uma grande eleição nacional nunca é o passado, sempre é o futuro. A eleição não é uma distribuição de medalhas para condecorar a conduta passada, é uma decisão coletiva a respeito do que fazer em seguida, e assim será no caso dessa eleição. Por maiores que hajam sido, e foram muitos, os avanços no governo Lula, a questão que se põe agora é qual é o próximo passo. E o meu entendimento é que o próximo passo é o conjunto de inovações das instituições e as nossas políticas públicas, que conformariam em instrumentos e oportunidades toda essa energia humana que fervilha dispersa no País. É isso o que a maioria do povo brasileiro procura. Por outro lado, o sistema de partidos e dos meios de comunicação, em grande parte, tenta fechar o cerco e negar essas saídas e surpresas ao povo brasileiro, essas novas alternativas. E aí se estabelece o falso contraste entre continuidade e ruptura. No Brasil, o povo brasileiro está aberto, quer um avanço, quer uma reconstrução, não quer apenas dourar a pílula, mas é muito difícil chegar ao povo brasileiro e se tornar nacionalmente conhecido. Praticamente a única maneira é ser candidato a presidente da República. É por isso que, quando publicam essas pesquisas a muito tempo da eleição, os que aparecem nos primeiros lugares são quase inteiramente os que já foram candidatos à Presidência da República. Eu digo tudo isso para insistir que precisamos qualificar esse debate nacional e aproveitar o momento precioso da sucessão para colocar o País diante das suas grandes opções. E se eu puder fazer alguma coisa para ajudar isso, direta ou indiretamente, farei. O caminho concreto para isso eu ainda não decidi.


A entrevista foi dada durante visita de Mangabeira a Fortaleza, no dia 23 de junho, na Assembleia Legislativa, onde ele apresentou o Projeto Nordeste. No dia seguinte, por telefone, houve uma nova conversa. Cinco dias depois, ele anunciou que precisava se afastar do Governo Lula para erassumir Harvard, fato então não mencionado.


Já fora do governo, em Harvard, Mangabeira disse, em entrevista à Folha de S. Paulo, que quer voltar logo a viajar pelo Brasil, e que pode mesmo sair candidato a presidente, mesmo contra a ministra Dilma Roussef (Casa Civil), preferida de Lula.


Ao presidente Lula, ele entregou duas cartas de renúncia, uma mais curta, em que apenas dizia que precisava voltar, e outra mais longa,com 22 páginas, com um balanço de suas atividades e uma mensagem final, dizendo que: “Rogo ser convidado para participar de todas as discussões e de todos os desdobramentos destas propostas e iniciativas. Não me darei por satisfeito ao aconselhar de longe. Quero estar presente”.


Mangabeira está filiado ao PRB, partido do vice-presidente José Alencar. Quando foi pré-candidato a presidente estava no PHS. Ele já passou também pelo PDT e pelo PMDB.

Ex-seguidor de Mangabeira, o deputado Ciro Gomes (PSB) estava na Assembleia durante a visita do então ministro. Ele afirmou ser “cumpadre e amigo” de Mangabeira. “Um movimento que se traduz em coisas práticas só acontece se houver inicialmente uma ideia. Hoje o Nordeste é uma ficção política pela falta de projeto, e o professor Mangabeira está oferecendo uma ideia”, afirmou Ciro.
Antes de começar a entrevista, falei a Mangabeira sobre a entrevista anterior dada às Páginas Azuis do O POVO, quando ele era pré-candidato a presidente. Na hora, em tom de brincadeira, ele relatou o fato ao chefe de gabinete do presidente da Assembleia, que estava do outro lado do salão onde a entrevista era dada: “Eu era pré-candidato a presidente. Está vendo, caí muito”, disse rindo.
Além de política, Mangabeira demonstrou conhecer também as questões climáticas. Para ele, aquecimento global não é fruto da ação humana, mas da própria dinâmica da natureza.



Mangabeira Unger: 'Por que voltei a Harvard'


O Estado de São Paulo - Ivan Marsiglia

Via Defesanet

Reinstalado em seu escritório em Cambridge, nos EUA, o ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, fez questão de enviar por e-mail ao repórter do Aliás o calhamaço de documentos que entregou ao presidente Lula na terça-feira, com sua carta de demissão. O arquivo era tão pesado que o provedor o devolveu. "Veja a gravidade de minha situação", disse Mangabeira, acrescentando um tom bem-humorado a seu conhecido sotaque americano: "Não consigo distribuir minhas propostas para o País porque elas superam o espaço da caixa postal. É um mau sinal".

De volta à sua cátedra na Universidade Harvard depois de dois anos em Brasília, o carioca que aos 26 anos tornou-se o mais jovem professor titular da história de uma das mais prestigiadas instituições de ensino aos EUA está mudado. Ele, que já se disse um homem desprovido do "charme" típico dos brasileiros, trouxe da convivência com Lula mais que seu conhecido senso de humor. A experiência nas entranhas do poder e "no interior do interior" do Brasil, que percorreu em suas andanças como ministro, aprofundou "a intuição que tinha sobre o País". Para o intelectual que Caetano Veloso quer ver na Presidência, o Brasil é um vulcão de vitalidade que ainda não encontrou nas instituições a sua mais completa tradução.

Aos 62 anos, o ex-ministro se diz otimista com o futuro nacional e só se irrita quando perguntado sobre a briga que teve com ambientalistas na discussão do plano Amazônia - que resultou, dizem, na derrubada da ministra Marina Silva. Sobre 2010, Mangabeira jura que ainda busca o nome mais adequado a seu projeto, seja Dilma Rousseff, Ciro Gomes ou até José Serra - sem descartar a hipótese de ser, ele próprio, candidato. E confessa: "Estou contando cada minuto até meu regresso ao Brasil".

BYE-BYE, BRASIL
"Tive que conciliar meus compromissos cívicos com obrigações pessoais, com minha mulher, Tâmara Lothian, e nossos quatros filhos, dos quais estava afastado havia dois anos. E com minha cátedra na Universidade Harvard. Renunciar a ela é uma decisão que não tomo de forma leviana. Fico agastado quando falam nisso como se se tratasse de abdicar ou não de uma benesse. É uma instituição que sempre me apoiou e só exige que reafirme meu vínculo com ela. Se tivesse um horizonte temporal considerável na pasta, não hesitaria em renunciar à cadeira - como não hesitarei no futuro.

FUTURO DO PRETÉRITO
"Ensino em Harvard três meses por ano, então posso desdobrar meu trabalho no Brasil. O presidente Lula generosamente propôs que eu colaborasse na construção da 'Proposta do Futuro', com que ele pretende coroar seu governo, no início do ano que vem. Farei isso como voluntário e na medida em que ele achar útil. E viajarei o Brasil para discutir as ideias. Entendo esse meu afastamento como relativo e temporário.

PESQUISA DE CAMPO
"Saio da experiência no governo intensamente energizado. Sou uma pessoa naturalmente esperançosa, mas encontrei mais razões para isso. Percorri o País falando com gente de todas as classes sociais, dos mais endinheirados aos mais pobres. Eu não tinha nada a oferecer a não ser ideias, e ainda assim fui recebido com entusiasmo. Essa experiência aprofundou uma intuição que eu tinha sobre o Brasil: a de que o atributo mais importante do País é sua vitalidade. O Brasil é vida, um turbilhão de dinamismo. Fervilha de anarquia criadora e dinamismo empreendedor, mas tem uma vida pública tosca, que lhe impõe uma camisa de força.

A TEORIA, NA PRÁTICA
"Há um descompasso entre o que o Brasil é hoje e suas instituições. É preciso reconstruí-las pedaço por pedaço, passo a passo, para dar expressão a essa nova classe média, mestiça, de milhões que lutam para abrir pequenos negócios e inauguram uma cultura de autoajuda e de iniciativa no País. Como? Nas relações entre capital e trabalho por exemplo, não temos uma grande iniciativa desde Getúlio Vargas. Hoje, mais de um terço da população economicamente ativa está na informalidade, um escândalo. A solução passa por uma desoneração radical da folha de salários. Mesmo na economia formal, parte crescente dos contratados são trabalhadores temporários, terceirizados ou autônomos. Propus regras que complementem a CLT para proteger e representar essas pessoas. Terceiro problema: a queda da participação dos trabalhadores na renda nacional. Para revertê-la, não basta a política de aumentos do salário mínimo. É preciso regular em lei o preceito de nossa Constituição sobre a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas.

DIÁLOGO COM LULA
"Construímos uma relação calorosa. É voz corrente no Planalto: não entendem o surto de simpatia que ele teve por mim (risos). Claro, em qualquer governo nenhum ministro concorda com tudo. Mas não seria correto eu fazer um boletim ao sair. E essa não é a maneira certa de se avaliar o êxito de uma experiência histórica. Cito um comentário que se fez a respeito do New Deal: 'Todas as iniciativas do presidente Franklin Roosevelt malograram, mas o New Deal como um todo foi um êxito'. A política transformadora não é um amontoado de ações desconexas, é uma correnteza. O que importa é a direção geral.

A RUSGA COM MARINA
"Não houve enfrentamento (com a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva). Tenho grande admiração por ela e acho que, no conjunto, sua ação foi benéfica para o País. O que não quero e não me conformarei é em deixar que 61% do território brasileiro seja usado como massa de manobra para fantasias ideológicas. Alguns grupos, do sul, sudeste e de fora do País, queriam para a Amazônia um regime jurídico diferente de tudo o que é moderno. Era um atavismo, a ideia da família camponesa feliz, derrotada na Baviera e no Piemonte no início do século 19. Um projeto para a Amazônia tem que ser includente e sustentável, valer tanto para as árvores como para as pessoas.

NO PLANALTO, EM 2010
"Não podemos ter uma eleição em que de um lado o tema seja 'choque de gestão' e, de outro, 'obras'. O País tem que enfrentar suas encruzilhadas institucionais. Conheço a Dilma há 25 anos, desde que me convidou para uma série de visitas ao Rio Grande do Sul. Tenho também respeito por José Serra, mas não o conheço proximamente. E mantenho uma relação próxima com Ciro Gomes, que já apoiei. Uma opção para mim é trabalhar com um projeto em construção. Outra, ter uma ação cívica independente, como candidato. Seria hipócrita negar que imagino todas as possibilidades, mas não as encaro como caprichos pessoais: elas vão depender da realidade política.

ENTRE BRASÍLIA E WASHINGTON
"Não tenho interesse em agir como intermediário, nem o governo brasileiro precisa disso. Mas quero intervir no plano das ideias. Tenho muitos amigos no governo americano. É preciso compreender que os EUA estão em um momento de inflexão, e a mudança de governo é apenas sua manifestação mais superficial. Os americanos estão buscando uma sequência ao projeto de Roosevelt, paralela àquela que empreendemos hoje no Brasil - a de um modelo de desenvolvimento baseado na ampliação de oportunidades econômicas e educativas. Somos o país mais parecido com os EUA no mundo: duas sociedades muito desiguais, nas quais a maior parte das pessoas comuns continua a julgar que tudo é possível. São sociedades cheias de peregrinos, de aventureiros, de pessoas inconformadas e à busca. Em momentos de ebulição mundial como este, todos estão à mercê de suas ideias. E as ideias andam muito pobres. Não sou apenas brasileiro, sou um cidadão do mundo, que não crê em soluções apenas nacionais. Acredito que o mundo todo está ligado por uma cadeia de analogias. E, na medida em que estiverem dispostos a me ouvir, vou falar. De Harvard ou de onde estiver. Mas estou contando cada minuto até meu regresso ao Brasil."