Disputa na fronteira entre China e Índia envolve domínio sobre o Tibete

Indiana Tawang fica a 3.050 metros, na parte oriental e gelada do Himalaia.
Vizinhos disputam o talvez mais militarizado território budista no mundo.

Edward Wong Do New York Times, em Tawang, Índia - G1

Talvez este seja o território budista mais militarizado do mundo.

Localizada a 3.050 metros de altura, na parte oriental e gelada do Himalaia, a cidade de Tawang não apenas abriga um dos monastérios mais sagrados do budismo tibetano, mas também é o local de uma concentrada formação militar indiana. Comboios de veículos do exército transportam canhões ao longo das estradas sulcadas nas montanhas. Soldados treinam em campos lamacentos. Bases militares aparecem a cada 800 metros no interior, com torres de observação surgindo atrás de espirais em aço com lâminas cortantes.

Uma placa de sinalização na parte norte da cidade ajuda a explicar a razão para tanto medo e raiva: a fronteira com a China fica a apenas 37 km; Lhasa, a capital do Tibete, a 509 km; e Pequim, a 4.307 km.

Foto: The New York Times

Soldados indianos patrulham a região de Tawang em 12 de junho de 2009. (Foto: The New York Times)

"O exército chinês tem uma grande concentração na fronteira, em Bumla", disse Madan Singh, comandante oficial júnior, sentado junto a meia dúzia de soldados, bebericando chá numa tarde recente, à beira de uma estrada nebulosa. "É por isso que estamos aqui."

Apesar de pouco conhecida do mundo exterior, Tawang é um ponto crítico nas relações entre os dois países mais populosos do mundo. Ela é o foco da disputa fronteiriça mais delicada da China, um conflito enraizado nas alegações chinesas de soberania sobre todo o Tibete histórico.

Nos últimos meses, ambos os países avançaram em esforços para assegurar seus direitos sobre esse pedaço pedregoso de terra. A China tentou bloquear um empréstimo de US$ 2,9 bilhões para a Índia do Banco de Desenvolvimento Asiático, com base no argumento de que parte do empréstimo foi programada para projetos de controle de enchentes em Arunachal Pradesh, o estado onde se localiza Tawang. Foi a primeira vez que a China buscou influenciar a disputa territorial por meio de uma instituição multilateral.

Depois, um general indiano anunciou que as forças armadas da Índia estavam empregando soldados adicionais e aviões de caça na área.

A crescente beligerância amargou as relações entre os dois gigantes asiáticos e fez com que um líder militar indiano declarasse que a China substituiu o Paquistão como a maior ameaça à Índia.

Espera-se que o progresso econômico aproxime os dois países. A China e a Índia realizaram transações comerciais no valor de US$ 52 bilhões no ano passado, um aumento de 34% em relação a 2007. Porém, empresários afirmam que as tensões na fronteira inspiraram deliberações oficiais sobre acordos comerciais, diminuindo a disposição de empresas chinesas e indianas de investir no país vizinho.

Foto: The New York Times

Pequeno monge observa pela porta de sala durante aula de religião no monastério de Tawang. (Foto: The New York Times)

"Oficiais começam a levar mais tempo, analisando as coisas com maior cuidado, e tudo isso significa mais atrasos e, no fim, menos acordos fechados", disse Ravi Bhoothalingam, ex-presidente do Oberoi Group, uma cadeia de hotéis de luxo, e membro do Instituto de Estudos Chineses em Nova Déli. "Isso não é bom para os negócios."

As raízes do conflito remontam às exigências territoriais da China sobre o Tibete. O Dalai Lama, exilado líder espiritual dos tibetano, mora nos pés das montanhas do oeste do Himalaia – com a aprovação do governo indiano. Além disso, a China insiste que esta faixa de terra do nordeste da Índia tem sido historicamente parte do Tibete, e por isso deveria pertencer à China.

Tawang é uma área de floresta densa, de mausoléus brancos, declives e vertentes escalonadas, onde mora o povo monpa, que pratica o budismo tibetano, fala uma língua similar ao tibetano e antes honrava os governantes em Lhasa. O sexto Dalai Lama nasceu aqui, no século XVII.

O exército chinês ocupou Tawang por pouco tempo, em 1962, durante uma guerra contra a Índia pelo controle deste e de outros territórios ao longo da fronteira, com 4.057 km de extensão. Mais de 3.100 soldados indianos e 700 soldados chineses foram mortos, e milhares foram feridos na guerra sobre a fronteira. Memoriais de guerra salientando as agressões da China em Tawang atraem muitos turistas indianos.

"Toda a fronteira é disputada", disse Ma Jiali, estudiosa indiana do Instituto Chinês de Relações Internacionais Contemporâneas, formado por um grupo de especialistas apoiados pelo governo, baseados em Pequim. "Esse problema ainda não foi resolvido, e representa um grande obstáculo para as relações China-Índia."

De alguma forma, Tawang também se tornou um campo de batalha representativa entre a China e o Dalai Lama, que atravessou este vale quando fugiu para o exílio, em 1959. De sua casa, na cidade distante de Dharamsala, ele exerce enorme influência sobre Tawang. Ele designa os superiores do poderoso monastério e dá apoio financeiro para instituições por toda a área.

No ano passado, o Dalai Lama anunciou, pela primeira vez, que Tawang é parte da Índia, reforçando as exigências territoriais do governo indiano e deixando a China furiosa.

A cultura tradicional tibetana é forte em Tawang. Numa manhã de junho, o monastério realizou um festival religioso que atraiu centenas de moradores de vilas próximas. Enquanto monges de vestes vermelhas entoavam sutras, tocavam trompas e balançavam pratos de incenso no pátio do monastério, os moradores se acotovelavam para serem abençoados pelos lamas mais velhos.

No monastério de Tawang, importante centro do aprendizado tibetano, os monges expressam apreensão em relação ao domínio chinês sobre o Tibete, que foi dominado pela China em 1951. "Odeio esse governo chinês", disse Gombu Tsering, 70 anos, monge experiente, observando o museu do monastério. "O Tibete nem era parte da China. Lhasa não era parte da China."

Poucos esperam que a China tente anexar Tawang forçadamente, mas disputas militares são um perigo real, afirmam analistas. O exército indiano registrou 270 violações de fronteira e quase 2.300 casos de "patrulha fronteiriça agressiva" por parte de soldados chineses no ano passado, afirmou Brahma Chellaney, professor de estudos estratégicos do Centre for Policy Research, uma organização de pesquisa de Nova Déli. Chellaney já foi conselheiro do Conselho Nacional de Segurança do governo indiano.

"A fronteira da Índia com a China ficou mais 'quente' que a da Índia com o Paquistão", disse ele, por e-mail.

Há dois anos, soldados chineses demoliram uma estátua budista erguida pelos indianos em Bumla, disse Nabam Rebia, membro do parlamento indiano, durante sessão parlamentar.

Tawang se tornou parte da Índia moderna quando líderes tibetanos assinaram um tratado com oficiais britânicos em 1914, estabelecendo uma fronteira chamada de Linha McMahon entre o Tibete e a Índia governada pelos ingleses. Tawang ficava ao sul da linha. O tratado, chamado de Convenção de Simla, é a base da exigência indiana sobre Tawang, mas não é reconhecido pela China. "Reconhecemos o tratado porque estivemos de acordo com ele", disse Samdhong Rinpoche, primeiro-ministro do governo tibetano no exílio. "Se a China concordasse com ele agora, seria reconhecer o poder do governo do Tibete naquela época."

A China foi se tornando cada vez mais hostil em relação ao Dalai Lama depois de um surto de revoltas étnicas no Tibete. Este ano, ela virou suas armas diplomáticas em direção à Índia. Em março, a China bloqueou um empréstimo de US$ 2,9 bilhões para a Índia do Banco de Desenvolvimento Asiático, um grupo baseado em Manila, Filipinas, que possui a China em seu comitê diretor, porque US$ 60 milhões desse empréstimo tinham sido designados a projetos de controle de enchentes em Arunachal Pradesh, o estado onde fica Tawang. O empréstimo foi aprovado em meados de junho, sob protestos fervorosos dos chineses.

"A China expressa uma forte insatisfação, pois isso não pode mudar a existência de imensas disputas territoriais entre a China e a Índia, nem o posicionamento fundamental da China sobre as questões de fronteira com a Índia," afirmou, por comunicado escrito, o porta-voz do ministro das relações exteriores, Qin Gang.

Semanas depois que a China tentou bloquear o empréstimo pela primeira vez, o chefe da força aérea indiana, agora aposentado, contou a um importante jornal do país que a China representava uma ameaça maior que o Paquistão.

Outro oficial, J.J. Singh, governador de Arunachal Pradesh e chefe aposentado do exército indiano, disse, no mês seguinte, que as forças armadas indianas estavam adicionando duas divisões às tropas, totalizando 50-60 mil soldados, para a região de fronteira nos próximos anos. Quatro aviões de caça Sukhoi foram imediatamente dispostos numa base aérea próxima.

Desde 2005, quando o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao visitou a China, os dois países passaram por treze rodadas de negociações bilaterais sobre o assunto. Uma rodada aconteceu há pouco, no mês de agosto, sem resultados. Apesar de a China ter realmente conseguido resolver muitas de suas disputas sobre fronteiras nos últimos anos, a Índia continua sendo uma exceção gritante.

Xiyun Yang contribuiu com a pesquisa em Pequim


Tradução: Gabriela d'Avila