Tenerife: o pior desastre aéreo da história

O nome da ilha espanhola de Tenerife, no arquipélado das Canárias, no Oceano Atlântico, até hoje soa sinistro no mundo da aviação. De fato, foi nessa ilha que ocorreu o maior desastre aéreo da história, 33 anos atrás.

Entre os princípios filosóficos da segurança de voo, existe um que diz que os acidentes aeronáuticos não resultam de um evento isolado, mas sim de uma sequência de eventos, que inexoravelmente conduzem ao acidente. Se um único desses eventos não ocorre, o acidente também não acontece. Esse princípio é claramente confirmado pelo desastre de Tenerife, como veremos a seguir.

A cadeia de eventos que resultou no desastre de Tenerife começa na manhã de um domingo, dia 27 de março de 1977. As ilhas Canárias, graças ao seu clima, são atraentes pontos turísticos para europeus e até mesmo para americanos, e a temporada de verão nas ilhas estava apenas começando. Várias aeronaves se dirigiam às ilhas nessa manhã de domingo, quando o Aeroporto de Gando (hoje denominado Aeroporto de Gran Canária), principal destino dos voos, é abalado pela explosão de duas bombas terroristas plantadas pelo grupo terrorista Movimento Separatista do Arquipélago das Canárias.

Embora os artefatos não tenham causado vítimas fatais, as autoridades fecharam o aeroporto por motivo de segurança, e os voos a ele destinados foram instruídos a seguir para aeródromos de alternativa.
Um desses voos, o KL4805, era procedente de Amsterdam, na Holanda, com 235 jovens turistas holandeses e 14 tripulantes. Era operado por um Boeing 747-206B, matriculado PH-BUF, pertencente à KLM, e alternou o aeroporto de Los Rodeos, na vizinha ilha de Tenerife, pousando às 13 horas e 38 minutos, em boas condições de tempo.

Outro voo, o PA 1736, era procedente de Los Angeles, com escala em Nova York, trazendo 378 passageiros e 16 tripulantes. Ao contrário do voo da KLM, essa aeronave trazia um grupo de turistas americanos idosos. Esse voo era operado por um Boeing 747-121, matriculado N736PA, pertencente à Pan Am, e também alternou o aeroporto de Los Rodeos, pousando às 14 horas e 15 minutos. Assim como o KL4805, o PA1736 era um voo fretado.

Muitas aeronaves alternaram Los Rodeos, mas os dois enormes 747 se tornaram um problema à parte, devido justamente ao seu tamanho. Os dois aviões foram estacionados em um pátio auxiliar localizado próximo à cabeceira 12 da pista, de tal forma que o avião da KLM obstruía a passagem do Jumbo da Pan Am. O caos se instalou no pequeno aeroporto, que não era equipado para atender tantos voos e tantos passageiros ao mesmo tempo.
O Comandante Jacob Van Zanten, da KLM, tinha um problema extra para lidar. Sua tripulação estava regulamentando, com o tempo de jornada prestes a terminar. Se a interrupção do voo durasse muito tempo, eles teriam que que sair para o repouso e o avião necessitaria de outra tripulação para concluir o voo. Essa tripulação teria que vir da Holanda e atrasaria a decolagem em pelo menos mais 12 horas. O avião teria que decolar de Las Palmas para Amsterdam no máximo até as 19 horas. Essa norma, pela regulamentação holandesa, não poderia ser descumprida em nenhuma hipótese, sob pena de responsabilização penal do comandante.

Van Zanten era um piloto bastante experiente. Aos 50 anos de idade, tinha mais de 12 mil horas de voo e era o piloto chefe de equipamento Boeing 747 na KLM. Seu prestígio era tão grande que aparecia nos anúncios da empresa em revistas européias. Ciente de suas responsabilidades, procurou economizar tempo, abastecendo 55 mil litros de querosene em Los Rodeos, o que poderia poupar 30 minutos de solo em Las Palmas. Van Zanten e sua tripulação aguardavam nervosamente a liberação do Aeroporto de Gando, para levar os passageiros, desembarcá-los rapidamente e voar para Amsterdam.

O Comandante Victor Grubbs, da Pan Am, avaliou que o fechamento do Aeroporto de Gando não duraria muito tempo, e evitou, sensatamente, desembarcar seus 378 passageiros, que iriam congestionar ainda mais o pequeno terminal. Grubbs, de 57 anos de idade e mais de 21 mi horas de voo, assumiu o voo a partir de Nova York.

De fato, as autoridades espanholas liberaram o Aeroporto de Gando pouco antes das 17 horas. Grubbs estava bastante impaciente com a situação, e foi informado de que, quando os voos fossem liberados, deveria aguardar a decolagem do 747 da KLM, que obstruía sua passagem. Grubbs chegou mesmo a pedir que seu co-piloto, Robert Bragg, descesse da aeronave e verificasse pessoalmente se não dava para taxiar atrás do Jumbo da KLM. A resposta foi negativa.

Um novo problema se apresenta: as condições meteorológicas se deterioram bastante, e o Aeroporto de Los Rodeos apresenta agora um nevoeiro que restringe a visibilidade a 400 metros. Nevoeiros são constantes no aeroporto em Tenerife, pois o mesmo está em um alto platô, a mais de 2.000 pés de elevação, e ainda tem morros próximos da pista, favorecendo a formação de nebulosidade.

Às 16 horas e 51 minutos, o Comandante Van Zanten, da KLM, obtém autorização para taxiar para a pista 30, então em uso. Faz os cálculos rapidamente e fica nervoso com o horário, terá pouquíssimo tempo para fazer o curto voo até Las Palmas e regressar à Amsterdam. Como as taxiways estão obstruídas com aeronaves estacionadas, o táxi terá que ser feito pela pista de decolagem, até a cabeceira 30, onde a aeronave faria uma apertada curva de 180 graus para se posicionar.

Cai uma fina garoa sobre Los Rodeos. Um dos passageiros do KLM, guia de turismo, resolve permanecer em Tenerife, e o avião parte com 248 pessoas a bordo. É uma decisão que vai salvar a sua vida.

O Comandante Grubbs, da Pan Am, obtem autorização para se movimentar logo a seguir. os controladores querem se livrar logo dos dois jumbos para desafogar o aeroporto. São os dois maiores aviões e os que mais atrapalham. O 747 da Pan Am, asim como o da KLM, também tem que taxiar pela pista principal, de 3.400 metros, mas é orientado a sair da mesma na interseção C-3, afim de se posicionar atrás do 747 da KLM na cabeceira 30. Essa orientação causa uma confusão a bordo do 747 da Pan Am. Além de não ser sinalizada adequadamente, a interseção C-3 é bastante problemática para um avião do porte de um 747, pois obriga o avião a curvar 135 graus duas vezes até que o mesmo ingresse na taxiway 7, paralela á pista principal.
Enquanto o avião da Pan Am taxia lentamente através do nevoeiro, o KLM já está posicionado na cabeceira 30, e o comandante Van Zanten começa a empurrar as manetes 2 e 3 para a frente, sendo imediatamente interrompido pelo seu co-piloto, que diz: - Espere, ainda não temos autorização do ATC. Rispidamente, Van Zanten recua as manetes e responde: - Ok, vá em frente, peça. O controlador calmamente passa a autorização: - Autorizado subida NDB Papa até o nível 090... Antes mesmo do controlador concluir a autorização, Van Zanten empurra as manetes e começa a correr na pista. Seu co-piloto passa pelo rádio a mensagem: - Estamos decolando... sendo respondido pelo controlador: - Ok, eu o chamarei para a decolagem.

Houve, portanto, uma óbvia confusão na comunicação entre o 747 da KLM e o controlador na torre de controle. O controlador não podia visualizar nada do que acontecia na pista, pois o nevoeiro impedia totalmente sua visão da mesma. Pode ter havido confusão devido ao idioma, pois um controlador espanhol falava inglês com uma tripulação americana e outra holandesa.

Para piorar a situação, o 747 da Pan Am passou reto pela interceção C-3 e avançava para sair na C-4, onde precisaria fazer uma curva de apenas 45 graus. O Comandante Grubbs ouviu o co-piloto holandês dizer que estavam decolando, e seu co-piloto imediatamente pegou o microfone e disse: - Nós ainda estamos na pista, Clipper 1736... Infelizmente, essa transmissão se sobrepôs com a última transmissão do controlador para o KLM, e nenhuma dessas locuções vitais pode ser escutada por ninguém. Qualquer uma delas, isoladamente, teria interrompido a decolagem do 747 da KLM.

O Boeing 747 da KLM avança rapidamente pela pista, através do nevoeiro e da garoa fina, enquanto o 747 da Pan Am taxia lentamente para a interceção C-4. O engenheiro de voo da KLM ainda pergunta ao Comandante: - O Pan Am já saiu da pista? O comandante responde: - Oh, sim...

A partir desse momento, o acidente já é inevitável. A inexorável cadeia de eventos chega ao fim, quando Van Zanten avista claramente a silhueta do 747 da Pan Am bem à sua frente, a menos de 500 metros de distância. Puxa vigorosamente o manche para trás, fazendo a cauda do avião se arrastar na pista, fazendo um trilho de fagulhas brilhantes. O avião sai do chão...
A tripulação do Jumbo da Pan Am avista claramente os faróis do avião da KLM. A princípio, pensam que estão parados, mas logo percebem que avançam rapidamente em sua direção. Grubbs empurra as quatro manetes do avião para a frente, de uma só vez, mas a resposta é lenta e o avião tem muita inércia...
Acontece o desastre. Embora tenha decolado, o 747 da KLM não consegue passar acima do avião da Pan Am. Os trens de pouso e motores do avião da KLM invadem a estrutura da fuselagem do jato da Pan Am, partindo a mesma em três grandes pedaços. A grande velocidade, os restos do 747 da KLM caem na pista a cerca de 150 metros do impacto e se arrastam até um ponto pouco depois da interceção C-3, virados de dorso. O impacto ocorreu precisamente às 17 horas, 6 minutos e 56 segundos daquele trágico domingo.
Ambos os destroços são tomados pelo fogo. Não houve testemunhas em terra do desastre, devido ao denso nevoeiro. Apenas um grande estrondo é ouvido em toda a área do aeroporto. Após um momento de hesitação, os controladores acionam os bombeiros, que correm a toda velocidade pela pista. Encontram os destroços do 747 da KLM e ali se detêm. Ignoram ainda que outro avião também foi acidentado e ainda tem sobreviventes a bordo.
De fato, algumas pessoas conseguir escapar dos destroços em chamas do Boeing 747 da Pan Am. São 70 pessoas, incluindo o comandante, o co-piloto, o engenheiro de voo e algumas comissárias. Ninguém está ileso, e nove desses sobreviventes posteriormente vieram a falecer no hospital. O socorro tardio colaborou para essas mortes. A bordo do Pan Am, estavam os 378 passageiros, 16 tripulantes e dois infelizes funcionários da Pan Am que pegaram uma carona para Las Palmas. Apenas 61 sobreviveram. Nenhum dos 248 ocupantes do avião da KLM, incluindo 7 bebês e 48 crianças e adolescentes, sobreviveu. O único sortudo do fatídico voo KL4805 foi o guia turístico que resolveu ficar em Tenerife.
A tarefa de resgatar sobreviventes e corpos foi imensa, muito além da capacidade das autoridades espanholas das Canárias. Havia 583 corpos, e não havia, obviamente, ataúdes para todos. As empresas compraram os mesmos na Grã-Bretanha e trouxeram para Tenerife, onde um grande hangar foi esvaziado para a terrível tarefa de tentar juntar todos os corpos e fazer o reconhecimento de quem pudesse ser reconhecido. Os corpos estavam terrivelmente queimados e mutilados, e o reconhecimento, naquela época possível apenas pelo exame das arcadas dentárias e pelas jóias e relógios que estivessem portando (não existia ainda o exame de DNA), só foi possível para algumas vítimas.

As autoridades deram um prazo de 48 horas para a retirada dos cadáveres, sob pena de sepultarem todos em vala comum em Tenerife mesmo. O reconhecimento dos corpos ainda foi dificultado pela decisão das autoridades espanholas de confiscar todas as jóias portadas pelas vítimas, em um ato que não tem explicação.
O mundo levou um sobressalto tão grande quanto deve ter tido quando houve o naufrágio do Titanic. Duas aeronaves de grande porte, novas (O 747 da Pan Am entrou em operação em 1970, e o da KLM em 1971), em perfeitas condições de funcionamento, se chocam no solo e matam 583 pessoas. É uma desastre inaceitável, mas aconteceu. Aconteceu depois de uma quase inacreditável cadeia de eventos, como bombas no aeroporto, pouso na alternativa, regulamentação de tripulantes, pressa, nevoeiro, decolagem não autorizada, abandono da pista no lugar errado...
Quando a KLM foi informada da tragédia, seus dirigentes pediram às autoridades que entrassem em contato imediato com o maior especialista em segurança de voo da empresa na região. Seu nome? Jacob Van Zanten, o master dos masters e garoto-propaganda da empresa.
Entre os fatores contribuintes do acidente de Tenerife, podemos citar: no fator humano, o Comandante Van Zanten estava com muita pressa, devido ao problema da regulamentação; A meteorologia estava muito ruim, com visibilidade em torno de 400 metros; O jato da KLM iniciou a decolagem sem estar autorizado; O jato da Pan Am saiu na interseção errada; Houve evidentes falhas de comunicação.
Na verdade, há muito mais coisas além disso. Basta pensar que, se nenhuma bomba estivesse estourado no Aeroporto de Gando, nenhum avião iria alternar Tenerife, e a maioria daquelas 583 pessoas ainda estariam alegremente fazendo turismo pelo mundo afora.

Fonte: Cultura Aeronáutica - Por: JONAS LIASCH