Brasil retoma investimentos em defesa para agregar força à diplomacia

Ser porta-voz do chamado mundo em desenvolvimento implica a liderança de um bloco de países ativo e integrado, a salvaguarda dos recursos naturais e a "capacidade de dizer 'não' aos grandes quando necessário", nas palavras do ministro da Defesa Nelson Jobim. Em sua aspiração pela condição de 'global player', o Brasil tem cada vez mais encarado o resguardo dos próprios interesses como etapa essencial para se firmar como ator decisivo nas questões internacionais.

Por "resguardo dos próprios interesses" compreendam fatores que vão do monitoramento do território nacional e suas riquezas à aquisição de tecnologia capaz de conferir desenvolvimento e autonomia ao país. Com mais proteção e menos dependência, aumenta a capacidade de persuasão lá fora.


"É a chamada 'nova diplomacia', na qual os ministérios da Defesa e de Relações Exteriores caminham juntos", explica o jornalista Roberto Godoy, especialista em assuntos militares.

É nesta área que se tem aplicado pesados investimentos, de diretrizes pautadas pela Estratégia Nacional de Defesa (END), decretada pelo governo em fins do ano retrasado - uma espécie de PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) das Forças Armadas. Mais do que reaparelhamento, o plano prevê reformulações institucionais e a retomada da indústria bélica nacional, largada às moscas na década de 1990 depois figurar entre as dez mais importantes do mundo.

'Know-how'
O ponto-chave é a transferência de tecnologia: além de adquirir aparelhos, adquirir o "saber fazer". Tema delicado, porém; uma vez que a disposição de um país de revelar a outro como faz sua própria segurança é conquistada à base de muita negociação, confiança recíproca, alinhamento geopolítico e, obviamente, de uma boa bolada de dinheiro.

No caso brasileiro, a parceria com a França, firmada em dezembro de 2008, é a mais expressiva. A iminente compra de 36 caças Rafale - em meio a polêmicas em relação à concorrência de norte-americanos e suecos - é parte essencial neste acordo.


"A França foi a que mostrou mais condições interessantes, coisa que os outros não ofereceram", avalia o vice-diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Alcides Vaz, especialista em Defesa Nacional. "É uma postura pragmática a do Brasil: a END fala da 'independência no campo tecnológico', e a parceria com a França sinaliza uma perspectiva nessa direção."

Politicamente, o acordo já rendeu a defesa do presidente Nicolas Sarkozy por um assento permanente ao Brasil no Conselho de Segurança na ONU. De efetivo, rendeu a Exército, Marinha e Aeronáutica 51 helicópteros mais modernos e cinco submarinos, um deles nuclear - todos a serem construídos. A tecnologia é francesa, mas a fabricação e a maioria das peças serão brasileiras - assim como a propulsão do equipamento nuclear. É um novo horizonte que se abre às cerca de 300 empresas bélicas nacionais, direta ou indiretamente no ramo.

Além renovar arsenal e frota e de aumentar a variedade e a qualidade dos produtos que pode exportar, o país pretende assentar caminho para a cooperação regional. Os sul-americanos gastaram US$ 50 bilhões em defesa em 2008 e, desde 2003, vêm investido intensamente em tecnologia militar. Assim, o Brasil, além de fomentar a integração, reforça também seu papel de conciliador nas tensões mais proeminentes, como as que envolvem Colômbia, Equador e Venezuela.

Papel esse que recentemente ganhou novos contornos no Haiti, onde a presença brasileira à frente da missão da ONU para a estabilização política se voltou para a reconstrução do país, devastado pelo terremoto no começo do ano. O efetivo foi dobrado. Há, também, uma certa queda-de-braço com os norte-americanos, acusados de levar ingerência político-militar junto com ajuda humanitária.

Na busca pela cadeira no Conselho de Segurança, qualquer deslize brasileiro na missão em terras haitianas pode ser fatal. "Além das missões de paz, o Brasil precisa ainda se preparar para missões de imposição da paz e integrar coalizões", observa Roberto Godoy.

Patrimônio
País de dimensões continentais, o Brasil ocupa quase a metade de toda a América do Sul: são cerca de 8.500.000 quilômetros quadrados de extensão territorial e 4.400.000 de superfície marítima; 16.886 quilômetros de fronteiras terrestres e mais 7.367 de litoral. Uma vastidão de recursos naturais, da qual o exemplo mais recente é a descoberta de gigantescas camadas de petróleo no fundo do mar, o chamado pré-sal.

Os biomas são cinco, e um deles é motivo de atenção redobrada em razão de sua riqueza imensa e relativamente pouco conhecida em razão das próprias dificuldades de cobertura: a Amazônia. Calcanhar-de-aquiles para muitos militares, o controle da área acirra ânimos, exorta nacionalismos contra 'invasões estrangeiras' e suscita disputas internas como, por exemplo, as entre ambientalistas e ruralistas. É assunto prioritário na Estratégia Nacional de Defesa, que prevê a ampliação e o reposicionamento de tropas nas áreas de fronteira.

O monitoramento da região, feito pelo Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), é alvo de constantes críticas em função da defasagem dos aparelhos e do uso de imagens de satélites estrangeiros, o que poria em risco a soberania brasileira sobre a área. A própria END deixa claro o entendimento do país sobre o assunto, ao afirmar que "quem cuida da Amazônia brasileira, a serviço da humanidade e de si mesmo, é o Brasil".

Controle civil
A efetivação, porém, dos planos e mudanças em defesa nacional tem um caminho arenoso a ser percorrido, ainda mais por se tratar de um setor culturalmente centralizador e de certa aversão à subordinação a civis - o próprio Exército, no ano passado, não se furtou a criticar o fortalecimento do Ministério da Defesa, por meio do END, em detrimento dos comandos das três Forças Armadas.

"Não há como negar que o Brasil avançou muito desde a criação do Ministério da Defesa", pontua o professor Alcides Vaz. "Mas há ainda pequenas questões que têm a ver com essa cultura institucional burocrática e de muita autonomia".

Outras nem tão pequenas. Mais recentemente, a resistência das Forças Armadas contra a investigação dos crimes cometidos "no contexto da repressão política", uma referência direta feita pelo texto do Plano Nacional de Direitos Humanos à ditadura instaurada em 1964, escancarou como o governo pisa em ovos ao lidar com o setor.

Na queda-de-braço com os elaboradores do plano, os militares levaram a melhor. Na base do grito, conseguiram a substituição do termo "contexto da repressão política", que os botava contra a parede, por algo mais abrangente, como a investigação das violações de um modo geral.

Cedeu-se de um lado na tentativa de se avançar em outro. Pragmático, o governo avaliou que compensava o ônus político de mais um dissabor aos setores que tentam passar a limpo um dos períodos mais nefastos da história recente do país. Na busca obstinada do Planalto para se atingir objetivos prioritários, como a consolidação regional e a autonomia internacional, não se abre mão do poder estratégico de Forças Armadas revigoradas - mesmo que pagando um preço bastante elevado por isso.

Por Danilo Almeida, especial para o Yahoo! Brasil