A aparência do anfitrião não era boa. O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, estava “com bandagens e machucado após o ataque de dezembro”, notou David Thorne, o embaixador americano em Roma, em um despacho enviado para Washington. Thorne visitou Berlusconi em sua casa de campo na Lombardia no Ano Novo de 2010, apenas duas semanas após um homem com problemas mentais ter atacado o rosto do líder italiano com uma estatueta, durante uma visita a Milão.
A visita do americano aparentemente alegrou o primeiro-ministro italiano. Berlusconi mostrou sua casa suntuosa ao seu visitante. No cabograma descrevendo a visita, o diplomata americano notou com satisfação que Berlusconi não pediu nenhum favor aos Estados Unidos. Estava claro, escreveu Thorne, que o líder italiano queria ser um bom parceiro dos americanos.
Mas a visita harmoniosa foi interrompida de modo inesperado. O telefone tocou: o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, queria falar com Il Cavaliere.
Ele se despediu rapidamente do americano. O russo era mais importante.
‘Predileção por festejar’
O memorando após a visita indicava o relacionamento complicado que os americanos têm com o homem mais poderoso da Itália. Eles acreditam que ele é pró-americano, mas descrevem seu relacionamento com ele como “complexo” e seu estilo de liderança como “heterodoxo”.
“Escândalos sexuais, investigações criminais, problemas familiares e preocupações financeiras parecem pesar muito na saúde pessoal e política de Berlusconi, assim como em sua capacidade de tomar decisões”, eles escrevem. Um cabograma relata que Berlusconi cochilou brevemente durante a visita de apresentação do embaixador americano. “Ficar acordado até tarde e a predileção por festejar significa que ele não descansa o suficiente”, o embaixador informou a Washington.
Mas um fator em particular arranha o relacionamento: o estranho fascínio de Berlusconi por Putin. A esposa e a filha do russo visitam Berlusconi com frequência. Bolo de morango e peixe-espada estão presentes no cardápio da casa de campo quando elas estão lá, e Putin telefona para lhes desejar bom apetite.
Berlusconi, por sua vez, fica feliz em ir às festas de Putin, certa vez até mesmo reagendando um encontro com o rei da Jordânia, Abdullah 2º, para isso. “Berlusconi (...) inevitavelmente deixa a impressão de que ao escolher a diversão particular acima dos deveres de Estado, estava guardando forças para a grande festa na dacha particular de Putin”, notou o diplomata americano. Desde que as revelações sobre seus excessos anteriores vieram à tona, festas selvagens na Itália se tornaram arriscadas demais para Berlusconi, especularam os americanos.
No início de 2009, o relacionamento russo-italiano foi tema de um memorando de nove páginas de autoria do então embaixador americano na Itália, Ronald Spogli. “Berlusconi acredita que Putin é um amigo pessoal próximo e continua tendo mais contato com Putin do que com qualquer outro líder mundial”, ele escreveu. O líder italiano, escreveu Spogli, admira o estilo macho de governar de Putin e vê em seu amigo russo um “companheiro magnata”.
Teorias de conspiração
Este eixo russo-italiano não é do interesse dos americanos. Por Berlusconi ter negociado condições generosas para a gigante italiana de petróleo e energia, ENI, junto à empresa russa Gazprom, e por ele geralmente apoiar projetos de energia russos, em vez dos projetos de países ocidentais, os americanos veem seus interesses em energia ameaçados.
Diplomatas americanos acreditam que Berlusconi é imune à influência política. Ele geralmente toma sozinho as decisões ligadas à Rússia, e os diplomatas italianos raramente são autorizados a se envolver. Quando o ex-vice-presidente americano, Dick Cheney, perguntou a respeito das relações russo-italianas, o ministro das Relações Exteriores italiano, Franco Frattini, aparentemente apenas deu de ombros –ele pessoalmente não tinha nada a dizer a respeito da Rússia.
É apenas uma simples questão de amizade? É uma pergunta que atormenta os diplomatas em Washington, os deixando suscetíveis a muitas teorias de conspiração não provadas. Em um despacho, o embaixador Spogli documentou essas suspeitas. Políticos italianos e diplomatas estrangeiros falam de um acordo entre Putin e Berlusconi, ele escreveu.
“Eles acreditam que Berlusconi e seus comparsas estão pessoalmente lucrando alto com muitos dos acordos de energia entre Itália e Rússia”, escreveu Spogli. “O embaixador georgiano em Roma nos disse que o governo georgiano acredita que Putin prometeu a Berlusconi um percentual dos lucros de quaisquer gasodutos desenvolvidos pela Gazprom em coordenação com a ENI.”
A figura-chave nesta teoria é Valentino Valentini, um parlamentar italiano que é o conselheiro mais importante de Berlusconi para a Rússia. A “figura um tanto obscura” fala russo e viaja para a Rússia várias vezes por mês, segundo Spogli. Ele frequentemente está presente ao lado de Berlusconi. “Não se sabe o que ele faz em Moscou durante suas visitas frequentes, mas os rumores são de que cuida dos interesses de negócios de Berlusconi na Rússia”, escreve Spogli.
‘Produto de fantasia’
Não se sabe quem é a fonte dessas afirmações. A Geórgia certamente tem interesse em denegrir a Rússia. Quando contatado pela “Spiegel”, o governo georgiano negou possuir qualquer informação e disse não ter sido a fonte. O gabinete de Berlusconi disse que as acusações contra Valentini e Berlusconi são “produto de fantasia e sem fundamento”. O gabinete de Putin emitiu uma declaração para a “Spiegel”, dizendo que as acusações são “completamente sem base”. É “absurdo e malicioso acusá-los de terem interesses particulares”, disse a declaração.
Mas Washington parece interessado em pelo menos investigar os rumores. Em janeiro, o Departamento de Estado americano pediu às embaixadas americanas em Roma e Moscou para reunirem “qualquer informação sobre o relacionamento pessoal” entre Putin e Berlusconi, assim como informação sobre “investimentos pessoais” que possam influenciar suas políticas. O pedido foi assinado pela secretária de Estado americana, Hillary Clinton.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por sua vez, concedeu bastante tempo ao líder italiano em uma audiência em Washington. Durante sua visita à Europa no início de 2009, ele o ignorou.
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