A diplomacia é feita de gestos públicos, rigorosamente ensaiados, além de uma penca de encontros sigilosos e contatos privados. Expor os segredos que levaram aos gestos públicos pode ter consequências desastrosas. Foi o que aconteceu na semana passada quando a ONG WikiLeaks despejou na internet mais de 250 mil telegramas diplomáticos dos Estados Unidos. A divulgação de documentos recheados de intrigas, críticas e lobbies abalou o mundo inteiro e feriu seriamente a política externa americana. No meio de toda esta confusão, Brasília também foi atingida em cheio. Os telegramas vazados revelaram inconfidências cometidas por autoridades locais e apreciações poucos lisonjeiras de diplomatas americanos sobre questões brasileiras. O resultado é que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, que já não andavam muito bem, esgarçaram de vez. “Estão desnudando a sabedoria dos EUA”, reagiu o presidente Lula. “Todo mundo pensava que os americanos eram melhores que os outros e você percebe que eles fazem as bobagens que todo mundo faz”, afirmou.

Para se defender, o governo americano tratou de condenar com veemência o WikiLeaks. A secretária de Estado, Hillary Clinton, disse que a iniciativa do site foi uma “sabotagem nas relações pacíficas dos EUA com outros países”. As críticas do Departamento de Estado não são apenas muxoxos de gente que teve seus interesses contrariados. A fronteira entre os benefícios da transparência e a divulgação de informações capazes de pôr em risco a frágil estabilidade da comunidade internacional, a vida de pessoas ou transações comerciais lícitas é mais que um debate teórico. Quando apenas um lado dos interesses em determinada questão é divulgado, os demais acabam inevitavelmente favorecidos. É o caso, por exemplo, dos documentos que detalharam a localização de armas nucleares táticas americanas na Europa. A revelação beneficiou os possíveis – e agora também agradecidos – adversários da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). “A atitude foi ilegal, irresponsável e perigosa”, reclamou a Otan. Para incrementar ainda mais os debates em torno da legitimidade dessas ações, na semana passada, o site também provocou estragos no mundo corporativo, servindo a movimentos especulativos de mercado. A informação de que o Bank of America, o maior banco dos Estados Unidos, seria o próximo alvo do WikiLeaks fez as ações da instituição desabarem nas bolsas.
No Brasil, o rombo diplomático do WikiLeaks causou mais constrangimentos do que problemas concretos. Vários telegramas referiam-se ao ministro da Defesa, Nelson Jobim, classificado pelo ex-embaixador americano em Brasília, Clifford Sobel, como uma fonte segura de informações. Em almoços e jantares com diplomatas, segundo várias mensagens, Jobim fez comentários pouco comuns sobre países vizinhos e não poupou colegas de governo. Teria comentado, por exemplo, que o presidente da Bolívia, Evo Morales, sofreu um “grave tumor” na região do septo nasal (La Paz já negou o problema). Também teria criticado o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães. “Ele odeia os Estados Unidos”, disse Jobim, conforme o relato de Sobel. Irritado com a declaração, Guimarães telefonou para Jobim, que imediatamente publicou uma nota negando o episódio. Não era necessário.O antiamericanismo do embaixador aposentado é notório e foi tema de outras mensagens, que igualmente citam o chanceler Celso Amorim.


O conteúdo dos telegramas sobre antiamericanismo, de meados de 2007, coincide com a polêmica saída do embaixador brasileiro Roberto Abdenur de Washington. Ao deixar o posto, o diplomata fez críticas públicas à cúpula do Itamaraty por conta dos problemas na relação com os EUA. “Era uma coisa flagrante e os americanos perceberam isso. Eu mesmo fui alvo de fogo amigo”, disse Abdenur à ISTOÉ. O diplomata aposentado avalia que o vazamento desses telegramas poderá abalar a confiança bilateral. Menos pessimista, um diplomata que trabalha na Presidência diz que a ideia do governo é minimizar a confusão. Dependendo do impacto, o funcionário acredita que a agenda de visitas bilaterais com os EUA poderá sofrer apenas um “ligeiro adiamento”, o que significa a suspensão das visitas oficiais pelo menos durante o primeiro semestre do governo de Dilma Rousseff.

Além de Jobim, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Jorge Félix, foi outro personagem graúdo alcançado pelas revelações do WikiLeaks. Embora o Brasil não se alinhe à guerra do terror dos EUA, o general brasileiro seria muito cooperativo com os americanos nesta área. Num almoço em 4 de maio de 2005, segundo um telegrama, Félix teria confidenciado ao então embaixador americano, John Danilovich, que o governo faz recrutamento informal de árabes moderados como informantes de possíveis atividades terroristas, especialmente em São Paulo e Foz do Iguaçu. Felix explicou a Danilovich que as operações antiterror deviam ser mantidas em segredo ou maquiadas para evitar a “estigmatização” da “orgulhosa e bem-sucedida” comunidade árabe no País. “Frequentemente, a Polícia Federal prende pessoas ligadas ao terrorismo, mas os acusa de uma variedade de crimes não relacionados ao terrorismo”, relata um dos telegramas da embaixada.
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Assessores diretos do presidente Lula dizem que ele não ficou nada satisfeito com os comentários de Jobim, Félix e muito menos dos diplomatas brasileiros em Paris que abasteceram os americanos com bastidores de encontros com o presidente da França, Nicolas Sarkozy.Um telegrama de 2007 revelou que, de acordo com impressões de diplomatas brasileiros, o primeiro encontro dos presidentes Lula e Sarkozy marcou o início de uma “história de amor”. “Diplomatas brasileiros notam que os dois homens têm personalidades muito parecidas e que Lula com frequência diz que, quando olha Sarkozy, é como se estivesse olhando no espelho”, informa o embaixador Charles Rivkin. Em outro documento da embaixada americana em Paris, o diplomata prefere apontar motivo diferente para a afinidade entre o Palácio do Planalto e o Champs Elisées. “Nós julgamos que Sarkozy se aproveita totalmente da popularidade individual de Carla Bruni e da popularidade do casal para fazer avançar os interesses da França no Brasil”, escreve o embaixador.

A suposição de que o País é tolo e despreparado surge em vários outros momentos da correspondência dos diplomatas dos EUA. Sobel chama de “elefante branco” o submarino de propulsão nuclear que a Marinha brasileira comprou da França para proteger o pré-sal. Diz que o governo não explicou de onde sairá o dinheiro para o reaparelhamento militar e ironiza a “tradicional paranoia brasileira” de invasão da Amazônia por potências estrangeiras. Dos quase dois mil documentos sobre o Brasil obtidos pelo WikiLeaks, até agora pouco mais de uma dezena foi divulgada. E pelo visto – e pelo tom presunçoso das análises da diplomacia americana – muito estrago ainda pode vir pela frente.

WikiLeaks, o bisbilhoteiro

O objetivo do WikiLeaks é vazar documentos reservados. Fundado em 2007 na Suécia por ciberativistas, o site é uma ONG com mais de dois mil voluntários, a maioria jornalistas que recebem materiais secretos inéditos, censurados ou restritos por governos e empresas. A veracidade das informações é checada e depois elas são distribuídas a veículos de comunicação. A organização sobrevive de contribuições de ativistas e das empresas de notícias que recebem os textos com exclusividade. O site ganhou notoriedade no início do ano, quando divulgou milhares de documentos do Exército dos EUA que revelaram a morte de civis na guerra do Afeganistão. Coordenado pelo australiano Julian Assange, o WikiLeaks utiliza técnicas de hackers para manter o anonimato das fontes, preservar a segurança das informações e se defender dos inevitáveis ataques virtuais de agências de segurança do mundo todo. Acusado pelos EUA de terrorismo, Assange vive dias de clandestinidade, já que a Interpol resolveu buscá-lo com base em denúncias que o envolvem em supostos crimes de estupro e agressão sexual. Nos últimos dias, a página na internet do WikiLeaks sofreu diversos ataques de hackers.

Fonte: ISTO É