O brigadeiro Jorge Kersul Filho, que até 2010 chefiava todas as
investigações de acidentes aéreos no Brasil, contou pela primeira vez,
em detalhes, o que viu e o que levou em conta durante as tragédias da
Gol, da TAM e da Air France que, em um curto período - de 2006 a 2009 -
causaram juntas 558 mortes.
Em sua primeira entrevista desde que deixou o comando do Centro de
Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), em abril de
2010, Kersul defendeu, em entrevista exclusiva ao G1, que seja criada
uma nova agência para apurar as tragédias aéreas. Desta vez, fora das
mãos dos militares.
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“A investigação de acidentes da aviação civil deve sair da Força Aérea
Brasileira. Esse é um encargo que ninguém quer, não traz benefício
algum, não traz nenhum ibope, não há por que ficar com a FAB. Vamos
continuar fazendo bem e de forma independente enquanto estiver conosco a
obrigação, doa a quem doer. A FAB deveria cuidar da própria FAB, para
que sejamos realmente um país que imponha respeito”, afirmou Kersul, na
entrevista concedida em sua casa, em Brasília.
Pela proposta, seria criada uma agência destinada à prevenção e à
investigação de acidentes da aviação comercial civil empregando
ex-militares que já atuaram no Cenipa e que poderiam, no início, treinar
pessoal qualificado para continuar o trabalho. “Eu não acho que os
militares devam continuar com essa responsabilidade. Quando eu estava no
Cenipa, fizemos uma proposta para criar esse órgão e a tarefa sair do
comando da FAB. A ideia foi para o Ministério da Defesa e deve estar
lá”, diz o oficial.
Para ele, a diferença hierárquica atrapalha o relacionamento entre os
órgãos que atuam hoje no sistema aéreo e é o principal motivo que
explicaria a investigação de tragédias da aviação civil deixar de ser
atribuição do Cenipa.
“Até a década passada, tudo relacionado à aviação no país estava com o
Ministério da Aeronáutica. O Estado brasileiro tirou da gaveta uma
agência para a aviação civil, a Anac. A Infraero (empresa que administra
os aeroportos) também saiu debaixo da Aeronáutica. Foi criada a
Secretaria de Aviação, com status de ministério, enquanto que o Cenipa é
um órgão dentro do Comando da FAB que está subordinado ao Ministério da
Defesa. Há uma diferença de estrutura que gera um conflito”, aponta.
Histórias
Kersul passou para a reserva em abril, a seu pedido. Deixou a
Aeronáutica levando na memória as dificuldades enfrentadas para a
retirada da mata dos corpos das 154 vítimas de um Boeing da Gol, que
caiu em Mato Grosso em 2006, as buscas pelas caixas-pretas de um Airbus
da TAM, que explodiu ao sair da pista em Congonhas (SP), deixando 176
mortos em 2007, e a tarefa de localizar outro Airbus, agora da Air
France, que desapareceu no mar em 2009, com 228 pessoas a bordo.
O brigadeiro da FAB Jorge Kersul Filho esteve à frente do Cenipa quando ocorreram
as maiores tragédias na aviação brasileira - Foto: Tahiane Stochero/G1
“Receber a notícia de que houve um acidente de grandes proporções é
realmente uma sensação muito desagradável, o pior pesadelo de quem
trabalha no Cenipa. Você tem que manter a calma, respirar fundo e
raciocinar rápido, fazer o que deve ser feito”, diz ele.
O oficial conta que “é perseguido” por familiares de vítimas do voo Gol
1907, que o acusam do suposto sumiço de pertences na floresta e de ter
entregue partes do Legacy para a empresa após perícia. Ele diz que
cumpriu a legislação e a devolução ocorreu só três anos após a colisão,
porque ninguém queria os equipamentos. "Os dados foram preservados",
afirma o brigadeiro.
“Quando ocorre um acidente, quem vai ser punido e criticado é o
responsável pelo órgão investigador e o responsável pelo resgate, que
passou 50 dias na mata procurando todos os corpos? E eu me pergunto:
valeu? No fim das contas, eu ainda diria que valeu à pena (o trabalho)”.
Kersul diz que a decisão de deixar a Aeronáutica ocorreu após uma
avaliação da carreira, levando em conta a família e o que já havia feito
como militar.
“Fiz um levantamento da minha vida e decidi que deveria procurar outros
rumos. Levantei fatores que poderiam contribuir para que eu continuasse
ou não (na FAB), como idade, perspectiva de vida, vontades, a aviação,
que eu sempre gostei. Completei 40 anos de casa, vejo isso com
naturalidade. Não briguei com ninguém e não estou saindo da FAB, apenas
deixando o serviço ativo”, explica.
Acusações na tragédia da Gol
Dos três acidentes, o da Gol é o que mais lhe marcou, principalmente
porque um familiar acusou a Aeronáutica do sumiço do celular de uma
vítima. Segundo Kersul, o parente afirmou a ele que o aparelho chegou às
mãos de uma pessoa que conserta celulares, no Rio de Janeiro, dois dias
após a tragédia. Pela versão do familiar, o celular teria sido desviado
por um militar da Aeronáutica.
Nas horas vagas, Kersul cuida de uma horta nos fundos de sua casa
Foto: Tahiane Stochero/G1
“Comandei as buscas pelos corpos na mata até que o último fosse
encontrado: o senhor Marcelo Paixão, que estava na poltrona 17C. Já
tínhamos retirados todos e só faltava ele. Insistia com o IML que ele
devia estar lá, mas ainda não havia sido identificado. Mesmo tendo sido
assessorado de que não era obrigação nossa, por ordem minha, até que
achássemos o último corpo, passaríamos a recolher objetos que
encontrássemos na nossa frente. Mas essa não era nossa obrigação”,
relembra.
Dos cerca de 7 mil kg que estavam a bordo, foram retirados da mata 1.650
kg. “A FAB foi lá resgatar corpos. Carga é responsabilidade do
operador. Infelizmente, uma parte dos familiares nos cobra isso e não se
lembra de que fizemos algo em favor deles. Quem conhece a Amazônia sabe
as dificuldades. É difícil você passar o que passou e ver o trabalho
jogado no lixo”, diz.
Brigadeiro chorou durante a CPI do Apagão Aéreo,
em 2007, após as críticas de que
militares haviam
roubado pertences de vítimas - Foto: TV Senado
Durante a CPI do Apagão Aéreo, em 2007, Kersul chorou ao ser acusado de
ter desviado pertences das vítimas. Diz ter pedido à inteligência da FAB
para investigar o caso, mas que, como os parentes não passaram
informações, a apuração não pôde ser levada adiante.
“Como você pode fazer uma investigação se não tem nenhuma coisa palpável
para começar. Hoje eu sou cobrado por não ter aberto nenhum processo
administrativo. Ficamos de mãos atadas (na época)”.
Para o brigadeiro, nenhum militar “foi para lá roubar ou pilhar os
corpos”. “Defenderei sempre que nenhum de nós teve participação nisso.
Ninguém saiu da mata até 10 dias após a queda. É impossível esse celular
estar no Rio dois dias depois. Esse celular é um mistério para mim.
Será que esse celular embarcou neste avião?”, questiona.
Fatos sem explicação
Na CPI, outro parente perguntou a ele por que faltava um cartão de
crédito na carteira de uma vítima. “Eu não soube explicar isso a ela, da
mesma forma que eu não consigo explicar como, em uma árvore de 40
metros de altura, tinha só uma calça pendurada com um celular
funcionando dentro. Eu também não consigo explicar como dois aviões
conseguem se encontrar a 11 mil metros numa aerovia com pouco
movimento”, desabafa.
“Se tivéssemos que imaginar uma colisão em voo, nunca seria em cima da
Amazônia, em uma a aerovia de tráfego normal, com dois aviões novos, com
poucas horas de voo, e muito próximas da perfeição em termos de
construção”, acrescenta.
Então, quem errou? A culpa é dos pilotos do Legacy, que desligaram o
transponder (localizador) e não evitaram a colisão? “Não existe um ator
responsável, nem quem e nem o que errou. Na investigação, trabalhamos
com fatores contribuintes. Há uma sequência de eventos que levam ao
acidente porque não houve nenhuma barreira forte o suficiente para
impedir que esse ela seja interrompida”, diz.
Para Kersul, a tripulação do Legacy não colocou propositadamente o
transponder em “stand-by” (posição de aguardo). “Em algum momento o
transponder foi para essa posição, colocado propositalmente ou
involuntariamente e voltou a operar normalmente imediatamente logo
depois da colisão". Ele lembra uma frase da própria tripulação do Legacy
ao religar o transponder logo após a choque com o Boeing da Gol: "É
exigir demais do transponder que ele funcione se está em posição de
espera”.
O brigadeiro afirma que os americanos poderiam ver na tela, em mais de
um lugar, que o transponder estava desligado. “E isso não foi observado
por eles”.
O oficial também pontua uma falha no controle de tráfego aéreo, que
“deixou de observar no radar que havia deixado de receber a informação
do transponder” e que poderia ter acionado os pilotos para verificar se
havia alguma falha no instrumento.
Colisão em Congonhas
O brigadeiro recorda que o Cenipa previu que um acidente poderia ocorrer em Congonhas meses antes da tragédia do TAM JJ 3054.
Após receber vários relatos de aeronaves que quase saíram da pista, ele
convocou uma reunião com empresas aéreas e órgãos envolvidos na operação
do aeroporto, em Brasília, na semana entre o Natal e o Ano Novo de
2006, após o acidente da Gol.
“Alertamos na reunião que um tínhamos um cenário de que um acidente iria
ocorrer em Congonhas e restringimos as operações”, lembra.
A pista passou por reformas, foi liberada, mas continuava escorregadia,
com formação de poças de água e risco de derrapagem, conforme relatos de
informe de risco realizados por pilotos na época.
“Quando ocorreu o acidente, fomos duplamente frustrados. Acreditávamos
que tínhamos conseguido evitar um acidente que tivesse envolvimento da
pista, mas mesmo assim o acidente ocorreu após a reforma, sem
interferência direta da pista”, diz. “Imagina como isso foi triste para
todos nós”.
Segundo Kersul, apesar de um dos manetes ter sido mantido na posição de
aceleração durante o pouso (como ficou registrado nas caixas-pretas), a
pista pode ter contribuído como fator psicológico e também para “o
agravamento” do caso.
“Congonhas é um verdadeiro porta-aviões dentro da cidade. Outros
acidentes do mesmo tipo não tiveram um final tão trágico porque a
aeronave parou na lama ou em um campo. Mas em todas as simulações
feitas, se fossem mantidos todos os fatores, aquela aeronave iria sair
da pista em qualquer aeroporto”.
Julgamentos
Kersul lembra que, quando o Airbus da Air France desapareceu no Oceano
Atlântico, a Aeronáutica iniciou os trabalhos de busca e localização até
que o acidente, que deixou 228 mortos em 1º de junho de 2009, fosse
confirmado. Apesar de críticas dos familiares de que a atuação
brasileira foi coadjuvante no caso, ele afirma que o Brasil cumpriu a
legislação internacional que determina que, se a aeronave se acidentou
em águas internacionais, “a responsabilidade de investigar o caso cabe
ao operador, ao fabricante e ao país da bandeira da aeronave. Nesse
caso, todos indicavam a França”.
Brasil iniciou buscas por Airbus da Air France que caiu no
Oceano Atlântico em 2009
Foto: Marinha/Divulgação
“O Brasil não teve o papel de coadjuvante ou de ator principal, mas teve
a participação que lhe cabia, iniciando as apurações no Recife,
coletando as informações iniciais para a França. Estamos fazendo o que é
nossa parte pela legislação internacional. O responsável por fazer essa
investigação é o estado francês”, afirma.
Após todas as tragédias que acompanhou, ele defende que seja
regulamentada uma lei nacional para que as informações obtidas pela
apuração não sejam usadas nos tribunais com fins criminais ou de
responsabilização civil, como a busca por indenizações. Nesta
quarta-feira (27), um evento com familiares de vítimas de acidentes
aéreos, investigadores do Cenipa, juízes e Ministério Público debaterá
em São Paulo um projeto de lei que trata da questão.
"A investigação do Cenipa é para prevenção. Não concordamos que nossos
relatórios sejam usados para fins jurídicos. É um problema difícil, que
as pessoas não entendem, mas o prejuízo é enorme, pois os envolvidos
deixam de colaborar com medo de que, o que nos falam, seja usado contra
eles”, diz.
“Ninguém quer que o relatório do Cenipa seja secreto. Só pedimos que ele
não seja usado em julgamentos. Nossa investigação é imparcial com o
único objetivo de evitar mais acidentes. A investigação da polícia é que
tem que achar responsabilidades e culpados e deve ser usada nos
tribunais, e não a nossa”, rebate.
Fonte: Tahiane Stochero (G1, em Brasília) - Via: noticias Sobre Aviação
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