Essa é a média de
armas pesadas apreendidas no Rio de Janeiro. o destaque é o russo AK-47.
O ingresso desse arsenal expõe a fiscalização frágil nas fronteiras
O fuzil automático Kalashnikov modelo
1947 é considerado a arma mais letal do mundo. Estima-se que 250 mil
pessoas sejam mortas por ano, nos mais diversos conflitos ao redor do
planeta, por um AK-47, sigla pela qual o fuzil de fabricação russa é
internacionalmente conhecido. Pesa menos de 4 quilos, tem alcance de 400
metros e, nas mãos de um atirador hábil, pode disparar até 600 tiros
por minuto. No Rio de Janeiro, em 2012, quatro anos após o início da
implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, o AK-47, uma
arma de guerra, ainda é o preferido dos traficantes.
Eles não são mais exibidos sem cerimônia
por criminosos nos labirintos das favelas, como imagens de TV costumavam
registrar até bem pouco tempo atrás. Mas um levantamento realizado pela
Secretaria de Segurança Pública do Rio, obtido com exclusividade por
Época, revela como o poder de fogo nas mãos dos bandidos permanece
altíssimo. Trata-se de uma ameaça latente à sensação de segurança com
que os cariocas começaram a se acostumar. De janeiro ao dia 19 de julho
deste ano, foram apreendidos 162 fuzis pela polícia do Rio. Quase um
fuzil por dia. Se a esse número forem somadas metralhadoras e
submetralhadoras, a média ultrapassa um por dia, alcançando 240 armas.
As apreensões mais recorrentes são de AK-47.
De 2008 para cá, foram inauguradas 27
UPPs, em áreas que concentram 307 mil moradores. A cada ocupação de
favela que precede a instalação de uma Unidade Pacificadora, dezenas,
senão centenas, de armas são apreendidas, como ocorreu no Complexo do
Alemão, em 2010, e na Rocinha, no fim do ano passado. Mas o arsenal
parece não ter fim - ou continua a ser renovado. De 2007 a 2011, foram
apreendidos em média 18,7 fuzis por mês no Rio. Neste ano, a estatística
aumentou para 24,9 fuzis, mesmo sem nenhuma ocupação de grande porte de
favelas.
A cúpula da Secretaria de Segurança do
Rio avalia que a tendência é a redução na quantidade de armas em poder
dos traficantes nos próximos anos. Por duas razões. Primeiro porque, à
medida que a instalação de UPPs avança, mais armas hoje escondidas nas
favelas serão retiradas de circulação. Depois, pela questão territorial.
O emprego do fuzil se dá, sobretudo, para proteger a favela de uma
facção rival ou para invadir a área de outro traficante. Com a retomada
do controle das favelas pelo Estado, essa disputa territorial entre os
criminosos tende a acabar ou a ficar restrita a regiões mais distantes
da cidade. Esse armamento pesado também serve para assaltos e para
tiroteios com a polícia em operações nas favelas, como ocorreu em 23 de
julho. Naquele dia, uma policial foi morta no Complexo do Alemão por um
disparo de fuzil, em meio a um confronto com bandidos, quando corria
para tentar se abrigar na sede da UPP local. É esse tipo de situação que
atormenta a Secretaria de Segurança Pública do Rio. Apesar de muito
armamento pesado ter sido apreendido nos últimos anos, o contrabando de
fuzis para as favelas da cidade não cessou. Trazidas principalmente de
países vizinhos, essas armas costumam cruzar as fronteiras brasileiras
por terra, escondidas em meio a vários tipos de mercadoria, inclusive
drogas. Ao longo de uma investigação de mais de um ano, concluída em
maio, a Polícia Federal (PF) apreendeu 29 fuzis com uma quadrilha em São
Paulo. Segundo a área de inteligência da PF, parte desse armamento,
trazido do Paraguai, abasteceria os morros cariocas.
Enquanto essas armas foram interceptadas
pela PF, encarregada de combater o tráfico de drogas e armas nas
fronteiras, muitas outras entraram no país e chegaram às favelas
fluminenses. Dos cinco modelos de fuzis mais apreendidos pela polícia no
Rio, quatro são de fabricação estrangeira e não são usados pelas Forças
Armadas brasileiras. O secretário de Segurança Pública do Rio, José
Mariano Beltrame, defende maior integração entre municípios, Estados e
União no combate à violência. Egresso da PF, ele ressalta a importância
da fiscalização nas fronteiras. "O fuzil automático é o problema número
um do Rio de Janeiro. Se não tivéssemos arma automática aqui, a situação
seria outra. A gente tem a arma automática aqui porque há facções
criminosas que se odeiam e lutam entre elas. Agora, essa arma não é
feita no Rio de Janeiro nem no Brasil. Vem de fora do país", disse
Beltrame a Época. "O país tem uma fronteira imensa, conheço o esforço
que a Polícia Federal faz. Mas é preciso analisar a segurança na
fronteira."
Nos últimos anos, a atenção dada
pelo Palácio do Planalto às fronteiras tem ficado mais no discurso do
que na prática. Um dos exemplos do descaso com o tema foi o abandono do
projeto dos Veículos Aéreos Não Tripulados (Vants). Depois de investir
R$ 73 milhões nos aviões que rastreariam com câmeras a entrada de drogas
e armas no Brasil, o governo recolheu ao hangar a única aeronave que
estava em operação, em São Miguel do Iguaçu, no Paraná, como Época
revelou semanas atrás.
Se o armamento continua a chegar, o jeito
é tirá-lo de circulação. A Superintendência da PF no Rio tem feito um
trabalho de inteligência, em cooperação com a Secretaria de Segurança
Pública do Estado, para localizar drogas e armas com grande poder de
fogo. No mês passado, um grupo de 200 policiais militares, civis e
federais fez uma operação no Complexo da Maré, conjunto de favelas da
Zona Norte. Durante a ação, encontraram uma placa com um aviso ameaçador
num terreno baldio: "Atenção, proibido jogar lixo e entulho. Se jogar,
vai ser cobrado". Logo abaixo, traficantes pintaram com tinta branca a
figura de uma AK-47, com uma bala saindo do cano. Na mesma operação, foi
apreendida uma metralhadora ZB VZ calibre 30, com capacidade, segundo a
Polícia Militar, para derrubar helicópteros. Para essa finalidade,
dispunha até de um tripé. Suspeita-se que a artilharia antiaérea,
fabricada na antiga Tchecoslováquia comunista, tenha sido desviada do
Exército boliviano antes de chegar ao Rio. A PF abriu inquérito para
investigar o caso. A arma estava escondida embaixo de uma cama, numa das
casas da comunidade do Timbau, uma das favelas do Complexo da Maré.
Três pessoas foram presas quando tentavam deixar a casa num Honda Civic.
Época obteve documentos sobre a apreensão
da metralhadora, que mobilizou os serviços de inteligência da PF e da
PM. A ação no conjunto de favelas foi uma iniciativa da PF, que recebeu
informações sobre a existência de armamento pesado entre os bandidos. A
PF pediu, então, o reforço da PM e da Polícia Civil. Três facções
criminosas fatiam e disputam o controle do tráfico de drogas naquela
área. O Complexo da Maré fica entre duas das principais artérias de
trânsito do Rio: a Linha Vermelha e a Avenida Brasil. São as únicas
opções para quem desembarca no Aeroporto Internacional do Galeão
-Antônio Carlos Jobim e segue em direção ao centro da cidade. A operação
que resultou na apreensão da metralhadora antiaérea teve apoio de um
helicóptero da Polícia Civil, equipado com o sistema de câmeras Flir,
capaz de filmar movimentos a 4.000 metros de altura durante a noite. A
polícia não via riscos de que ele fosse alvejado.
Em outubro de 2009, traficantes
derrubaram a tiros de fuzil um helicóptero da Polícia Militar no Morro
dos Macacos, em Vila Isabel, também na Zona Norte. Em reação, a
Procuradoria da República abriu inquérito para apurar falhas da PF no
combate ao tráfico de armas. Em julho de 2011, Época revelou detalhes da
investigação da Procuradoria, que apontou a entrada de fuzis
principalmente a partir da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e
Argentina. Depois de reunir 30 volumes de papéis, os procuradores
concluíram que brigas internas entre delegados federais na
Superintendência da PF no Rio prejudicavam as ações contra o tráfico de
armas no Estado. Policiais prestaram depoimento ao Ministério Público
Federal reclamando que o então superintendente, Ângelo Gioia,
"desmontara a capacidade" de reação contra aquele tipo de crime. Em maio
do ano passado, Gioia foi substituído por Valmir Lemos de Oliveira.
Como resultado de uma primeira fase do inquérito, a Procuradoria da
República move uma ação de improbidade administrativa contra Gioia,
atualmente adido da PF em Roma. Ele é acusado de coagir delegados que
prestaram depoimento e revelaram falhas nas operações policiais. Gioia
nega as acusações e diz que prestou esclarecimentos à Justiça.
Apesar dos esforços da Secretaria de
Segurança e da PF no Rio, a luta para retirar fuzis de circulação ainda é
inglória e precisa de maiores cuidados do governo federal,
principalmente na fiscalização das fronteiras. Não se deve esperar que
os criminosos simplesmente se rendam e entreguem sua artilharia. A
campanha nacional do desarmamento recolheu 57 mil armas desde maio de
2011. Apenas 214,0,3%, eram fuzis.
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