"O Bope é um tigre treinado e capacitado para rugir". A frase do
coronel Mário Sérgio Duarte, ex-comandante do Batalhão de Operações
Especiais, se encaixaria perfeitamente no roteiro de "Tropa de Elite",
filme que projetou mundialmente a divisão de elite da PM do Rio de
Janeiro, em 2007, e que completa 35 anos neste sábado (19).
Passado o fenômeno protagonizado pelo personagem Capitão Nascimento --e
que durante muito tempo incomodou os verdadeiros policiais da unidade
por conta da associação com a violência exacerbada pela obra--, o Bope
conseguiu amadurecer a sua imagem ao se posicionar como carro-chefe da
política de pacificação das favelas cariocas.
Hoje, a narrativa ficcional de "Tropa de Elite" já não incomoda tanto, e
a presença dos chamados caveiras (referência ao símbolo do batalhão, um
crânio humano atravessado por uma faca) nas comunidades passou a ser
desejada pelos moradores. "A exposição [originada pelo sucesso do filme]
foi positiva, mas gerou na corporação essa releitura da sociedade
carioca como um todo", afirmou o atual comandante do Bope, coronel Renê
Alonso.
"Estamos verificando isso agora. Hoje em dia, em algumas missões de
pacificação, as pessoas já nos recebem com outro olhar. Muitos perguntam
quando a sua favela será pacificada", completou.
Em 1978, o então Nucoe (Núcleo de Companhia de Operações Especiais), que
se posteriormente viria a ser o Bope, funcionava em um acampamento nas
dependências do CFAP (Centro de Formação de Praças), em Sulacap, na zona
norte do Rio. Eram apenas 12 barracas para cerca de 30 policiais.
De acordo com o coronel Pinheiro Neto, que comandou o Bope entre 2007 e
2009 --atualmente, ele é chefe do Estado-Maior Operacional da PM--, o
filme seria coerente com a realidade no sentido de mostrar que os
policiais do Bope, de fato, "abominam a corrupção". O oficial, no
entanto, nega que os agentes da elite da PM utilizem métodos como a
tortura a fim de obter informações.
"'Tropa de Elite' é um excelente filme, mas não é um documentário sobre
o Bope, muito menos sobre a Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Entretanto, trata sem hipocrisia a relação entre o crime e o consumidor
de drogas, e das associações entre determinadas organizações não
governamentais e o crime organizado. Ele mostra claramente que a vida
criminosa não tem glamour e que os integrantes do Bope abominam a
corrupção", diz Pinheiro Neto. "Por outro lado, não é verdadeira a
tortura e os meios ilegais que aquele grupo de policiais aplica no filme
para cumprir a missão. O Bope é uma unidade de polícia e respeita a
lei. Não compactua com qualquer meio ilegal, seja ele qual for. Para o
Bope, os fins não justificam os meios".
Para o coronel Paulo Henrique Azevedo de Moraes, que comandava o Bope
na época do filme, e hoje ocupa o cargo de coordenador das UPPs
(Unidades de Polícia Pacificadora), o sucesso de "Tropa de Elite" se
transformou em uma via de mão dupla para o Bope: fez com que o nome da
unidade ficasse mundialmente conhecido, mas aumentou a responsabilidade
dos policiais.
"A exposição, decorrente do filme, colocou-nos na vitrine. Estando na
vitrine temos a oportunidade de demonstrarmos nossas qualidades. Por
outro lado, nossos defeitos também ficam aparentes. Daí a necessidade de
trabalharmos mais intensamente", disse.
Batalhão passou de "força de guerra" para "força de pacificação"
Os quatro coronéis entrevistados pela reportagem do UOL
são exatamente os últimos comandantes da unidade em um período que
compreende, segundo a PM, o início do processo de adaptação do Bope a um
novo cenário da segurança pública. Esse período começaria em 2006,
quando o coronel Mário Sérgio Duarte chegou ao comando da unidade.
Há consenso entre os oficiais: a repercussão do filme trouxe para o
Bope a visibilidade necessária para que outras ações, articuladas a
partir das novas demandas inerentes ao contexto do surgimento das UPPs
--tais como o relacionamento com os moradores das favelas-- chegassem ao
conhecimento da população.
Passo a passo, a elite da PM foi substituindo a imagem da "força de
guerra" pela concepção da "força de pacificação". "O que não existia no
Bope era o papel da mediação logo após a guerra. Os últimos comandantes
foram os responsáveis por construir isso. Mais especificamente, o
coronel Paulo Henrique e o coronel Renê, atual comandante. Eles que
apresentaram essa nova face de Bope além da guerra", disse Duarte.
"Com a pacificação, o Bope passou a não só enfrentar os problemas, mas
assumiu também o papel da mediação. Trazer a população, explicar para a
população o que eles precisam, criar uma rede social de proteção e
conscientizá-los de que o papel do Bope é o de defensor da paz. Eles
[últimos comandantes] apresentam não só o Bope do fuzil, como já era
conhecido, mas também o Bope do diálogo, do compromisso social, o Bope
que entra [na favela] de preto, mas vai sair de camiseta branca.
Realmente, isso é um fato novo", completou.
"A mudança de comportamento da tropa é uma nova realidade a qual os
próprios policiais, habituados ao confronto, precisam se adaptar.
Conquistar a confiança das pessoas, falar com elas, fazer perguntas e
aprender sobre sua vida. Ouvir, aprender e se adaptar. Conduzir uma
ação desta natureza, requer uma força flexível, adaptável e liderada por
líderes ágeis, bem informados e culturalmente astutos. A paz é o
objetivo do trabalho. A guerra não pode ser o objetivo final: a meta é a
paz. E o policial precisa se adaptar a essa nova realidade", destacou o
coronel Pinheiro Neto.
Releitura interna
Na visão do comandante do Bope, coronel Renê Alonso, as transformações
pelas quais o Bope passou no sentido de sintonizar a sua imagem com o
processo de pacificação não estão necessariamente vinculadas ao filme
"Tropa de Elite". Segundo ele, o trabalho partiu de uma "releitura
interna".
"Entendemos a necessidade de se rever procedimentos e aplicar uma nova
metodologia de trabalho. Outros procedimentos foram tomados na questão
da formação e da valorização dos policiais. Talvez a gente tenha
precisado passar por algumas situações de crise para crescer enquanto
unidade policial", disse.
O coronel afirma ainda que o sucesso do filme recolocou a questão da
segurança pública, e da forma como as forças policiais lidam com os
aspectos políticos relacionados a esse contexto, na pauta da sociedade.
"O que me chamou a atenção naquele fenômeno do filme é que ele trouxe a
tona uma discussão que ainda não havia sido feita: sobre a estrutura
policial que a gente tinha no Rio de Janeiro e, do outro lado, a
sociedade que é contrária, mas que acaba também abastecendo o tráfico de
drogas com o consumo. E o Bope no meio dessas questões como uma unidade
policial lutando contra isso, contra tudo e contra todos, sobrevivendo
no meio disso", afirmou ele.
"Um evento marcante para a gente ocorreu durante um desfile de 7 de
setembro, quando o Bope desfilou pela primeira vez, e naquele ano o Bope
foi aplaudido do início ao fim. (...) Isso mostra pra gente que o
carioca não aguentava mais viver daquele jeito e precisava acreditar em
alguém que pudesse de alguma forma resolver o problema. Essa foi a nossa
leitura. Obviamente, isso também aumentou a nossa responsabilidade,
pois a sociedade passou a esperar mais de nós", completou.
Primeiro filme acabou em inquérito dentro no batalhão
O ex-capitão do Bope e antropólogo Paulo Storani, que teria inspirado o
personagem Capitão Nascimento, atuou como consultor de "Tropa de
Elite", tendo ajudado, inclusive, no processo de preparação do elenco.
Segundo ele, o primeiro filme da franquia gerou um inquérito
administrativo, "que era para gerar um inquérito policial" (o que não
ocorreu), através do qual vários policiais foram ouvidos pelo comando da
PM, incluindo o próprio Storani.
"O próprio comandante do Bope na época, o coronel Pinheiro Neto, foi o
único punido nessa história toda. Eu considero de uma forma arbitrária.
Ele foi punido simplesmente porque recebeu o José Padilha no batalhão. O
Padilha foi lá apenas para conversar com ele e ele foi punido por tê-lo
recebido. O Padilha queria fazer um vídeo institucional em homenagem ao
Bope, mas isso nunca aconteceu", disse o antropólogo. Questionado pela
reportagem do UOL sobre a suposta punição, o coronel Pinheiro Neto optou por não responder.
Storani disse ainda que as características que marcam o protagonista do
filme criaram na imaginário do público a ideia de "um herói que não
baixa a cabeça para determinadas circunstâncias da própria administração
pública, dos vícios da administração, da própria corrupção, e que
acredita naquilo que faz". A partir disso, segundo ele, a
responsabilidade em relação ao processo de seleção dos integrantes do
verdadeiro Bope precisa ser ainda mais rígido, pois a população espera
que a postura da unidade corresponda ao que foi mostrado no filme.
"O filme abriu para o mundo o que é essa unidade chamada Batalhão de
Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro. A partir desse momento, o
Bope montou uma estratégia reconhecendo o aumento da responsabilidade.
Ele restringiu e apertou muito mais os seus protocolos internos, de
seleção, preparação e controle de desempenho", afirmou.
"A repercussão do filme é fundamental. Porque ela mexe com o
inconsciente coletiva de que existe uma polícia de qualidade. Aliás,
existe dentro da Polícia Militar uma unidade de qualidade que representa
o ideário comunitário que diz: nós não aguentamos mais viver sob medo,
tensão e armas. Queremos que a polícia venha aqui sim. Cansamos de
receber aplausos em favelas. Há alguns anos, isso era inimaginável",
comentou o major André Batista, coautor do livro "Elite da Tropa", no
qual o roteiro do filme é baseado.
Filme obrigou batalhão a dialogar com a mídia
Para Batista, as novas demandas que surgiram a partir da repercussão do
filme foram importantes para que o Bope fortalecesse o seu trabalho de
comunicação com a mídia e com a população.
"Você precisa levar a ideia de que a unidade está ali para ajudar as
pessoas. Muito mais do que a perspectiva que os livros e os filmes
mostram, há necessidade de você se empenhar o máximo que você puder em
relação à comunicação. Porque comunicação é uma falha que existe até
hoje nas polícias. As polícias não conseguem uma relação tão boa com a
comunidade porque elas talvez não divulguem o seu bom trabalho, o
trabalho do dia a dia, e isso o Bope soube aproveitar de acordo com as
ofertas que se mostraram", disse.
"Foi uma grande oportunidade para idealizarmos uma comunicação muito
mais eficiente e menos reativa. A nossa comunicação era sempre reativa.
Mataram três. Foi o Bope. Hoje a gente está empenhado na pacificação, e
temos que trazer isso a partir do ideal de comunicação. Hoje você vai na
comunidade e os moradores não querem que você saia. Nós transformamos o
medo em propaganda, em comunicação e relação com as comunidades",
completou o major.
A capitão Marlisa Neves, que atualmente gerencia o setor de comunicação
do Bope, afirmou que a estratégia adotada pela unidade foi pensada
exatamente para que a realidade do filme não fosse tida pela população
como um relato fiel do funcionamento do Batalhão de Operações Especiais.
"A partir do filme, foi gerada uma demanda de imprensa muito grande. O
Bope passou a ser requisitado até internacionalmente. Então se viu a
necessidade de ter alguém entre eles para cuidar dessa parte. Até para
que não desvirtuassem a imagem do que realmente é o Bope, do que se faz
aqui. Para não acharem que aquilo que é mostrado no filme seria a
realidade da unidade. Aquilo é um filme. Tem coisas reais e coisas não
reais", disse.
"Eu não gosto de associar muito o Bope ao filme. porque o Bope existe e
faz o trabalho que ele faz hoje muito antes do filme. O Bope se
construiu como Bope muito antes do filme, mas é inegável que, a partir
do filme, a visibilidade do Bope explodiu. Extrapolou o campo policial.
Antes, o Bope era muito conhecido por outras unidades policial,
inclusive fora do Brasil. O filme expandiu isso para a sociedade civil.
Foi uma visibilidade ao extremo", completou a policial.
Fonte: UOL
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