Nek Muhammad sabia que estava sendo seguido. Em um dia quente de junho
de 2004, esse membro da tribo pashtun estava dentro de uma construção de
barro no Waziristão do Sul conversando por telefone via satélite com um
dos muitos jornalistas que regularmente o entrevistavam a respeito de
como ele enfrentara e humilhara o Exército do Paquistão nas montanhas do
oeste do país. Ele perguntou a um dos seus seguidores sobre o estranho
pássaro metálico que pairava acima dele.
Menos de 24 horas depois, um míssil destruiu o casebre, arrancando a
perna esquerda de Muhammad, que morreu junto com várias outras pessoas,
incluindo dois meninos. Os militares paquistaneses rapidamente assumiram
a autoria do ataque.
Era mentira.
Muhammad e seus seguidores haviam sido mortos pela CIA, que, pela
primeira vez, usava no Paquistão um "drone" (avião teleguiado) Predator
para realizar um "assassinato seletivo". O alvo não era um dirigente da
Al Qaeda, mas um aliado paquistanês do Taleban que comandava uma
rebelião tribal e estava marcado pelo Paquistão como inimigo do Estado.
Num acordo secreto, a CIA concordou em matá-lo em troca de acesso ao
espaço aéreo paquistanês para poder caçar os seus próprios inimigos com
os "drones".
A barganha, descrita em entrevistas com mais de uma dúzia de
funcionários públicos no Paquistão e nos Estados Unidos, é crucial para
entender a origem de uma dissimulada guerra com "drones" que começou no
governo Bush, foi ampliada pelo presidente Barack Obama e é agora motivo
de intenso debate nos EUA.
O
acordo, um mês depois de um cáustico relatório interno sobre abusos nas
prisões secretas da CIA, abriu caminho para que a agência priorizasse a
morte de terroristas (em vez da sua captura) e contribuiu para que ela
-um serviço de espionagem da época da Guerra Fria- se transformasse em
um serviço paramilitar.
A CIA, desde então, já conduziu centenas de ataques com "drones" no
Paquistão que mataram milhares de pessoas -militantes e civis. Ela
acabou por definir a nova forma americana de combate, criando um atalho
nos mecanismos pelos quais os EUA vão à guerra.
Nem as autoridades americanas nem as paquistanesas jamais admitiram o
que realmente aconteceu com Muhammad -os detalhes continuam sob sigilo.
Mas, nos últimos meses, parlamentares dos EUA fizeram apelos por
transparência, e críticos à direita e à esquerda passaram a pressionar
Obama e seu novo diretor da CIA, John Brennan, para que eles ofereçam
uma explicação mais completa sobre os objetivos dos "drones".
Ross Newland, que ocupava um cargo graduado na CIA quando a agência foi
autorizada a matar integrantes da Al Qaeda, diz que a CIA parece ter
ficado muito à vontade com as mortes por controle remoto.
ASTRO INCONTESTE
Em 2004, Muhammad havia se tornado o astro inconteste das áreas tribais,
as ferozes terras montanhosas habitadas pelos wazirs, mehsuds e outras
tribos pashtuns que há décadas vivem de forma independente do governo
paquistanês.
Muhammad, um ousado membro da tribo wazir, havia montado um exército
para combater as forças oficiais e forçara o governo a negociar.
Muitos nas áreas tribais viam com desdém a aliança forjada pelo então
presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, com os EUA depois dos
atentados de 11 de setembro de 2001.
Nascido perto de Wana, centro comercial do Waziristão do Sul, Muhammad
passou a adolescência como ladrão de carros e balconista no bazar da
cidade. Achou sua vocação em 1993, mais ou menos aos 18 anos, quando foi
recrutado para lutar pelo Taleban no Afeganistão. Ele ascendeu
rapidamente na hierarquia militar do grupo.
Quando os EUA invadiram o Afeganistão, em 2001, ele aproveitou a
oportunidade para hospedar combatentes árabes e tchetchenos da Al Qaeda,
que entravam no Paquistão ao fugir dos bombardeios americanos.
Para Muhammad, isso era um ganha-pão, mas ele também viu outra utilidade
nos recém-chegados. Com a ajuda deles, nos dois anos seguintes, lançou
ataques contra instalações militares paquistanesas e bases americanas no
Afeganistão.
Agentes da CIA em Islamabad pediram a espiões paquistaneses que
pressionassem membros da tribo wazir a entregar os combatentes
estrangeiros. Relutantemente, Musharraf enviou tropas às montanhas para
caçar Muhammad e seus homens. Em março de 2004, helicópteros
paquistaneses bombardearam Wana.
Um cessar-fogo foi negociado em abril, durante uma reunião no Waziristão
do Sul na qual um comandante paquistanês pendurou uma guirlanda de
flores no pescoço de Muhammad.
A trégua deu mais fama a Muhammad, mas logo se revelou um blefe. Ele retomou seus ataques contra as forças paquistanesas.
OFERTA AMERICANA
A CIA vinha monitorando a ascensão de Muhammad, mas as autoridades o
viam mais como um problema do Paquistão do que dos EUA. Em Washington,
havia crescente alarme quanto à presença de membros da Al Qaeda nas
áreas tribais, e George Tenet, então diretor da CIA, autorizou seus
agentes em Islamabad a pressionar as autoridades paquistanesas para
permitir os "drones" armados.
Enquanto as batalhas eram travadas no Waziristão do Sul, o chefe do
escritório da CIA em Islamabad fez uma visita ao general Ehsan ul Haq,
chefe da Inteligência Interserviços (ISI, a espionagem paquistanesa), e
lhe apresentou uma oferta: se a CIA matasse Muhammad, a ISI autorizaria
voos de "drones" armados sobre as áreas tribais?
A barganha foi selada. Autoridades paquistanesas insistiram em aprovar
cada ataque, o que lhes dava controle sobre os alvos. A ISI e a CIA
concordaram que todos os voos de "drones" no Paquistão seriam operados
sob a autoridade dissimulada da CIA -o que significava que os EUA jamais
admitiriam ter conhecimento dos ataques e o Paquistão assumiria o
crédito por eles ou ficaria em silêncio.
NOVA DIREÇÃO
Enquanto as negociações transcorriam, o inspetor-geral da CIA, John
Helgerson, havia acabado de concluir um duro relatório sobre os abusos a
detentos em prisões secretas da CIA. Era talvez a mais importante razão
individual para que a CIA passasse a matar suspeitos em vez de
prendê-los.
Autoridades de contraterrorismo começaram a repensar a estratégia para a
guerra secreta. Os "drones" armados ofereciam uma nova direção. Matar
por controle remoto era a antítese do trabalho duro e íntimo do
interrogatório. Os assassinatos seletivos foram saudados por
republicanos e democratas.
Três anos antes da morte de Muhammad e um ano antes de a CIA realizar
seu primeiro assassinato seletivo fora de uma zona de guerra -em 2002,
no Iêmen-, houve um debate sobre a legalidade e a moralidade do uso de
"drones" para matar supostos terroristas.
John McLaughlin, então subdiretor da CIA, disse que não se podia
subestimar a mudança cultural que advém da obtenção da autoridade letal.
"Quando as pessoas me dizem que 'não é grande coisa', eu lhes digo:
'Você já matou alguém?'", afirmou. "É grande coisa. Você começa a pensar
de um jeito diferente."
Depois do 11 de Setembro, porém, essas preocupações foram rapidamente postas de lado.
Depois que Muhammad foi morto, o general Shaukat Sultan, um porta-voz
paquistanês, disse a jornalistas que o "facilitador da Al Qaeda" Nek
Muhammad e quatro outros "militantes" haviam sido mortos por um foguete
disparado por forças paquistanesas. Qualquer insinuação de que Muhammad
teria sido morto por americanos ou com assistência americana, disse ele,
era "totalmente absurda".
Fonte: The New York Times - Via GBN
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