A dois meses da visita que a presidente Dilma Rousseff fará à Casa
Branca em outubro, a expectativa de que o evento viesse a marcar um
aprofundamento das relações com os Estados Unidos se dissipou após a
cobrança pública de explicações que o chanceler Antonio Patriota fez há
duas semanas ao secretário de Estado, John Kerry, sobre o monitoramento
de comunicações de brasileiros pela National Security Agency (NSA), o
serviço americano de espionagem eletrônica. O clima azedou um pouco mais
com a detenção pela Scotland Yard, em Londres, com base em lei
antiterrorismo, de David Miranda, o companheiro brasileiro de Glenn
Greenwald, o jornalista americano residente no Rio de Janeiro que vem
revelando as informações sobre as atividades de NSA coletadas pelo
ex-analista da CIA Edward Snowden. Nesse ambiente, complicaram-se
entendimentos que Brasília e Washington vinham alinhavando para anunciar
em 23 de outubro, quando o presidente Barack Obama receberá a colega
brasileira ao som de trombetas, nos jardins da Casa Branca.
O episódio certamente reduziu o espaço para os exageros retóricos que
costumam marcar esses eventos. Isso não é mau. Realismo e transparência
no diálogo entre Washington e Brasília são um bom caminho para tornar a
visita de Dilma Rousseff um acontecimento substantivo, que ajude a
tornar a relação bilateral mais produtiva. São positivas, nesse sentido,
a decisão de Barack Obama de reavaliar as práticas da NSA, hoje alvo de
fortes críticas nos EUA, e o reconhecimento por Kerry da necessidade de
responder às dúvidas do governo brasileiro. Funcionários das áreas
técnica e política dos dois países já iniciaram reuniões sobre as
atividades da NSA. Fontes americanas admitem que uma maior transparência
com países amigos abrangidos pela espionagem eletrônica da NSA teria
neutralizado os efeitos das revelações.
O aprofundamento das relações entre os dois países depende de uma
atmosfera de confiança mútua que permita a troca de informações
sigilosas entre agências de ambos os governos. O Acordo de Assistência
Legal Mútua, assinado há 12 anos, por exemplo, funcionou bem no começo,
mas perdeu efetividade diante da dificuldade de acesso pela Justiça
brasileira a informações relevantes para investigações criminais
guardadas em bases de dados de mídias sociais nos EUA. O uso efetivo do
Acordo de Intercâmbio de Informações Tributárias, em vigor desde maio
deste ano, depende de confiança. Essa é também a condição para a
finalização de entendimentos sobre iniciativas que estão na pauta da
visita de Dilma, como um programa experimental de acesso de brasileiros
ao sistema Global Entry, para facilitar o ingresso de viajantes
brasileiros aos EUA, e a revisão de um acordo de 2000 sobre o uso da
Base de Alcântara para lançamento de satélites de comunicação dos EUA.
Da confiança mútua dependem, obviamente, iniciativas mais ambiciosas e
de interesse estratégico de Washington e Brasília. Uma delas é uma
eventual decisão do Palácio do Planalto de reequipar a Força Aérea
Brasileira com caças americanos F18 Hornet. Outra é ampliação do mercado
de aviões militares da Embraer nos EUA, aberta no ano passado com a
aquisição de Super Tucanos pela Usaf. Outra, ainda, passa pelo apoio de
Washington à aspiração brasileira a uma cadeira permanente no Conselho
de Segurança das Nações Unidas. Improváveis no curto prazo, todas são
ingredientes de uma possível negociação que pode avançar na visita de
Dilma e dar lastro à relação bilateral reconstruída no atual governo,
depois do curto-circuito provocado pelos episódios de Honduras e do Irã,
no final da administração Lula.
Uma boa notícia, nesse aspecto, é a esperada continuação do
envolvimento do embaixador dos EUA, Thomas Shannon, que se está
despedindo de Brasília, no diálogo entre os dois governos. Shannon, que
se ocupa do assunto há 12 anos, continuará esse trabalho num alto cargo
que assumirá no Departamento de Estado depois da visita de Dilma. Ele
terá, agora, um influente aliado no vice-presidente Joseph Biden, que
visitou Brasília no final de maio e abriu um canal de diálogo político
com o Planalto. Em 19 de julho Biden telefonou para Dilma para falar
sobre as atividades da NSA. Ao receber Kerry, há duas semanas, a
presidente indicou que o governo continua aberto à proposta dos caças
americanos. "Seu vice-presidente pode me vender qualquer coisa", teria
dito a presidente ao secretário de Estado, numa mostra de sua simpatia
por Biden.
Como costuma afirmar, Shannon acredita que os interesses permanentes
dos EUA e do Brasil, a começar pela estabilidade nas Américas, são mais
convergentes do que divergentes. O crescente número de voos entre os
dois países, os 10 mil bolsistas do Ciência sem Fronteiras - 25% do
total - que escolheram estudar em universidades dos EUA, a expansão da
presença de empresas brasileiras no mercado americano e as variadas e
crescentes interligações das duas sociedades respaldam essa avaliação.
Na ótica de Washington, mais cedo ou mais tarde as pressões internas por
uma abertura da economia brasileira, sua integração a cadeias
produtivas de alto valor, à la Embraer, e a redução dos entraves ao
investimento estrangeiro produzirão resultados, por uma razão principal:
sem políticas de liberalização econômica o País não sairá do atoleiro
do crescimento medíocre e de baixa qualidade em que se meteu.
Segundo altos funcionários, o governo Obama aposta que Dilma Rousseff
deseja desenvolver laços mais próximos e eficazes com os EUA e
continuará empenhado em construir canais de diálogo e ampliar os já
existentes, à espera de que a dinâmica interna do País faça sua mágica.
*Paulo Sotero é jornalista e diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center For Scholars, em Washington.
Do Estadão
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