Fatos como a anexação da Crimeia pela Rússia parecem bem distantes do público brasileiro. Mas não estão — ao menos na realidade do G-Zero, termo cunhado pelo cientista político americano Ian Bremmer para descrever a atual realidade geopolítica, em “destruição criativa”. Ele vê um mundo onde a velha ordem já não vale mais nada; onde o grupo dos sete países mais industrializados do mundo (G-7) tornou-se obsoleto, enquanto o G-20 e seus atores emergentes, como o Brasil, representam um bloco amplo demais para ser eficaz na criação de políticas uníssonas.
Aos 44 anos, Bremmer transformou-se numa espécie de guru da avaliação de riscos políticos. Fundador e presidente da consultoria Eurasia Group, ele vê as tentativas de impor sanções à Rússia pela anexação da Crimeia como o maior erro da diplomacia americana desde a Guerra Fria. Hoje, o presidente Vladimir Putin, alerta, não vê problemas em estar sozinho. E poderá buscar amigos entre os chamados Brics — principalmente na China, numa aliança que poderia desafiar toda a estratégia brasileira de política externa. Bremmer conversou com o GLOBO durante uma passagem pelo Rio para uma palestra no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

O que o presidente Vladimir Putin quer, de fato, na Ucrânia?
Putin quer dar um basta no declínio consistente neste país nos últimos 20 anos. Perderam muito em energia, a economia está em colapso... Putin não vai desistir da Ucrânia. Ainda existe o sentimento de que aquilo ali é deles, de que a Rússia é uma grande nação, de que não só a Crimeia é território russo, mas a Ucrânia toda. Mikhail Gorbachev disse isso. Não tenho dúvidas de que os americanos impulsionaram a Rússia, mais do que gostariam, ao não compreender que sanções não podem demover a Rússia. Os Estados Unidos não deveriam isolar a Rússia, mas ajudar a Ucrânia. E ao isolar a Rússia, vão prejudicar a Ucrânia. Em primeiro lugar, empresas americanas não querem isolar os russos, mas mesmo se quisessem, os europeus não iam querer. E se você isola a Rússia, você empurra a Rússia para a China, que é algo que ninguém deveria quer. É perigoso. O governo de Putin é muito popular e está ainda mais por causa da crise na Ucrânia, ele não vai desistir e também não vai aceitar uma Ucrânia pró-Ocidente. Este governo russo deu aos ucranianos entre US$ 80 e US$ 200 bilhões nos 20 últimos anos. Não fizeram isso por diversão ou visando ao lucro. Fizeram porque eles acreditam que aquele território é deles.

Se por um lado a Rússia nunca aceitou a independência de lugares como Chechênia e Daguestão, por outro, tolerava a de ex-repúblicas soviéticas como a Ucrânia. Por quê a mudança? Ela se explica por conta da necessidade de manter a base naval na Crimeia?
Não. Se fosse isso, bastava a anexação da Crimeia! É porque há centenas de séculos todo russo acha que a Ucrânia é da Rússia. Um terço da população ucraniana fala russo, a História os liga. A Rússia não é um doador humanitário conhecido, por que teria investido tanto dinheiro na Ucrânia? Fazem por achar que é deles. Se alguém quiser forçar os russos para fora da Ucrânia, terá que fazer para eles algo que importe mais que a Ucrânia. Não temos essa possibilidade, não vai funcionar. Por isso, isolar a Rússia é uma má ideia.
Diante desse senso de propriedade, o senhor diria que a anexação fora, de alguma forma, planejada? O Kremlin estaria apenas esperando uma oportunidade, que foi a crise em torno do presidente ucraniano deposto Viktor Yanukovich?
Não. Acho que Putin cometeu um erro na questão de Yanukovich. Quando Yanukovich esteve em Sochi, Putin disse a ele para sufocar as manifestações em troca de US$ 2 bilhões. Mas Yanukovich era fraco, e Putin ficou surpreso com o nível de instabilidade gerado pelo povo ucraniano. Então, tivemos o presidente da Ucrânia basicamente forçado a fechar um acordo com a oposição. E aí foi o Ocidente que cometeu um erro quando viu o acordo entrar em colapso. O que o Ocidente deveria ter feito era: se vocês querem mais dinheiro, têm que voltar ao acordo, que previa governo de transição, volta à Constituição de 2004 e eleições. Mesmo que os americanos não acreditassem nisso, era o que devia ter sido feito. Mas não foi; o Ocidente escolheu apoiar um novo governo. Os russos estavam preparados para aquele acordo, mesmo que tentassem influenciar o desempenho das eleições. Foi uma vitória para os EUA, mas a Rússia mostrou que não se calaria e não desistiria.
Há 40 mil tropas russas na fronteira e um nível alto de movimentação militar. Quais as chances de uma ofensiva real contra a Ucrânia?
O chanceler russo, Sergei Lavrov, disse que o único caminho adiante é uma federação ucraniana não alinhada a bloco algum. Se não entendermos isso, é possível que os russos não estejam apenas falando alto e façam coisas no Sul e no Leste da Ucrânia para mostrar que o governo ucraniano não está trabalhando e fazer com que a população russa peça ajuda a Moscou.
Por que, mesmo diante dessa perspectiva, a diplomacia, sobretudo a americana, continua emperrada?
O Ocidente não entende que não se pode ganhar 100% na Ucrânia. Tudo o que foi feito nas últimas quatro semanas refletiram a percepção de que o Ocidente pode ganhar a Ucrânia. Esse é um erro terrível que vai nos custar caro. Esse é facilmente o maior erro de política externa que fizemos depois da Guerra Fria. Podemos voltar atrás, mas será difícil, porque o presidente Barack Obama saiu muito diretamente contra Putin, pessoalmente. Não está claro o por quê. Pode ser tática psicológica, porque Obama não gosta de ser desrespeitado, principalmente, por alguém que ele não considera importante. Quando Obama diz que não se trata de uma Guerra Fria porque Putin é apenas um líder regional, Obama não está atingindo nenhum objetivo ao fazer isso! Me parece que Obama está tomando esta crise de maneira um pouco pessoal, o que é ruim, o que o conduz a erros.
Quais impactos concretos podemos notar na geopolítica regional após a anexação russa da Crimeia?
As sanções que vimos até agora são basicamente a indivíduos, mas atingiram oligarcas e um banco russo. Vemos a retirada de recursos russos dos Estados Unidos para alocação no Brasil e em outros países. Durante o encontro do G-7 na semana passada, anunciou-se uma nova reunião para discutir políticas energéticas, o que significa reduzir a dependência da Rússia. Se a Rússia vir europeus e americanos tentando buscar outras fontes de energia, terá que fazer alguma coisa, pois sua economia não está boa. E a Rússia vai fazer. Vai tentar ir à China; o encontro mais importante da política internacional este ano, até agora, será a viagem de Putin a Pequim em maio.
E se a Rússia seguir adiante, no resto da Ucrânia?
Eu acho que isso vai acontecer. A pergunta é como. Eles não vão parar na Crimeia, porque não estão numa situação estável. Se forem adiante, haverá mais sanções americanas, com o apoio de alguns europeus, rachados. Dividir a Europa é um feito grande.

A possibilidade de uma aliança Rússia-China afeta os chamados Brics?
Os Brics têm uma unidade política interessante. Apensar de diferentes, nenhum deles votou na ONU a favor da condenação à Rússia. Nenhum deles está no G-7. Obama diz que toda a comunidade internacional está a favor da Ucrânia. Então os Brics não fazem parte da comunidade internacional?! É verdade que até agora essa abstenção não se traduziu numa posição política coordenada, e a pergunta é se isso vai continuar assim. Por enquanto, acho que sim, em parte, porque a economia americana está indo bem, o que importa muito para os Brics, fora da Rússia. E importa para a China, que é muito pragmática. Mas a Rússia pode oferecer aos chineses alguma coisa que faça Pequim mudar de ideia. Isso é possível. Se acontecer, o Brasil não vai apoiar a Rússia. Mas se russos e chineses se unirem para criar uma nova organização e disserem a Brasil e Índia: “olha, não somos parte do G-7, não somos parte da Parceria Transpacífica (TPP) e vamos nos unir...” Não acho que o Brasil se uniria à tal iniciativa, mas o Brasil ficaria numa situação muito ruim. Vocês não querem estar nessa situação, mas podem ficar. Trotsky uma vez disse: “às vezes vocês não quer a guerra, mas a guerra quer você”.
O Brasil tradicionalmente recorre ao princípio de não ingerência em questões de outros países...
O Brasil não quer ter que adotar posições em assunto nenhum. As abstenções brasileiras mostram isso, o Brasil não quer responsabilidade. Nem na Síria, na Crimeia, em lugar nenhum. É uma ótima posição para o Brasil, mas que não vai poder se sustentar por muito tempo.
O que estaria sobre a mesa numa eventual aliança Rússia-China que tanto assusta o Ocidente?
A Rússia precisa de amigos. A Rússia precisa que a China vote com ela e não com os Estados Unidos. Os chineses não precisam da Rússia estrategicamente, mas podem muito bem usar energia russa, já que o Oriente Médio está mais instável; pode usar petróleo e gás; pode usar terras russas para grandes populações chinesas no Leste da Sibéria; pode desenvolver aquela região. A Rússia tem um território enorme e pouca gente, ao contrário da China, que tem menos território e muito mais gente. Eles podem fazer muitas coisas juntos, mas também há muitas razões para que não tenham sucesso. A China tem uma excelente relação econômica com os EUA e não gosta de correr riscos; os russos têm antipatia histórica pela China. Mas, se os russos não tiverem mais amigos, se sobrarem a Moscou apenas Armênia, Tadjiquistão e Bielorrússia....
Essas possibilidades podem mudar a agenda da 6ª Conferência dos Brics em julho, aqui no Brasil?
Pode ser. Mas não depende do Brasil. Por enquanto, o Brasil é um observador passivo. As escolhas serão feitas por russos e chineses, e os brasileiros vão torcer para que eles não façam escolha alguma. É isso que o Brasil quer. Não é interesse do Brasil ver os Brics como uma organização mais forte, porque o Brasil quer ser uma economia global, que está ficando mais rica, numa região sem problemas geopolíticos... O Brasil quer trabalhar com todas as potências a longo prazo, mas se tiver que escolher entre EUA e China, certamente vai escolher os EUA. Se os Brics ficarem mais fortes, como um bloco anti-Ocidente, anti-EUA, vai ser muito ruim para o Brasil.
A pressão sobre a presidente Dilma Rousseff vai ser maior, não? Afinal, nesse cenário, a conferência vai ganhar um destaque maior do que ela esperava ou desejava...
O problema é que as relações dela com os EUA foram muito prejudicadas com o escândalo da espionagem revelado pelo ex-técnico da NSA Edward Snowden. Neste momento, o que vocês têm? O Mercosul? É neste grupo que vocês querem estar ou no TPP? Neste momento, vocês são os perdedores econômicos da América Latina! Não é esse o futuro que o Brasil quer. O Brasil é uma economia vibrante, que embora esteja lenta agora, tem empresas, negócios, recursos. A Venezuela vai entrar em colapso, a Argentina vai entrar em colapso... Não são modelos a se copiar.

Do  O Globo