
À época, a Panair era a mais importante companhia aérea do país,
concessionária exclusiva das rotas para a Europa, África e Oriente
Médio, além de operar em vários países da América do Sul e em todo o
Brasil, executando um serviço único de integração em 43 localidades da
Amazônia. No dia 10 de fevereiro de 1965, sem que antes fosse instaurado
um processo administrativo regular, todas as suas concessões de linhas
aéreas foram suspensas, por meio de um curto despacho assinado pelo
Presidente da República, o marechal Castello Branco, e pelo ministro da
Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes.
“A notícia foi transmitida pelo rádio e pegou todo mundo completamente
de surpresa. A opinião pública ficou perplexa”, lembra Luiz Paulo
Sampaio, filho de Paulo Sampaio, que durante 16 anos presidiu a empresa.
“A Panair era o cartão de visitas do Brasil lá fora e um orgulho
nacional por sua eficiência e alto padrão de atendimento. Não havia a
menor expectativa de que algo como aquilo pudesse acontecer”.
Ao retirar as linhas, os militares alegaram apenas que a situação
financeira da companhia era irrecuperável, o que possivelmente poderia
produzir reflexos futuros na segurança de voo. Os fatos, no entanto,
sinalizavam o contrário. O Aviso Ministerial n° 28, emitido um ano antes
pela então Diretoria de Aeronáutica Civil (DAC), órgão regulador da
aviação, atestara que a Panair tinha organização boa e pessoal técnico e
serviços de manutenção adequados. Além disso, um relatório da firma
Ecotec publicado dias antes da intervenção apontara que, dentre todas as
aéreas brasileiras, a empresa era a que tinha as melhores chances de se
recuperar da crise que assolava todo o setor, provocada,
principalmente, pela forte desvalorização do câmbio e a alta inflação.
Os autores do estudo destacavam que não apenas a companhia pontificava
como líder absoluta no segmento de voos internacionais, fonte de
receitas em dólar, como possuía uma estrutura de manutenção, segurança e
proteção ao voo inigualável. Ela era dona da Celma, a maior e mais
avançada oficina de reparos de motores de aviões do Hemisfério Sul (em
Petrópolis, hoje da GE), que prestava serviço a congêneres nacionais,
estrangeiras e da própria FAB, e controlava a mais extensa rede de
estações meteorológicas e de telecomunicações aeronáuticas do
continente, que atendia toda aeronave civil ou militar, de qualquer
nacionalidade, que cruzasse o Atlântico Sul.
“No dia da cassação das linhas, a Celma e o Departamento de
Comunicações foram ocupados por tropas armadas e forçados a permanecer
no ar, porque se os serviços fossem interrompidos toda a aviação
comercial pararia na América do Sul”, recorda Sampaio. Com os voos
paralisados, a Panair pediu concordata da 6ª Vara Cível do Rio de
Janeiro para tentar preservar intacto seu patrimônio, enquanto lutava
para reaver as linhas subitamente cassadas. Porém, apenas cinco dias
depois da investida militar, o juiz da 6ª Vara indeferiu o pedido,
convertendo-o em falência. “Nunca houve justificativa aceitável para a
decisão”, garante Rocha Miranda. “Nenhum credor protestou títulos da
companhia. Todos os nossos funcionários recebiam em dia e o patrimônio
superava as dívidas. Mas o juiz recebeu a visita pessoal do brigadeiro
Eduardo Gomes e despachou dizendo que sem as linhas iríamos falir de
qualquer jeito”.

Algumas passagens dessa história são tão inusitadas, que mais parecem
cenas de um thriller de cinema. “No dia 10 de fevereiro, poucas horas
depois que o governo cassou as linhas, a Varig já tinha um avião pronto
no pátio do Galeão para fazer o nosso voo que sairia para a Europa
naquela noite”, lembra Helio Ruben de Castro Pinto, piloto da aérea
fechada. “Com certeza, eles souberam com antecedência que o governo nos
liquidaria e tiveram tempo para treinar seus tripulantes. Ninguém põe um
jato do Rio para Paris de uma hora para outra”. Na época, a Varig ainda
engatinhava no mercado de longo percurso, com linhas apenas para os
Estados Unidos. As rotas domésticas foram entregues à Cruzeiro do Sul,
que seria comprada pela aérea gaúcha em 1975.
“Os cinco mil funcionários ficaram desempregados do dia para a noite e
sem meios de sustentar as famílias. A situação se alongou por meses e
vários colegas se desesperaram e acabaram se suicidando. Uma tragédia”,
lamenta o aeronauta.
Caso único no fórum
Aberto o processo de falência, começou a longa batalha judicial que já dura cinco décadas. Rocha Miranda afirma que, apesar de atravessar um período de déficit — como todas as congêneres —, a Panair estava em melhor condição econômica do que a Varig e sempre apresentou sólida situação patrimonial e caixa robusto, operando de acordo com as melhores práticas da aviação. Porém, acrescenta, as autoridades militares e seus assessores civis não hesitaram em falsificar documentos para subsidiar novos ataques. Vários incidentes do tipo foram comprovados no Judiciário.
Aberto o processo de falência, começou a longa batalha judicial que já dura cinco décadas. Rocha Miranda afirma que, apesar de atravessar um período de déficit — como todas as congêneres —, a Panair estava em melhor condição econômica do que a Varig e sempre apresentou sólida situação patrimonial e caixa robusto, operando de acordo com as melhores práticas da aviação. Porém, acrescenta, as autoridades militares e seus assessores civis não hesitaram em falsificar documentos para subsidiar novos ataques. Vários incidentes do tipo foram comprovados no Judiciário.
Um laudo contábil com informações sobre os contratos de seguros das
aeronaves, que passaram a ser questionados pela Aeronáutica, foi
interceptado no caminho para Brasília e teve seu conteúdo todo
adulterado, para deixar delicada a imagem dos acionistas. Mais tarde
julgado inidôneo, o documento foi rejeitado pela Justiça, que determinou
novas perícias. De porte de uma segunda versão aprovada por todas as
partes, o curador de massas falidas que estudou o processo concluiu
serem “absolutamente normais e regulares todas as operações de seguros” e
pediu o arquivamento do inquérito contra os diretores, acusados de
crimes falimentares.
Pressionado, o juiz determinou a remoção do parecer, declarando que “a
promoção de fls. 2062 foi desentranhada dos autos por ordem de
autoridade superior”. Em seguida, afastou o curador e manteve os
executivos na posição de réus. “Vários juristas foram intimidados e
silenciados. A partir dali, a União foi para cima do patrimônio”, conta
Rocha Miranda. “Nomearam o Banco do Brasil síndico da falência e seu
representante dilapidou totalmente o acervo material da companhia,
principalmente no exterior. Suas contas nunca foram aprovadas. Os
aviões, hangares e lojas passaram para a Varig e a Cruzeiro a preços
simbólicos, por pressão. Depois, com dois decretos, a União expropriou a
Celma e a estrutura de comunicações”.
Os autos, que compõem o maior processo no fórum carioca, revelam que,
mesmo destituída de seus bens, a Panair sempre teve condições de quitar
todas as dívidas, à vista. Em 1969, a empresa tentou encerrar a falência
impetrando um pedido de concordata suspensiva, porém foi impedida pela
promulgação em tempo recorde e com efeito retroativo de outros dois
decretos-leis, baseados no Ato Institucional n°5: 469 e 669, que
retiraram das aéreas o direito de retomar as atividades após processos
de falência e de pedir concordata (a legislação foi aplicada uma única
vez na história, no caso da Panair).
“O pedido de concordata suspensiva era irrecusável, pois a Panair tinha
dinheiro de sobra para levantar a falência. Mas no dia da audiência que
decidiria sobre o assunto, a União voltou ao processo, reduzindo o
valor do que desapropriou, e providenciou uma nova dívida, absurda, com
dólares convertidos. Nesse meio-tempo, o governo baixou o decreto-lei n°
669”, conta Sampaio. “Foi uma barbaridade jurídica”.
Reabilitação
Durante 15 anos, a Panair e a União brigaram nos tribunais sobre a dívida reinscrita. Em dezembro de 1984, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa à companhia, confirmando que o Estado tentava cobrar obrigação já extinta. Contudo, a falência só pode ser levantada sem interferências em 1995. Apesar de parada durante 30 anos, ao encerrar o processo a empresa ainda dispunha de cerca de US$ 10 milhões em caixa. A proibição de operar perdura até hoje.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em 2012 para apurar as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, acolheu o caso e realizou uma audiência pública em 23 de março de 2013 para reunir informações. Em 10 de dezembro do ano passado, seus integrantes confirmaram no relatório final que a companhia foi liquidada por motivos políticos e não financeiros, e que esse processo contou com a participação de agentes da União e instituições como o SNI (Serviço Nacional de Informações), beneficiando concorrentes.
Durante 15 anos, a Panair e a União brigaram nos tribunais sobre a dívida reinscrita. Em dezembro de 1984, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa à companhia, confirmando que o Estado tentava cobrar obrigação já extinta. Contudo, a falência só pode ser levantada sem interferências em 1995. Apesar de parada durante 30 anos, ao encerrar o processo a empresa ainda dispunha de cerca de US$ 10 milhões em caixa. A proibição de operar perdura até hoje.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em 2012 para apurar as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, acolheu o caso e realizou uma audiência pública em 23 de março de 2013 para reunir informações. Em 10 de dezembro do ano passado, seus integrantes confirmaram no relatório final que a companhia foi liquidada por motivos políticos e não financeiros, e que esse processo contou com a participação de agentes da União e instituições como o SNI (Serviço Nacional de Informações), beneficiando concorrentes.
Foi a primeira vez que o Estado brasileiro admitiu ― pública, ainda que
indiretamente ― responsabilidade sobre a debacle. Isso pode abrir as
portas para que a Panair consiga vitórias na Justiça. Desde que
ressuscitou como pessoa jurídica, a empresa propôs uma série de ações
judiciais contra a União, referentes, principalmente, às desapropriações
e à ocupação irregular do seu patrimônio. Vários aeroportos nacionais,
como os de Belém, Fortaleza, Natal, Recife e Salvador, foram construídos
em terrenos de propriedade da companhia, sendo que em alguns casos a
titularidade nunca foi definitivamente passada para o Estado. Os
pleitos, no entanto, têm esbarrado em interpretações técnicas
divergentes. Parte dos juristas entende que prescreveu o direito de a
empresa pedir indenizações. Rocha Miranda apoia-se em outra vertente.
“A União não pode adquirir propriedade por usucapião. A indenização é
prevista em lei”, justifica. “É ilusão achar que poderíamos ter
pleiteado qualquer coisa antes do levantamento da falência. Fomos
vítimas de uma perseguição sistemática que durou 30 anos. Mas, acima de
tudo, meu interesse é receber um pedido de desculpas oficial da União,
uma reparação moral. Apesar da reabilitação no Judiciário, até hoje há
quem associe os nomes de Celso da Rocha Miranda, Mario Wallace Simonsen e
Paulo de Oliveira Sampaio ao lamaçal das acusações falsas. Essa é a
injustiça que pode ser reparada”. Marylou Simonsen, filha de Mario
Simonsen, concorda. “Tudo o que desejo e espero é que a verdade dos
fatos seja restabelecida e conhecida”.
Por que fecharam a Panair
Até hoje, os reais motivos que levaram o regime militar a liquidar a Panair do Brasil dividem opiniões. Paulo Sampaio, o presidente da empresa, registrou para si, em seus diários pessoais, que a agressividade da Varig no esforço de conquista do mercado europeu já durava dez anos e, em 1965, motivava-se menos por cobiça e mais por sobrevivência. O lobby da empresa, segundo ele, atravessara cinco mandatos presidenciais.
Até hoje, os reais motivos que levaram o regime militar a liquidar a Panair do Brasil dividem opiniões. Paulo Sampaio, o presidente da empresa, registrou para si, em seus diários pessoais, que a agressividade da Varig no esforço de conquista do mercado europeu já durava dez anos e, em 1965, motivava-se menos por cobiça e mais por sobrevivência. O lobby da empresa, segundo ele, atravessara cinco mandatos presidenciais.
“O tráfego Brasil-Europa é constituído em 70% por passageiros
brasileiros natos ou naturalizados e de estrangeiros aqui residentes. A
revisão dos acordos aéreos com os países do Velho Continente se
orientava no sentido de sua reformulação em bases que permitissem, ou
melhor, que reservassem, à transportadora nacional ― a Panair ― 50%
desse tráfego. Assim, estariam resguardados e protegidos os legítimos
interesses da economia cambial brasileira e a transportadora nacional ― a
Panair ― obteria um acréscimo de receita da ordem de 20%, sem o menor
dispêndio, pois, mantido o mesmo número de frequências semanais,
obter-se-ia um melhor e mais justo aproveitamento das aeronaves. O
tráfego Brasil-Estados Unidos, por sua vez, apresenta situação inversa.
Mais de 60% dos passageiros são de outra nacionalidade, não restando,
consequentemente, qualquer perspectiva para a operadora Varig, face à
desfavorável posição estatística. Em suma, a Panair tinha pela frente
uma larga avenida. A Varig se encontrava em um beco”.
De fato, Erik de Carvalho, o sucessor de Ruben Berta na presidência
da aérea gaúcha, chegou a admitir à revista estrangeira Air Travel que
sua companhia, mergulhada no déficit desde 1960 ― agravado pela
aquisição do Consórcio REAL-Aerovias-Nacional no ano seguinte ―, só
conseguiu voltar ao lucro em 1966, depois que passou a operar as linhas
europeias.
Em seu livro “Na periferia da história”, de 1998, o banqueiro José Oscar de Mello Flores ― que atuou no IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) ao lado de José Bento Ribeiro Dantas, presidente da Cruzeiro ― afirmou que o brigadeiro Eduardo Gomes foi ludibriado pelos rivais de Simonsen e Rocha Miranda.
Em seu livro “Na periferia da história”, de 1998, o banqueiro José Oscar de Mello Flores ― que atuou no IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) ao lado de José Bento Ribeiro Dantas, presidente da Cruzeiro ― afirmou que o brigadeiro Eduardo Gomes foi ludibriado pelos rivais de Simonsen e Rocha Miranda.
“A Panair do Brasil foi tomada por brigadeiros que não eram
esclarecidos, porque não havia razão para isso. O maior acionista, Celso
da Rocha Miranda, era ligado ao Juscelino, e por isso eles fizeram a
intervenção na Panair. Agora, entregaram as linhas internacionais, que
era o que interessava, à Varig, ao Rubem Berta (...) E o Bento Ribeiro
Dantas, que trabalhou na Revolução desde o início, ficou com as linhas
nacionais. O brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica do
Castelo, foi inteiramente embrulhado”, escreveu.
Se o empresário carioca foi punido por causa da amizade que nutria
com o ex-Presidente da República, Mario Wallace Simonsen teria sido alvo
de um complô comercial de dimensões ainda maiores, intercontinentais. O
falecido jurista Saulo Ramos escreveu em “Código da Vida”, de 2007, que
a guerra contra o empresário foi aberta devido à capacidade de sua
exportadora de café Comal e da subsidiária Wasim de concorrer lá fora
com as empresas norte-americanas, que, até então, dominavam o mercado de
comercialização de grãos.
“A Wasim passou a vender café agressivamente na Alemanha, no Leste
Europeu, Itália e — ato suicida — em Nova York, no mercado green coffee,
com alguma iniciativa para ingressar no mercado de café torrado e
moído. Crime explícito, porque afinal um país mais ou menos colônia não
podia desejar mais do que vender matéria-prima em seu próprio
território”.
A tese é sustentada pelo jornalista e empresário Ricardo Amaral em
seu “Ricardo Amaral apresenta Vaudeville – Memórias”, de 2010. “A
exportadora Comal era poderosa, a maior nacional. No exterior, a Wasim
tinha uma participação enorme na distribuição das exportações de café
brasileiro. Esse quase monopólio incomodava os concorrentes
internacionais dos Simonsen, principalmente os norte-americanos, cujos
interesses eram representados no Brasil por políticos influentes,
ligados aos militares que haviam tomado o poder, inclusive o então
empresário e deputado federal Herbert Levy”.
Em 1963, ano em que Simonsen comprou uma rede de varejo alemã para
vender café ao cliente final, Levy passou a acusá-lo de realizar
operações ilícitas e lesar o Brasil em US$ 23 milhões. O deputado
transformou o assunto em denúncia no Ministério Público e conseguiu
aprovar na Câmara a constituição de uma CPI, cujo efeito imediato foi a
destruição da credibilidade do empresário no mercado.
Laudo do Instituto de Polícia Técnica de São Paulo comprovou que
cópias falsificadas de documentos tinham sido usadas para subsidiar as
denúncias. Mas, apesar de as evidências apresentadas pela defesa
comprovarem a inépcia das acusações — em 1° de dezembro de 1965, o
Supremo Tribunal Federal trancou os processos criminais por falta de
mérito —, o grupo Simonsen teve todos os seus créditos cortados no
exterior. A Comal e a Wasim foram proibidas de funcionar em maio de 1964
e, um mês depois do fechamento da Panair, a 22ª Vara Criminal do Rio
decretou o sequestro de todos os bens do empresário, cujo conglomerado
possuía cerca de 40 companhias com atividades em 53 países.
“O fechamento da Panair fez parte do plano maior de desmontar o
poder econômico do grupo Rocha Miranda-Simonsen. Os inimigos
aproveitaram o momento político de resolveram atacar em todas as
frentes”, resume Luiz Paulo Sampaio. “Hoje, o complô é outro: o do
silêncio”.
* Daniel Leb Sasaki é jornalista e escritor, autor do livro "Pouso Forçado"
Da Epoca
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